Como nasce uma série
Só a Netflix soltou 371 novos seriados e filmes próprios em 2019 – 55% a mais que em 2018.Entenda os bastidores dessa indústria, enquanto a bolha não estoura.
Texto: Fernanda Ezabela | Design: Carlos Hara | Edição: Alexandre Versignassi
Começa com um xaveco. Como aquele que George Costanza, de Seinfeld, tentou usar na hora de vender seu projeto de seriado para executivos engravatados de uma emissora: “Nada acontece na série, é como a vida!”, se empolga, para desespero do amigo e coprodutor Jerry, num momento de metalinguagem na série mais bem-sucedida dos anos 1990.
Naturalmente, você não vai achar espaço na agenda de engravatados (ou de tatuados, no caso da Netflix) se nunca tiver feito nada relevante no mundo audiovisual. Mas esse não era o caso de Matt Sazama e Burk Sharpless. A dupla de roteiristas já tinha assinado meia dúzia de roteiros de fantasia para o cinema, como Drácula: A História Nunca Contada (2014). Então partiu para um projeto mais ambicioso: uma nova versão de Perdidos no Espaço, o seriado clássico dos anos 1960.
Para tirar a coisa do zero, Sazama e Sharpless visitaram todos os escritórios de emissoras e serviços de streaming em Los Angeles. Levaram diversos foras, mas rolou match com a Netflix. Animados com a reunião (ou com o pitch, no linguajar local), os executivos do serviço bilionário de streaming encomendaram o roteiro do primeiro episódio, o piloto.
Piloto é o episódio de estreia, mas que às vezes nem estreia. Tradicionalmente, as emissoras testam esse episódio primevo com grupos de pesquisa, os “testadores”. Elas encomendam a filmagem de um piloto e mostram para esse pessoal, em pequenas exibições controladas. Esse espectador (gente comum, escalada na rua ou na internet, geralmente sem remuneração) segura um controle e vai sinalizando, de 0 a 100, para dizer o quanto está animado ou entediado.
Tal estratégia é o terror dos criadores de série. É por causa dessas pesquisas que os canais pedem mudanças em personagens, cortam atores ou, para desespero maior, desistem da série.
“É simplesmente parte do processo”, resignou-se ao Wall Street Journal o roteirista Gerald Cuesta, cocriador de uma série que teve o piloto gongado pela CBS em 2007, uma certa Babylon Fields. A ideia ali parecia bacana: uma série de zumbi só com zumbi bonzinho, Rogerinho. Tanto parecia que, cinco anos depois, outra grande emissora, a NBC, decidiu bancar mais um piloto de Babylon Fields, com outro elenco. E a série foi reprovada de novo. Fuén.
Mais da metade dos pilotos gravados vai para o lixo. Não se torna uma série.
O destino dos pilotos rejeitados nem sempre é o limbo completo. Às vezes, eles acabam reempacotados na forma de “filmes para a TV” – aquelas produções que já nascem sem cacife para ganhar uma temporada no cinema. Foi o que aconteceu com o piloto de 2013 do Babylon, o da NBC. Já o da CBS teve o mesmo destino da maioria dos reprovados: nunca mais viu a luz do dia (ainda que esteja no YouTube, dá uma olhada depois).
A produção de um piloto, diga-se, é tão cara quanto de um episódio de série consagrada. No primeiro Babylon Fields, por exemplo, o ator principal era Ray Stevenson, que naquele momento protagonizava Roma, uma série de altíssimo orçamento da HBO. Os gastos com o piloto vão de mais ou menos US$ 1 milhão, para uma comédia basicona de cenário único, estilo Friends, até US$ 10 milhões para algo extremamente elaborado, cheio de cenas externas – esse foi o orçamento do piloto de Lost, um episódio de uma hora que poderia ter sido rejeitado.
É muita grana indo para o ralo. Nos dez anos entre 2007 e 2017 indústria americana filmou exatamente 1.486 pilotos. Menos da metade virou seriado de fato. Na conta de padaria, temos uma perda próxima dos US$ 10 bilhões.
Para alívio da dupla que propôs o novo Perdidos no Espaço, porém, a Netflix não trabalha dessa forma. Sazama e Sharpless não precisaram filmar nada, só entregar um roteiro do piloto, mais o chamado “tratamento” da primeira temporada, que é um resumo de cada um dos dez primeiros episódios de uma hora. Fizeram esse trabalho em seis semanas.
Alguns criadores também gostam de montar uma “bíblia” para o seriado inteiro, no qual descrevem detalhadamente seus personagens, com histórias sobre seu passado e futuro e os mundos que habitam. Aí demora bem mais. A bíblia de The Office, de acordo com a atriz Jeena Fischer (que fez a Pam), tem o tamanho de uma lista telefônica.
Bom, com o roteiro do piloto e o resumo da temporada nas mãos, a Netflix deu luz verde para os protagonistas desta reportagem. Próximo passo: começar a busca por um showrunner. Esse cargo acumula funções criativas, como editor-chefe de roteiros, e administrativas – a contratação das equipes de filmagem, incluindo diretores. Sim: ao contrário do cinema, quem manda na TV é o showrunner, não o diretor. Essa figura, para quem ainda não reparou, costuma variar de episódio para episódio.
O showrunner costuma ser o próprio criador e roteirista-chefe da série. Ou isso ou produtores com experiência na máquina televisiva. Como Sazama e Sharpless eram novatos da TV, chamaram Zack Estrin, produtor e roteirista de Prison Break, para ser o chefe da coisa toda.
Zack, então, selecionou quatro roteiristas para ajudar a transformar os resumos dos episódios em dez roteiros redondinhos. O estilo dos roteiros, vale lembrar, varia bastante. A maior parte é extremamente descritiva. Chata de ler, mas que funciona no vídeo. Outros são literatura para valer – caso dos scripts de Breaking Bad (veja mais abaixo, na seção com dois trechos de roteiros).
A equipe de Perdidos no Espaço se reunia no writers’ room. É onde a mágica acontecia para dar vida à nova encarnação da família Robinson. Essa sala dos roteiristas é universal na indústria. Por trás de cada grande criador, como Matthew Weiner (Mad Men), Shonda Rhimes (Grey’s Anatomy) ou Chuck Lorre (Big Bang Theory), existe um time de escritores para destrinchar seus universos. Não existe um Machado de Assis das séries. É tudo trabalho em equipe.
Cada episódio chega a ganhar três ou quatro versões no papel até ser filmado de fato. Tamanha trabalheira fez surgir no mercado a profissão de script doctor, ou médico do roteiro, ou melhor ainda: salvador de texto ruim.
O carioca David França Mendes, roteirista-chefe da produtora paulistana Mixer, já fez uso de script doctors. “Você procura um quando já gastou toda sua capacidade de ler criticamente aquilo que você mesmo escreveu”, diz o criador dos seriados brasileiros Quase Anônimos (Multishow) e Um Belo Dia Resolvi Mudar (Canal Brasil). No Brasil, o conjunto de roteiros para uma temporada pode levar de um a dois anos para ficar pronto. Nos EUA, seis meses ou menos, com uma média de 600 páginas por temporada.
Roberto Rios, vice-presidente da HBO Latin America, filosofa: “Nossa missão é igual à da Sherazade: contar uma história todas as noites para adiar nossa pena de morte. É fazer você voltar sempre para ouvir outra”.
O produtor Vince Gilligan, criador de Breaking Bad, conta que tinha seis roteiristas trabalhando com ele o tempo todo. “Odiava quando eles se levantavam para ir ao banheiro, por exemplo, porque queria todos ali para ouvir e contribuir com a história. Todos os episódios estavam muito conectados”, conta no livro The TV Showrunner’s Roadmap, de Neil Landau.
“Mas não há um jeito certo de fazer TV. Você precisa achar sua maneira”, diz Vince. Quando fez Arquivo X, seus roteiristas eram mais independentes, às vezes dando longas caminhadas pelos lotes da Fox para pensar em enredos sobrenaturais. O programa não era serializado, ou seja, cada episódio funcionava sozinho – um estilo cada vez mais raro na TV.
Num time fixo de roteiristas, os escritores veteranos podem ganhar de US$ 5 mil a US$ 15 mil por episódio – no caso de um seriado com 12 episódios, então, tira-se até o equivalente a R$ 60 mil por mês ao longo de um ano. Nada mal. Para o showrunner, porém, a vida pode se tornar um grande Dia da Marmota de vitórias na Mega Sena.Vai de US$ 30 mil por episódio a US$ 30 milhões por ano. Isso é o que a Netflix paga para Shonda Rhimes desde 2018 – o dobro do que ela tirava na emissora ABC. Era o valor mais alto já pago a um showrunner. Até que a própria Netflix fechou com Ryan Murphy (American Horror Story) por US$ 60 milhões por ano. É 25% mais do que o Messi ganha no Barcelona (perdão pela comparação descabida).
É isso. Os orçamentos são monstruosos mesmo. O piloto de Lost custou US$ 10 mihões, certo? Então. O mesmo tanto foi usado para apenas uma sequência épica de Game of Thrones, da HBO, no episódio Battle of the Bastards (T06E09). Foram 25 dias de filmagens, com mais de mil pessoas e 70 cavalos. Para a temporada final, cada um dos seis episódios saiu por US$ 15 milhões (mesma cifra do filme Roma, indicado a dez Oscars em 2019). O custo por episódio de uma série típica da Netflix, para dar uma ideia, oscila entre US$ 4 milhões (Orange is the New Black), US$ 8 milhões (Stranger Things) e US$ 10 milhões (The Crown).
É bolha?
Em 2019, foram ao ar nos EUA 532 seriados, 7% a mais do que em 2018, e 153% mais do que dez anos atrás, em 2009. Só a Netflix gasta US$ 20 bilhões por ano em conteúdo. Em 2019, o serviço de streaming lançou 371 séries e filmes próprios, feitos em casa. É 55% a mais do que em 2018, quando tinha feito 240. Criada para ser um serviço de entrega de DVDs por correio, a empresa lançou seu serviço de streaming em 2007. A partir de 2013 passou a ter suas próprias séries. Começou, você lembra, com House of Cards, que mudou a forma como as pessoas consomem seriados, inaugurando a era das maratonas.
A cartada era necessária: com o sucesso do serviço, estúdios começaram a retirar seus programas populares da Netflix para criar seus sites próprios. E a companhia precisava manter seus assinantes. Não tinha como ter dado mais certo: são 160 milhões pelo mundo, que garantem um faturamento anual bruto na casa dos US$ 15 bilhões – quatro vezes o faturamento do Grupo Globo, para ficar numa comparação cabível.
Mesmo assim, a Netflix tem fluxo de caixa negativo (gasta mais do que recebe das mensalidades), acumulando alguns bilhões de dólares em dívidas. A estratégia é continuar gastando forte para ganhar mais clientela, para receio dos investidores, mas para a alegria geral da indústria. A Amazon segue pela mesma trilha: seu serviço de streaming sai “de graça” no Brasil para membros do Amazon Prime, o pacote para clientes pagantes da empresa. Apple e Disney entraram na roda em 2019, lançando seus canais de streaming. “Tem muito mais trabalho disponível. É incrível como estão colocando dinheiro em conteúdo”, diz Sazama. “Há mais espaço para outros tipos de histórias, muito mais variedade.” E arremata, com aquele pessimismo típico dos escritores: “Vamos ver quanto tempo isso dura”.
O ROTEIRO