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Como Balder foi para Hel

A inveja de Loki faz com que o mais belo dos deuses experimente a morte.

Texto: Reinaldo José Lopes | Edição de Arte: Estúdio Nono | Design: Andy Faria | Imagens: Rômulo Pacheco e Getty Images

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odos os deuses amavam Balder, o Bom, irmão mais novo de Thor (e até as gigantas arrastavam asa para ele, como acabamos de ver). Por isso, a assembleia dos Æsir ficou consternada ao saber que ele estava tendo sonhos proféticos assustadores, nos quais se via ameaçado de morte. Coube à mãe de Balder, Frigg, buscar uma solução: a deusa procurou todas as coisas do cosmos e pediu que elas jurassem não fazer mal a seu filho.

O aço e o bronze prometeram que não iriam cortá-lo jamais; a água, que não afogaria Balder; o fogo declarou que ele nunca seria queimado – e o mesmo fizeram todos os animais, todas as plantas e doenças, todos os venenos. Satisfeitos, os deuses resolveram celebrar a nova invulnerabilidade do gentil filho de Odin lançando os mais variados e absurdos ataques contra ele – e rindo quando até rochas gigantescas se despedaçavam contra o peito de Balder sem causar o menor dano.

Loki, no entanto, não estava rindo. Consumido pela inveja, ele se disfarçou de mulher e foi ter com Frigg. “É verdade que todas as coisas do Universo juraram não fazer mal a Balder?”, perguntou a “moça”. “Todas, exceto uma plantinha que cresce a oeste de Valhalla, chamada de visco. Parecia tão jovem que não achei necessário exigir que ela também fizesse o juramento”, explicou Frigg.

Era tudo o que o Trapaceiro precisava saber. Loki obteve um ramo de visco e partiu para onde os deuses ainda estavam se divertindo com a brincadeira “atire qualquer coisa em Balder”. Logo notou que Höður, o irmão cego de Thor e Balder, não estava participando da diversão. “É que não consigo ver onde Balder está, nem tenho arma”, explicou Höður a Loki. “Ora, deverias estar honrando Balder, como fazem os demais. Vou te mostrar onde ele está. Atira este raminho nele”, disse Loki, guiando a mão do deus cego.

<strong>Os deuses testam a invulnerabilidade de Balder: não tinha como isso acabar bem.</strong>
Os deuses testam a invulnerabilidade de Balder: não tinha como isso acabar bem. (Rômulo Pacheco/Superinteressante)
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Höður lançou o ramo de visco, que atravessou o corpo de Balder como se fosse uma bala de revólver, entrando pelo peito e saindo pelas costas, matando o mais belo dos deuses imediatamente. O silêncio consternado e cheio de revolta que tomou conta de Asgard naquela hora é quase impossível de descrever. Os deuses queriam executar Höður naquele mesmo momento, mas estavam em solo consagrado. Frigg foi a primeira a tomar a palavra: perguntou se algum dos Æsir seria capaz de viajar para Hel em nome dela, com o objetivo de oferecer um resgate à rainha dos mortos e conseguir que ela devolvesse Balder à vida.

Hermod, o Ousado, outro dos filhos de Odin, declarou que estava disposto a partir para Hel. Montado em Sleipnir, o cavalo de oito patas do Pai-de-Todos, Hermod saiu cavalgando o mais depressa que pôde, enquanto os demais deuses preparavam o funeral. A cerimônia fúnebre, tal e qual a de muitos dos reis escandinavos do nosso mundo, teve como centro o grande navio do defunto, chamado Ringhorn.

Nele é que os Æsir montaram a pira funerária de Balder, com a intenção de lançá-lo ao mar conforme o corpo do deus era cremado, mas Ringhorn era tão pesado que eles não conseguiam fazer com que ele se mexesse. Foi preciso pedir a ajuda da giganta Hyrrokkin, que chegou ao velório montada num imenso lobo, cujas rédeas eram o corpo vivo de uma serpente venenosa. A giganta empurrou o navio com tanta força que as toras de madeira colocadas debaixo dele, usadas para facilitar seu rolamento rumo ao porto, pegaram fogo, e a terra toda tremeu.

Quando o corpo do deus finalmente foi colocado no convés de seu navio, sua esposa, Nanna, filha de Nep, não conseguiu mais suportar a tristeza de perdê-lo e morreu ali mesmo. Nanna também foi colocada na pira funerária, assim como o cavalo de Balder, com sua sela e seus ricos enfeites.

Os deuses acenderam o fogo para cremar o casal, e Thor estava erguendo o Mjölnir para abençoar a cremação, quando um anão de nome Lit passou correndo na frente do filho de Odin. Provavelmente revoltado com a falta de respeito com o ritual, Thor deu um tremendo pontapé em Lit, que aterrissou dentro da própria pira funerária e morreu incinerado. Em memória do filho, Odin colocou ainda seu anel mágico Draupnir nas chamas.

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Enquanto isso, Hermod cavalgava, por nove dias e nove noites, até que o jovem deus enfim chegou à ponte sobre o rio Gjoll, que separa as regiões dos vivos do reino dos mortos. Lá foi recebido pela donzela chamada Modgud, a guardiã da ponte, que ficou muito surpresa ao notar que o cavaleiro que a interpelava ainda estava vivo. “Viste Balder passar pela estrada de Hel?”, perguntou Hermod à moça. Sim, ele já havia cruzado a ponte, confirmou Modgud.

Cada vez mais ansioso, o deus continuou seu avanço rumo aos portões da Terra dos Mortos. Ao chegar lá, desmontou, apertou a sela de Sleipnir, voltou a subir no cavalo de Odin, esporeou o corcel – e, de um salto, cavalo e cavaleiro venceram os portões de Hel, como se eles fossem a barreira de uma corrida de obstáculos. Hermod desmontou mais uma vez e entrou no salão da assustadora filha de Loki.

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Para sua surpresa, Balder e Nanna estavam à mesa, sentados nos lugares de honra. Hermod passou aquela noite na casa de Hel (decerto tentando dormir e não conseguindo), e pela manhã transmitiu a mensagem dos Æsir à deusa da morte desonrosa, pedindo que ela lhes devolvesse o filho de Odin. “Se todas as coisas do mundo, vivas ou mortas [ou, dependendo da tradução, animadas ou inanimadas], chorarem por ele, então permitirei que ele volte para os Æsir”, declarou Hel. “Se alguém falar contra ele ou se recusar a chorar, então Balder há de permanecer aqui.”

Hermod voltou para Asgard, munido do anel Draupnir, que Balder mandou devolver a Odin, e de um traje de linho que Nanna enviou para Frigg. O mensageiro dos deuses explicou as exigências de Hel, e os Æsir se puseram a implorar lágrimas em favor de Balder a tudo o que existia. Parecia que estava funcionando: todos choravam, até “as pedras, as árvores e todos os metais, da maneira que vemos essas coisas chorarem quando passa o frio congelante e chega o calor”, escreve Snorri.

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Os emissários de Asgard já estavam voltando para casa, imaginando que trariam boas notícias para Odin, quando encontraram uma giganta sentada dentro de uma caverna, com a qual ainda não tinham falado sobre o caso de Balder. Seu nome era Thokk (“gratidão”), e eis como ela respondeu (em verso) quando lhe pediram para chorar pelo deus assassinado:

“Thokk há de chorar
Lágrimas secas
Na pira funerária de Balder.
Morto ou vivo, o filho do velho
Nunca me deu alegria.
Que Hel continue a guardar o que tem.”

Quem era a malvada Thokk, afinal? Os Æsir logo passaram a achar que a criatura rancorosa só podia ser Loki disfarçado mais uma vez, é claro. Quanto ao pobre Höður, usado como instrumento da destruição do próprio irmão, não houve uma lágrima sequer por ele. Odin se uniu à giganta Rindr, gerando Váli, que se tornou adulto após um único dia de vida e matou o deus cego a pedido do pai. Balder ainda está em Hel – pelo menos até o Ragnarök.

Loki faz uma senna – e paga caro por ela

Qualquer pessoa racional esperaria que Loki sossegasse após causar tanta desgraça, mas racionalidade era algo de que o Trapaceiro só desfrutava quando a ideia era enganar algum incauto. Durante uma festa, ele decidiu insultar os demais deuses da forma mais escandalosa possível, fazendo uma cena – ou melhor, uma senna.

Desculpem, não resisti ao trocadilho infame. É que o texto da Edda Poética que relata as barbaridades proferidas por Loki se chama Lokasenna, algo como “A Calúnia de Loki”. Ao compor os versos que relatam esse mito, o antigo poeta escandinavo estava, na verdade, seguindo uma espécie de gênero literário tradicional, conhecido como flyting (“provocação”). A nobre arte do flyting consiste em bolar os xingamentos mais criativos possíveis e jogá-los na cara dos adversários.

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Diz o poema que a baixaria começou quando os Æsir e os elfos estavam reunidos num festim esplêndido, oferecido pelo gigante Ægir, cuja especialidade era a fabricação de cerveja. Dois servos do gigante, chamados Fimafeng e Eldir, tinham ficado responsáveis por organizar os comes e bebes. Os convidados, tranquilos e felizes, puseram-se a elogiar os empregados de Ægir, o que despertou mais uma vez a inveja de Loki.

Entretanto, em vez de empregar uma trama cuidadosamente planejada para destruir o objeto de seu ciúme impunemente, como no caso de Balder, o filho de Laufey (que já devia ter bebido bastante, decerto) simplesmente matou o pobre Fimafeng, do nada. Sacudindo seus escudos e urrando de fúria, os demais deuses botaram Loki para correr e voltaram ao salão para continuar bebendo (ninguém parece ter se dado ao trabalho de organizar um funeral para o servo do gigante, coitado).

A essa altura do campeonato, Loki já tinha perdido qualquer noção que um dia tivera. Esperou um pouco e foi voltando de mansinho para o salão. Entrou e começou a fazer o que só poderíamos classificar como o equivalente asgardiano da chantagem emocional humana:

“Lembra-te, Odin, quando em tempos passados
Misturamos teu sangue e o meu?
Disseste que nunca beberias cerveja
A menos que ela fosse trazida a nós dois.”

O mais incrível é que o Pai-de-Todos cedeu a essa chantagem, talvez se sentindo constrangido pelo peso sagrado da cerimônia de sangue que o unira a Loki no passado, e pediu que um de seus filhos, Vidar, saísse de seu lugar nos bancos para abrir espaço para Loki.

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O filho de Laufey se sentou, fez uma saudação fingida “a todos os deuses e deusas sagrados” e pôs-se a provocar os presentes, um a um. Disse que Bragi, o deus da poesia, não passava de um covarde. Quando Odin tentou intervir, lançou-lhe na cara as injustiças supostamente cometidas pelo Pai-de-Todos. Frigg, a rainha dos deuses, não passaria de uma maníaca por homens, tendo se deitado com Vili e Ve, os irmãos de Odin, disse Loki – e, como se não bastasse, o Trapaceiro ainda se vangloriou, diante da mãe de Balder, de ter arquitetado a morte do mais amado de seus filhos.

Sobrou ainda para os Vanir: os irmãos Freyr e Freyja seriam amantes, acusou Loki, e o pai dos dois, Njord, também os gerou com a própria irmã. Quanto a Sif, mulher de Thor, Loki afirmou tê-la seduzido, assim como a giganta Skadi, mulher de Njord. Nesse exato momento, Thor, que tinha viajado, irrompeu no salão, ameaçando Loki com o Mjölnir. O filho de Laufey ainda teve fôlego para ridicularizar várias das aventuras do Deus do Trovão – até fugir do martelo de Thor, deixando o recinto.

É claro que a quantidade e o teor dos insultos estimularam todos os deuses a desejar vingança, mas é provável que a gota d’água tenha sido mesmo a insanidade de se gabar pela morte de Balder com todas as letras diante de Odin e Frigg. De qualquer jeito, o fato é que os Æsir decidiram que, desta vez, Loki não ficaria impune.

E ele estava ciente do risco que corria. Depois de fugir do salão de Ægir, partiu para as montanhas e construiu para si uma casa com quatro portas, cada uma delas voltada para um dos quatro pontos cardeais, de modo que ele poderia enxergar inimigos se aproximando de qualquer direção. Loki costumava passar a maior parte do tempo mergulhado no lago que havia perto da casa, junto a uma cachoeira, transformado em salmão.

<strong>Ao desafiar os deuses, Loki entrou num beco sem saída. E se condenou ao tormento.</strong>
Ao desafiar os deuses, Loki entrou num beco sem saída. E se condenou ao tormento. (Reprodução/Domínio Público)

Parecia um bom plano, mas, temendo constantemente a captura e a punição que decerto receberia das mãos dos deuses, Loki passava horas tentando imaginar como seus inimigos poderiam pegá-lo. Certo dia, sentado dentro de casa, tomou alguns fios de linho e produziu um emaranhado com eles, criando assim a primeira rede de pesca de todos os tempos. “É dessa maneira que os Æsir podem acabar me capturando”, pensou ele.

Quase como se em resposta ao raciocínio de Loki, o filho de Laufey olhou para uma das portas da casa e viu que uma comitiva de Asgard já estava a pouca distância dali – Odin havia vislumbrado o esconderijo de seu assento elevado, o Hlidskjalf. O trapaceiro lançou a rede recém-inventada ao fogo, correu para a água e se transformou em salmão mais uma vez.

Loki só não contava com a presença de espírito de Kvasir, o mais sábio dos deuses, que havia voltado à vida, aparentemente (Snorri nunca explica direito como ele conseguiu ressuscitar). Ao ver os restos da rede no braseiro de Loki, Kvasir logo percebeu que aquilo eram os restos de um instrumento que seria ótimo para capturar peixes. Instruiu então as demais divindades de Asgard a fabricar uma réplica. Assim, munidos da rede reinventada, todos partiram para a cachoeira e o lago.

O salmão-Loki ainda conseguiu enganá-los algumas vezes, escondendo-se entre as pedras, nadando rapidamente por baixo da rede ou mergulhando muito fundo. Com a ajuda de contrapesos que ajudavam a manter a rede em posição, os Æsir acabaram por encurralá-lo, no entanto, e um último salto desesperado do peixe acabou por levá-lo diretamente aos braços de urso de Thor.

“Sem nenhum pensamento de misericórdia” em relação a Loki, como diz Snorri, os Æsir o conduziram até uma caverna. No lugar estavam ainda a pobre Sigyn, mulher do Trapaceiro, e seus dois filhos de aparência humana, Vali e Narfi. Os deuses transformaram o primeiro num lobo e o atiçaram contra o irmão. Vali, em sua forma lupina, estraçalhou o ventre de Narfi, de forma que os intestinos do filho de Loki ficaram expostos.

Os Æsir usaram as vísceras do rapaz para amarrar o filho de Laufey e o deitaram em cima de três pedras: uma debaixo de seus ombros, outra sob seus quadris e a terceira debaixo dos joelhos. As tripas de Narfi foram então magicamente transformadas em correntes de ferro.

Faltava ainda uma última tortura. Skadi, mulher de Njord, trouxe uma serpente venenosíssima e a amarrou no teto da caverna, bem em cima do rosto do deus acorrentado, de modo que o veneno do réptil cairia em cheio na face do filho de Laufey. Mesmo destroçada pela dor de perder os dois filhos de uma vez, Sigyn se dispôs a aliviar a punição horrenda do marido.

Desde então, ela segura uma tigela acima do rosto de Loki, na qual vai armazenando lentamente o veneno da cobra. Depois de algum tempo, porém, a tigela fica cheia. Enquanto Sigyn esvazia o recipiente o mais rápido que pode, algumas gotas de peçonha invariavelmente queimam a pele do Trapaceiro, que se debate de dor nas profundezas da caverna – e isso explica os terremotos que sentimos cá em cima, na superfície.

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