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Asas cortadas: o caso do Boeing 737 MAX

E outros grandes aviões interditados

por Rafael Battaglia Atualizado em 20 abr 2020, 17h48 - Publicado em
20 jun 2019
16h17

O Boeing 737 MAX nasceu para ser o avião mais popular do planeta. Não faltam motivos. Trata-se da versão mais moderna do maior sucesso da aviação comercial em todos os tempos, o 737.

Ele foi anunciado em 1965, e desde então vendeu 15.232 unidades. O segundo lugar fica com a família do Airbus A320, com 14.639 unidades. Para quem não é familiarizado: os 737 são os aviões da Gol; os A320 compõem o grosso da frota da Latam.      

O 737 MAX, anunciado em 2011, parecia a maior mão na roda da história: um avião seguro, provado por décadas de pousos e decolagens em todos os cantos do mundo, relativamente barato e, agora, com muito mais autonomia. Um 737 MAX consegue levar 186 passageiros por 6,5 mil quilômetros sem reabastecer, contra 5,5 mil quilômetros dos 737 da geração anterior. Isso permite voos sem escala do Brasil para os EUA, por exemplo – um feito para um avião de fuselagem estreita (aqueles de um corredor só).

Um avião pequeno, barato e econômico, capaz de fazer viagens intercontinentais sem escala, era tudo o que as companhias aéreas queriam. Com um avião assim, elas podem gastar pouco e lucrar muito. Logo, o 737 MAX vendeu mais que passagem em promoção para a Disney: foram 5.008 pedidos. Ou seja: quase um terço de todas as encomendas que a linha 737 recebeu em todos os tempos são do MAX, que se tornou o avião mais vendido da história. Nota: como o primeiro deles só saiu da linha de montagem em 2017, ainda havia poucos voando por aí, já que a Boeing só consegue produzir umas 50 unidades por mês. 

5 mil pedidos de compra do 737 MAX foram feitos desde o seu anúncio, em 2011.

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Tudo ia de vento em popa… Até que, em outubro de 2018, um MAX da Lion Air, uma companhia aérea da Indonésia, caiu minutos após a decolagem, matando 189 pessoas. Menos de cinco meses depois, outro acidente envolvendo o modelo da Boeing. Na Etiópia, um MAX da Ethiopian Airlines também caiu logo após sair do chão. 157 pessoas estavam a bordo.

Não demorou para que se tomassem providências. Após a segunda queda, agências reguladoras de aviação no mundo todo suspenderam os voos do 737 MAX. Neste exato momento, todas as 387 aeronaves do tipo que já operavam estão “presas” no chão. O que causou os acidentes? O MAX é realmente um avião perigoso? É o que vamos ver abaixo.

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Boeing, uma biografia

Para entender essa história, é preciso voltar um pouco no tempo. A Boeing nasceu em 1916 sob o nome de Aero Products Company. Seu fundador, William E. Boeing, era um comerciante de madeira entusiasta da última moda da época: os aviões, criados na década anterior. Ele se uniu a Conrad Westervelt, um oficial da Marinha dos EUA, e em 1917 lançaram o primeiro protótipo da empresa (a essa altura já rebatizada com o sobrenome de William). Era um hidroavião de dois lugares. Quando a Boeing passou a comercializar aviões para as Forças Armadas dos EUA, a coisa deslanchou.

No final dos anos 1920, a empresa criou um serviço de correio aéreo, adquiriu fabricantes menores, comprou e fundiu pequenas companhias aéreas. Com tudo isso debaixo de suas asas, a Boeing passou a dominar tanto o mercado de manufatura como o de linhas comerciais. Esse monopólio só acabou em 1934, quando uma nova legislação antitruste entrou em vigor nos EUA, forçando a Boeing a separar a fabricação de aviões do transporte aéreo. No fim, a empresa escolheu a primeira opção. Curiosidade: um dos resultados desse “divórcio” é a United Airlines, hoje uma das principais companhias do ramo.

A Boeing seguiu abastecendo as frotas de exércitos e operadoras aéreas. No final dos anos 1950, lançou o modelo 707, seu primeiro avião comercial a jato. O sucesso da aeronave ajudou a empresa a liderar o mercado por anos sem um rival para quebrar sua hegemonia. E é aí que entra outro nome conhecido do mundo dos ares: a Airbus.

Criada em 1967, a Airbus é fruto de um consórcio internacional entre Alemanha, França e Inglaterra. A ideia era combinar as três potências para fazer frente à Boeing. O primeiro modelo da empresa, o A300, fez seu voo inaugural em outubro de 1972.

Hoje, Boeing e Airbus dominam o mercado de fabricação de aviões comerciais, com uma participação no setor de 38% e 28%, respectivamente. Em se tratando de aeronaves de grande porte (do 737 e do A320 para cima), as duas empresas respondem por 99% das encomendas – um duopólio completo.

Nos últimos anos, a disputa acirrada em número de pedidos e entregas de aviões entre as duas ditaram os rumos da indústria, e é justamente essa competição que pode ajudar a explicar o caso do 737 MAX.

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Duopólio

Em 1984, a Airbus anunciou sua aeronave mais revolucionária, o A320. O avião europeu lançou tecnologias excitantes – como o sistema fly-by-wire, que permite ao avião ser pilotado por um joystick. E as vendas foram uma maravilha: até por isso a família A320 vendeu quase tanto quanto a 737 até hoje, mesmo sendo 20 anos mais jovem.  Como resposta, a Boeing resolveu modernizar o 737. A série variante foi chamada de Next Generation. Apelidados de 737NG, eles começaram a voar comercialmente em 1998.

A disputa comercial continuou, e a Boeing não parecia se preocupar com o crescimento da rival. Em 2005, uma acertada estratégia de vendas, construída desde a década anterior pelo diretor comercial John Leary, fez a Airbus ultrapassar a Boeing pela primeira vez em número de pedidos de novas aeronaves.

Em 2008, a Airbus já ganhava também na quantidade de aviões produzidos em um ano: 483 contra 375 feitos pela Boeing. Dois anos depois, a fabricante europeia anunciou a construção do A320neo, uma versão com motor maior, 15% mais econômico.

Sim. É que aviões comerciais a jato usam motores turbofan. E um turbofan tem duas partes. Uma é o coração do motor, que é onde acontece a queima de combustível. Em volta desse core, que fica encapsulado lá dentro, há uma área em que o ar passa sem queimar. Esse ar “virgem” entra por uma boca grande e sai por um orifício pequeno.

X-ray style turbofan jet engine isolated on black background

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Sabe quando você coloca o polegar na ponta de uma mangueira para criar um jato? É isso que acontece ali. Boa parte da tração do avião vem dessa força. As pás que sugam esse ar são movidas pelo coração do motor, mas exigem pouco combustível em relação ao empuxo extra que oferecem. Quanto maior o diâmetro das pás, então, maior economia de combustível. Por isso que os aviões modernos têm motores cada vez maiores.

O desafio para os fabricantes nas últimas décadas tem sido construir aviões aerodinamicamente preparados para motores cada vez mais gordos. A Airbus foi bem-sucedida em adaptar o A320 para levar turbofans gigantes. E esse modelo adaptado, o A320neo, virou um sucesso comercial. Em 2011, a American Airlines, maior companhia aérea do mundo e que só comprava aviões da Boeing, encomendou uma frota de centenas de novos jatos da Airbus. A gigante americana perigava ficar para trás.

Para reconquistar a clientela, a Boeing precisava agir rápido. Criar um avião totalmente novo para carregar turbofans de última geração não valeria a pena – o processo demoraria praticamente uma década. Como resolver esse problema? A decisão veio em 2011: colocar motores enormes no velho 737. Nascia ali o conceito do MAX.

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A promessa da Boeing era colocá-lo para voar em seis anos. E cumpriram: o primeiro voo comercial foi em maio de 2017. Os pedidos de produção do modelo foram imediatos e, em um ano, ele superou os números do seu concorrente direto, o A320neo.

A principal mudança do 737 MAX foi, claro, seu motor, que passou a ser maior. Só tinha um pequeno problema: ao contrário do A320neo, a distância entre o MAX e o solo era pequena demais para apenas substituir as turbinas. A solução foi colocar o motor mais para cima e para frente que o convencional.

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(Guilherme Henrique/Superinteressante)
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Tudo parecia resolvido. Mas essa pequena alteração causava um problema aerodinâmico. Durante a decolagem, quando a aeronave está em máximo impulso, a tendência era que o nariz da aeronave se elevasse mais do que o normal, aumentando o chamado ângulo de ataque. Se a parte frontal do avião sobe demais, o avião perde sustentação e cai. Entra em “stall”, como diz o pessoal da aviação.

Para corrigir, a Boeing desenvolveu um software específico para o MAX, o MCAS (sigla em inglês para Sistema de Aumento de Características de Manobra). Por meio de um sensor localizado no bico do avião, o sistema reconhece quando o avião está subindo mais do que deveria e entra em ação para corrigir o ângulo do avião automaticamente. Até aí, tudo bem. Só faltou avisar os pilotos.

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Pecado original

Investigações preliminares no acidente da Lion Air, na Indonésia, indicam que houve uma falha no MCAS durante a leitura do ângulo de ataque feita pelos sensores. A aeronave, em vez de estabilizar, continuou caindo. E os pilotos não faziam ideia do que estava acontecendo.

De acordo com a Boeing, nem o indicador do ângulo de ataque, nem o alerta de divergência dos sensores desse ângulo são considerados necessários para a operação normal e segura do avião.

Reportagens investigativas feitas após os acidentes mostram como a produção do 737 MAX foi turbulenta. Segundo o jornal The New York Times, engenheiros que trabalharam no MAX contam que os prazos eram sempre apertados. A equipe responsável pelo design, por exemplo, entregava 16 desenhos técnicos por semana – o dobro do normal.

Além disso, toda a produção era baseada na ideia da máxima redução de custos possível. “Qualquer projeto que criássemos não poderia exigir nenhum novo treinamento em simulador”, disse ao Times Rick Ludtke, engenheiro que participou do design do cockpit do MAX. Exigir treinamentos específicos elevaria as despesas tanto da Boeing quanto dos futuros compradores do MAX, o que iria na contramão da proposta de produzir um modelo barato. “Havia a oportunidade de fazer grandes saltos tecnológicos, mas essas restrições nos impediram”, revelou Ludtke.

O engenheiro foi demitido em março de 2017, logo após a certificação do MAX pela Administração Federal de Aviação (FAA), a agência que regula a aviação civil dos EUA. Em uma entrevista à Bloomberg, Ludtke conta que, em vez de testes caros em simuladores, quem já operava os 737 anteriores conseguiria se habilitar para o MAX apenas com um curso de duas horas, feito em um iPad. De acordo com vários comandantes, isso não era o suficiente – a começar pela associação de pilotos da American Airlines, que formalizou uma reclamação junto à FAA.

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No Brasil, a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil) já exigia um treinamento extra para pilotos que queiram subir a bordo do MAX. À SUPER, a agência explica que, apesar da certificação internacional, existe por aqui a cultura de realizar uma segunda verificação nas aeronaves que chegam ao País. Os técnicos da agência entenderam que, por conta do MCAS, o software estabilizador de voo, era preciso um treinamento teórico específico.

Por aqui,  a única a operar o 737 MAX é a Gol, com sete unidades do tipo, que fizeram 2,9 mil voos desde junho de 2018. Enquanto a decisão dos órgãos regulatórios não sai, eles estão estacionados no centro de manutenção da companhia, em Confins (MG).

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(Guilherme Henrique/Superinteressante)
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No chão

Apesar da polêmica da Boeing, não é a primeira vez que uma frota inteira de aeronaves é impedida de levantar voo. Em 1952, a De Havilland Company lançava uma aeronave que prometia revolucionar o mercado. O Comet era o primeiro avião comercial a jato, e sua velocidade de voo (mais de 700 km/h) era praticamente o dobro da concorrência.

Só tem um detalhe: ele sofreu cinco acidentes em dois anos. O motivo? Janelas quadradas. Pois é: esse formato não aguentava a pressão exercida durante uma viagem a uma velocidade tão grande. As consequências eram assustadoras: o avião se desintegrava no ar. Claro que o Comet acabou proibido de voar.

Em 1958, após a suspensão, a Havilland lançou o Comet 4, uma nova versão com todas as falhas corrigidas. Mas era tarde demais. Nesse meio-tempo, a Boeing estreou seu 707, que se popularizou e jogou o Comet para escanteio. Pelo menos, o modelo contribuiu com um importante aprendizado: janelas devem ser curvas, para eliminar possíveis pontos de tensão, e nunca quadradas.

Outro caso notável é de um antigo conhecido dos brasileiros: o Electra, produzido pela americana Lockheed. A aeronave, de motor turboélice, foi, por décadas, a responsável pela ponte-aérea Rio-São Paulo, operando de forma exclusiva nessa rota de 1975 a 1991.

O Electra foi tão marcante que, em 1992, quando foi aposentado, seu último voo recebeu ampla cobertura da imprensa nacional. Mas o começo dessa aeronave não foi nem um pouco glamouroso.

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Entre 1959 e 1960, dois anos após o seu lançamento, o Electra se envolveu em três acidentes. Antes disso, era comum que passageiros se queixassem de ruídos próximos à asa do avião. Aí estava a causa do problema. A estrutura entre o motor e a asa não era rígida o bastante para amortecer a vibração e evitar que esse movimento afetasse as asas – elas quebravam em pleno voo. A solução foi simples: além do reforço nessa parte, limitaram a velocidade máxima na qual o modelo poderia operar.

38% do mercado de aviação comercial é dominado pela Boeing. A Airbus vem em segundo, com 28%.

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Viaje tranquilo

De volta ao MAX. Por exigência da FAA, a Boeing trabalha em uma atualização do MCAS, dos sistemas de segurança do avião e em um programa aprimorado de treinamento para os pilotos.

Mas, ao contrário do que esse caso dá a entender, viajar de avião continua sendo quase tão seguro quanto andar de elevador. “A probabilidade de você sofrer um acidente no caminho de ida e volta ao aeroporto, por exemplo, é maior do que durante a sua viagem”, diz o escritor Ivan Sant’Anna, autor de diversos livros sobre desastres aéreos.

De fato. Segundo a Aviation Safety Network, que monitora acidentes aéreos desde 1996, 2018 foi o terceiro ano mais seguro na história da aviação comercial: a taxa foi de um acidente fatal para cada 2,5 milhões de decolagens. Pode viajar tranquilo.

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