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Ciência

Alysson Muotri: o criador de cérebros

O biólogo Alysson Muotri busca uma cura para o autismo cultivando células neurais em laboratório – e, no tempo livre, investiga o pensamento dos neandertais e as origens da nossa personalidade.

por Bruno Vaiano, com ilustrações de Tayrine Cruz Atualizado em 8 fev 2021, 12h17 - Publicado em
24 out 2018
12h27

Quem quer ser da equipe de Alysson Muotri – que desde 2008 chefia um laboratório com 23 pessoas na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) – pode enviar o currículo pelo site oficial. Mas, atenção: o link “trabalhe conosco” é ilustrado por um recorte de jornal amarelado, com um anúncio de emprego peculiar. “Procuram-se candidatos. Jornada arriscada, salários baixos, frio cortante, longos meses de absoluta escuridão, perigo constante. O retorno a salvo é duvidoso. Honra e reconhecimento em caso de sucesso.”

Quem assina é o inglês Ernest Shackleton, líder de duas expedições à Antártida na primeira década do século 20. Reza a lenda que ele de fato convocou voluntários nos classificados do jornal Times – mas há quem suspeite que essa pequena pérola seja uma fraude, já que não foi encontrada nos arquivos da publicação britânica. Fraude ou não, Muotri não poderia ter escolhido uma piadinha melhor para definir sua filosofia de trabalho. De sua bancada, já saíram minicérebros autistas curados. Minicérebros com Zika vírus. E, num toque de ficção científica, minicérebros neandertais comandando robôs de quatro patas.

Um “minicérebro” é um conjunto de células neuronais criado em laboratório – para que o cientista possa simular (e estudar) as reações de um cérebro real sem ter de abrir a cabeça de alguém. Pesquisa de ponta? Claro. Arriscado? De certa forma. Mas honra e reconhecimento não faltam: trabalhando na vanguarda da genética e da neurociência, Muotri é o biólogo brasileiro que publica o maior número de artigos científicos de impacto atualmente.

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Imagem sem crédito e fonte Alysson Muotri, 44, nascido em São Paulo, em seu laboratório na Universidade da Califórnia em San Diego (UCDS). (Universidade da Califórnia em San Diego/Divulgação)

Graduado em biologia na Unicamp, Muotri foi à USP em 2000 fazer doutorado orientado por Carlos Menck, um reconhecido geneticista brasileiro. Depois, bateu na porta do Instituto Salk, o mais importante centro de pesquisas biomédicas do mundo, e convenceu Fred Gage, uma lenda viva da neurociência, a adotá-lo para um pós-doutorado. Em 2008, ganhou o cargo de professor e o laboratório na UCSD – onde tem liberdade para fazer qualquer estripulia genética – desde que seja, em suas palavras, “legal o suficiente”. Para entender o trabalho de Muotri – e por que ele é tão importante –, precisamos primeiro entender o habitat natural dos pensamentos: as células.

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O minúsculo mundo das células

O minúsculo mundo das células

Células são pacotinhos microscópicos de consistência oleosa no interior dos quais ocorrem as reações bioquímicas que chamamos de vida. Seres simples, como as bactérias, consistem em uma única célula. Seres complexos, como você, são aglomerados de 37,2 trilhões de células. 37,2 trilhões é o número de segundos que se passaram desde que o Homo erectus, um ancestral remoto do ser humano, saiu da África pela primeira vez e deu origem aos neandertais. O fato de que é necessário esse tanto de células para formar um pedaço de carne de mais ou menos 1,7 m dá uma boa noção do quanto elas são minúsculas.

Células não têm consciência, ambições ou desejos, o que torna especialmente assustador o fato de que cada uma delas sabe exatamente o que fazer para construir e operar seu corpo, desde o dia em que você foi concebido. Todas começam como células-tronco embrionárias, com potencial para exercer qualquer função. Conforme se multiplicam, algumas tiram a sorte grande e se especializam para gerar seu coração. Outras se relegam resilientemente ao papel de vesícula biliar. Elas sabem o que fazer porque cada uma contém, em seu núcleo, uma cópia completa do seu genoma – o manual de instruções que dá o passo a passo para montar um ser humano.

Vejamos o caso das células do fígado. Para se tornarem bons e confiáveis fígados, elas só precisariam dos genes que têm a ver… bem, com o fígado. Mesmo assim, elas carregam os genes para todo o resto. Cada um dos nossos cerca de 30 mil genes é ativado em sequências diferentes para formar tudo, do dedão do pé ao tímpano, em uma ação coordenada muitas vezes mais complexa que a de um maestro marcando a entrada e saída de cada instrumento da orquestra. Com a diferença de que não há maestro. A partitura do corpo, o genoma, se lê sozinha. Muotri, então, é uma espécie de maestro. Que consegue reger (e reverter) esse processo celular à sua maneira. E usá-lo a nosso favor.

Foi assim que, em 2010, ele foi capa da Cell, uma das revistas científicas mais influentes do mundo. Sua pesquisa consistiu no seguinte: primeiro, Muotri extraiu um tipo de célula chamado fibroblasto de uma pessoa com síndrome de Rett, uma forma grave de autismo. Depois, deu marcha a ré no desenvolvimento dessa célula, até ela voltar ao estágio embrionário. Então forçou-a a se tornar um neurônio, uma célula do cérebro. Esse neurônio era “autista”, já que veio de um paciente com síndrome de Rett. E era essa mesmo a ideia, porque o próximo passo seria curar o neurônio.

O processo de transformar uma célula em outra é chamado de “reprogramação celular”, e em 2012 rendeu um Prêmio Nobel a seu inventor, o japonês Shinya Yamanaka. Alysson, inspirado por ele, se tornou um ninja da reprogramação. E foi o primeiro que teve a ideia de usá-la para criar células propositalmente doentes, para então tentar curá-las e descobrir novos remédios no processo. Esse era só o começo. Logo ele descobriu como incentivar a multiplicação desses neurônios feitos sob medida para estudar doenças. E um conjunto de neurônios tem nome: cérebro. Muotri passou a construir minicérebros.

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(Tayrine Cruz/Superinteressante)
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Em busca de uma cura para o autismo

Em busca de uma cura para o autismo

Um minicérebro é um punhado de neurônios do tamanho de uma ervilha. Sua função é ser uma maquete viva. O dito-cujo não consegue crescer muito, pois não tem vasos sanguíneos para irrigá-lo (sustentar um órgão sem sangue é como abastecer um prédio com água sem instalar encanamento – até dá, mas a eficiência é quase zero). O minicérebro, até onde sabemos, não é grande nem complexo o suficiente para manifestar consciência. E também não se especializa: ao contrário das repartições de um cérebro real, que se dedicam a falar, armazenar memórias ou interpretar estímulos visuais, o minicérebro é uma folha em branco: pode ser o que Muotri quiser, basta estimulá-lo para tal.

Essas miniaturas demoram exatamente nove meses para amadurecer, e como um ser humano, atingem o ápice da atividade elétrica no momento em que deveriam nascer – caso estivessem no útero, dentro de um crânio, é claro. Daí para a frente, a vida é longa: alguns estão com Muotri há três anos. Curar minicérebros doentes é parecido com curar cérebros reais, e por isso eles são modelos úteis para testar uma infinidade de drogas para problemas neurológicos – mais úteis do que ratos de laboratório. Com eles, os testes clínicos ficam mais rápidos e as drogas chegam mais cedo ao mercado: o remédio que curou o neurônio com síndrome de Rett em 2010 já está sendo aprovado para uso em humanos.

Em 2013, Muotri propôs ao governo federal a implantação de um instituto de pesquisas sobre autismo no Brasil. O projeto não saiu do papel com recursos públicos, então ele e seus colegas partiram para a iniciativa privada e fundaram a Tismoo – uma start-up de cunho social com escritórios nos EUA, no Brasil e em Portugal. O objetivo da Tismoo é simples: criar minicérebros de pacientes autistas e usá-los como cobaias para testar tratamentos personalizados.

Em 2013, no governo Dilma, Muotri, em parceira com um grupo de ativistas, propôs ao governo federal a implantação de instituto de pesquisas sobre autismo no Brasil. O projeto não saiu do papel com recursos públicos, então eles partiram para iniciativa privada e fundaram a Tismoo – uma start-up sem fins lucrativos com escritórios dos EUA, no Brasil e em Portugal. O objetivo da Tismoo é simples: criar minicérebros de pacientes autistas e usá-los como cobaias para testar tratamentos personalizados em laboratório. Quando o tratamento ideal é encontrado, ele pode ser aplicado à pessoa de verdade.

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(Tayrine Cruz/Superinteressante)
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Pensamentos pré-históricos

Pensamentos pré-históricos

Os minicérebros não servem só para a pesquisa médica. Recentemente, arqueólogos do Instituto Max Plank, na Alemanha, conseguiram isolar e sequenciar fragmentos de DNA de neandertais, nossos primos do gênero Homo extintos há 30 mil anos. Muotri pegou um desses genes, diretamente associado ao desenvolvimento cerebral, e usou a técnica de edição genética CRISPr/Cas9 para enxertá-lo no código genético de um neurônio comum. Bingo: surgiram células cerebrais híbridas, meio humanas, meio neandertais.

Logo de cara, ele viu algo estranho: diferentemente dos minicérebros tradicionais, que são redondinhos, os de neandertais lembram pipocas – aquelas da embalagem rosa. A estranheza não se limitou à aparência. “Um minicérebro de autista tem menos conexões, as redes neurais que se formam são defectivas. E a gente vê essa mesma característica nos neandertais”, diz Muotri. De fato, há indícios arqueológicos de que neandertais eram menos sociáveis (viviam em grupos pequenos) e tinham uma capacidade cognitiva menor que a dos humanos modernos, mesmo contando com cérebros maiores.

 

Para dar prosseguimento à pesquisa, surgiu a ideia de atrelar as pipoquinhas neandertais a robôs quadrúpedes. Elas se conectam à engenhoca por meio de 64 eletrodos, como em um eletroencefalograma (o típico exame de desenho animado, em que fios são conectados à cabeça do paciente para analisar a atividade cerebral). A ideia é simular em laboratório o momento em que um bebê neandertal recém-nascido começaria a andar, fornecendo a ele um sistema de exploração do ambiente análogo às pernas – e, dessa forma, entender melhor como era o crescimento das crianças dessa espécie extinta. 

No início, são os cientistas que fazem o robô andar, e os sinais elétricos correspondentes a esse movimento circulam passivamente pelo minicérebro, moldando suas conexões neurais de acordo com a tarefa. Em outras palavras, ele está aprendendo. Assim que acaba o aprendizado, o sentido do fluxo de informação se inverte, e o organóide passa a comandar suas pernas biônicas por conta própria. Sinistro. E genial. 

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Genes saltadores e as origens da personalidade

Genes saltadores e as origens da personalidade

Em 2005, enquanto explorava células-tronco e neurônios pela primeira vez em seu pós-doutorado no Instituto Salk, Muotri tocou, em paralelo, outra pesquisa de vanguarda. A dúvida era a seguinte: cérebros humanos são como impressões digitais: não há dois iguais. Nem em gêmeos idênticos – e essa informação faz qualquer biólogo coçar a cabeça. Afinal, gêmeos idênticos são, para todos os efeitos, clones. Como explicar as diferenças?

Em 2005, Muotri e seu orientador, Fred Gage, mataram a charada. Eles descobriram que, enquanto um bebê se desenvolve no útero – ou mesmo depois, na vida adulta –, pedacinhos de DNA chamados “genes saltadores” vagam sem rumo no núcleo das células que compõem o cérebro, copiando e colando a si próprios. Eles embaralham o genoma em diversos pontos, alterando ligeiramente (às vezes, radicalmente) a atividade de cada uma das células.

Muotri explica: “Se você for à África hoje, pegar dez chimpanzés e analisar o genoma deles, você vai ver que eles são altamente polimórficos – ou seja, que são muito diferentes entre si. Há mais variações no genoma desses dez chimpanzés do que no genoma da humanidade inteira. Por outro lado, se você colocar esses dez chimpanzés para fazer um teste cognitivo, todos eles vão ter mais ou menos a mesma performance. Não há um chimpanzé Einstein. Não há um chimpanzé Picasso, altamente criativo.”

Ou seja: todas as pessoas vivas hoje, da Somália ao Japão, descendem de um único (e pequeno) grupo de Homo sapiens pré-históricos. Somos muito parecidos; nossa variedade genética é pequena. Mas ela é compensada por uma explosão de criatividade do interior do crânio. O embaralhamento do genoma por genes saltadores garante que cada cérebro seja único. E esse pode ter sido o grande segredo para a humanidade ter chegado até aqui.

Cada ambiente exige habilidades diferentes. Se você precisa garantir a sobrevivência de seus filhos, mas o futuro é incerto, é melhor produzir filhos diferentes – e torcer para pelo menos um deles ser o ideal – do que apostar em uma solução única. Sem isso, nossa espécie talvez não tivesse colonizado quase todos os ambientes do planeta. E não teria produzido Einsteins e Picassos. Palmas, então, para os genes saltadores de Alysson Muotri. Se não fossem eles, talvez os neurônios desse cientista não estivessem conectados na medida certa para comandar um laboratório tão criativo.

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