A Lei de Grimm
O
latim falado no Império Romano é uma língua morta. Isso significa que ele não é mais o idioma nativo de nenhum grupamento humano. Não há nenhum vilarejo perdido na Europa em que os bebês aprendam a falar em latim. E quem aprende tem o propósito de estudar a língua, não de pedir um misto na padaria do Vaticano.
Ou seja: o latim é como um dinossauro. Não há mais dinossauros por aí, mas descobrimos sobre eles com o auxílio de fósseis. Línguas também deixam fósseis. Existe, por exemplo, a Eneida, poema épico de Virgílio. Ele ilustra o latim rebuscado dos textos literários no auge da civilização romana.
Nas ruas, porém, falava-se o latim vulgar: uma língua que foi tão viva quanto o português é hoje, cuja pronúncia podemos conhecer graças aos erros de ortografia em pichações. Entenda assim: se um arqueólogo investigando o Brasil daqui mil anos visse um muro com “França” escrito “Franssa”, ele descobriria que “ç” e “ss” eram pronunciados por nós com o mesmo som.
Os arqueólogos de hoje fizeram deduções parecidas sobre o latim graças às inscrições nos muros de Pompeia. (Um dos mais famosos avisos preservados pelas cinzas do Vesúvio diz: “Cuidado, você que aqui defeca. Que sofra a fúria de Júpiter caso ignore esta mensagem”.)
O latim não morreu abruptamente. Ele se transformou, de maneira gradual, em outras línguas. No Brasil, por exemplo, ainda falamos latim. A língua portuguesa do professor Pasquale é basicamente o latim vulgar com o sotaque da província romana da Lusitânia, onde hoje fica Portugal (mais as influências árabes que vieram depois). Após 2 mil anos de transformações – jovens sempre falam diferente de seus avós –, muita coisa mudou.
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Sapere e mutare, por exemplo, se tornaram “saber” e “mudar”: as letras “p” e “t” ali foram trocadas por “b” e “d”, cujo som é mais macio. Fale as palavras em voz alta e preste atenção nos movimentos da sua boca: o “b” soa quase igual ao “p”, só que mais preguiçoso.
Esse enfraquecimento das consoantes já estava nas pichações: a palavra pacatus foi pintada numa parede em Pompeia como pagatus – sinal de que, no latim vulgar daquela região, o “c” já estava sendo trocado por “g”. De fato, a palavra securum, em latim, se tornou “seguro” em português. Essas transformações continuam ocorrendo: No Recife, pronuncia-se o “d” em “dia” na ponta da língua, mas em São Paulo, onde essa pronúncia já foi comum, agora o normal é falar “djia”.
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O latim obviamente não surgiu do nada. Do mesmo jeito que o português, o espanhol, o italiano, o francês e o romeno vieram do latim, o latim veio de uma língua ainda mais antiga, chamada pelos linguistas de proto-indo-europeu (PIE). Com algumas poucas exceções – como o basco, o finlandês e o húngaro –, todas as línguas europeias atuais descendem do proto-indo-europeu. Inglês, alemão, russo, polonês são todos primos de segundo grau das línguas latinas. O mesmo vale para o persa falado no Irã e o sânscrito, que deu origem a diversos idiomas indianos. Eles também descendem do PIE.
O PIE existiu por volta de 3 mil anos antes de Cristo, uma época anterior à escrita. A hipótese mais aceita afirma que seus falantes originais foram um povo das estepes áridas do sul da Rússia, na faixa de continente entre os mares Cáspio e Negro. Em planícies vastas, com poucas árvores, a domesticação de cavalos e a tecnologia da roda permitiram que esses pastores do neolítico usassem carroças. Eles se espalharam para o Oeste rumo à Europa, e para o Leste rumo à Pérsia e à Índia. O proto-indo-europeu foi assimilado por toda a Eurásia, e deu origem a dezenas de línguas-filhas.
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Não é difícil, para um leigo, sacar que português e espanhol são línguas irmãs, filhas do mesmo pai, o latim. Mas o proto-indo-europeu é muito antigo. Ele não é o pai, ele é o avô – e é bem mais difícil perceber que português, polonês e sânscrito são primos. A não ser que você seja muito observador. E é aqui que entra Jacob Grimm.
Jacob notou o seguinte: quando uma palavra em uma língua latina começa com a letra “p”, como “peixe”, “pé” e “pai”, na língua germânica ela começa com “f”, como fish, feet e father. Ele fez essa observação em alemão, obviamente, em que essa sequência de palavras fica Fisch, Fuß, e Vater. (em alemão, o “v” de Vater tem som de “f”, a letra “ß” tem som de “ss” e todos os substantivos começam com maiúscula).
Jacob Grimm foi o Darwin dos linguistas: descobriu as leis que ditaram a evolução das palavras alemãs.
Não era coincidência. Jacob Grimm percebeu muitas outras regras. O “g”, por exemplo, era intercambiável com o “c”. Assim, palavras como “gelo”, que em latim se escreve gelu, são parentes das palavras cold em inglês e Kalt em alemão, que significam “frio”. Grimm fez pela linguística o que Darwin fez pela biologia: encontrou as leis de transformação fonética que, ao longo de milhares de anos, guiaram o caminho do proto-indo-europeu até o alemão.
A partir daí, vários linguistas descobriram as leis por trás de dezenas de sons. Hoje, conhecemos com precisão a árvore genealógica das línguas, ao menos do PIE para a frente, com centenas de idiomas vivos e extintos. Entenda abaixo:
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1. Proto-indo-europeu
Em 1822, Jacob Grimm publicou as Leis de Grimm, que explicam a evolução das línguas germânicas a partir do proto-indo-europeu (PIE), um idioma pré-histórico. Falado há 3 mil anos, o PIE deu origem ao latim e ao protogermânico. Não há registros escritos, mas uma “engenharia reversa” permitiu descobrir como as palavras eram pronunciadas. Acompanhe a evolução de três delas:
1.*peysk- (peixe)
2.*kmtóm (cem)
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3.*h₃dónts (dente)
Os asteriscos nas palavras em proto-indo-europeu e protogermânico indicam que elas foram reconstruídas pelos linguistas porque não havia registros escritos. Essas mesmas palavras podem conter acentos, símbolos e números que não existem no alfabeto latino; eles indicam aos especialistas a maneira exata de pronunciá-las.
2. Proto-germânico
Entre outras regras, Grimm descobriu que P virou F (ex. 1), o K virou H (ex. 2) e o D virou T (ex. 3) na passagem do PIE para o protogermânico. O inglês e o alemão são assim até hoje. No alemão, o T mudou de novo para Z, veja Zahn (“pronunciado “tzán”). Compare abaixo:
Proto-germânico
1.*fiskaz (peixe)
2.*hundą, (cem)
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3.*tanþs (dente)
Alemão
1. Fisch (peixe)
2. Hundert (cem)
3. Zahn (dente)
Inglês
1. fish (peixe)
2. hundred (cem)
3. tooth (dente)
3. Latim
A língua de Roma evoluiu a partir de outro ramo do proto-indo-europeu, e não obedeceu às Leis de Grimm. Mas outras transformações ocorreram no ramo latino. A palavra “cem”, que em português tem som de S, vem de centum, que provavelmente tinha som de K (“quentum”). Compare abaixo:
Latim
1. piscis (peixe)
2. centum (cem)
3. dens (dente)
Português
1.Peixe
2.Cem
3. Dente
Francês
1.poisson (peixe)
2.cent (cem)
3.dent (dente)