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A origem do vírus

O Instituto de Virologia de Wuhan fazia pesquisas com coronavírus – incluindo o RaTG13, ancestral mais próximo do Sars-Cov-2. Não seguia todas as normas de segurança. E, em 2015, sua principal cientista inseriu a proteína spike num vírus de morcego para torná-lo capaz de infectar células humanas. Entenda por que a tese de que o Sars-CoV-2 surgiu num acidente de laboratório, inicialmente descartada, volta a ganhar força.

Texto Bruno Garattoni (colaborou Tiago Cordeiro)
Ilustração Gustavo Magalhães
Design Juliana Krauss

Texto originalmente publicado pela Super em junho de 2021

“Os estudos de ganho de função, ou pesquisas que aumentam a capacidade de um patógeno causar doenças, ajudam a definir (…) o potencial pandêmico de agentes infecciosos emergentes, orientando esforços de preparação e de saúde pública”, diz um documento (1) enviado pelo Ministério da Saúde dos EUA para 18 universidades e centros de pesquisa do país em outubro de 2014. Porém, continua o texto, “estudos de ganho de função podem envolver riscos de biossegurança”, e por isso “o Governo dos EUA irá interromper, com efeito imediato, o financiamento de pesquisas [do tipo] com vírus influenza, Mers ou Sars”.

Esse tipo de estudo era realizado havia décadas, mas começou a gerar polêmica em 2011, quando uma equipe de cientistas dos EUA, da Inglaterra e da Holanda, e um segundo grupo do Japão, criaram versões modificadas do vírus H5N1 com uma nova habilidade: infectar mamíferos (2) (não só aves, como ele normalmente faz). Se esse vírus escapasse do laboratório, poderia começar uma pandemia. Por isso, os EUA decidiram banir as experiências do tipo.   

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Mas também não queriam ficar por fora das pesquisas com vírus. Em maio de 2014, o National Institutes of Health (NIH) autorizou o projeto 2R01AI110964-06: “Entendendo o Risco da Emergência de Coronavírus de Morcegos”. Seu objetivo era identificar possíveis ameaças biológicas na China, onde “morcegos e outras espécies selvagens são caçadas, vendidas, sacrificadas e comidas”, o que gera “alto risco de emergência de novos CoVs [coronavírus]”.

Para tocar o projeto, o NIH contratou o virologista inglês Peter Daszak, dono da EcoHealth Alliance, empresa especializada em coordenar pesquisas científicas internacionais. Daszak recebeu US$ 3,7 milhões – e repassou US$ 600 mil para um laboratório que ficaria encarregado de coletar e estudar coronavírus. Uma quantia quase simbólica, que serviu apenas para formalizar a cooperação científica entre EUA e China. O tal laboratório era o Instituto de Virologia de Wuhan.

Wuhan. Foi lá que o Sars-CoV-2 surgiu e infectou os primeiros humanos – depois de eles terem comido ou manuseado carne de algum animal selvagem vendido no mercado Huanan, na zona oeste da cidade. Essa é a teoria mais aceita para a gênese da pandemia. Mas não a única. Nos últimos meses, a tese de que o vírus teria se originado após um vazamento acidental no instituto de Wuhan deixou de ser uma teoria conspiratória e despertou o interesse de cientistas e governos – inclusive o dos EUA, que pretende realizar sua própria investigação a respeito.

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Quatro novos coronavírus foram descobertos, em 2013, numa caverna em Tongguan. Eles foram levados para estudos em Wuhan.
Quatro novos coronavírus foram descobertos, em 2013, numa caverna em Tongguan. Eles foram levados para estudos em Wuhan. (Ilustração: Gustavo Magalhães | Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

Isso aconteceu por três motivos. O primeiro é o fim do governo Donald Trump. A tese do mercado Huanan nunca foi plenamente satisfatória (em janeiro de 2020, um estudo chinês que analisou os primeiros 41 internados com Covid constatou que 13 deles não tinham qualquer relação com o mercado (3)). Mesmo assim, poucos cientistas se atreviam a questioná-la – pois Trump costumava fazer isso de forma tresloucada e sem argumentos, o que politizava a questão e inibia uma discussão racional.

Segundo, o relatório oficial da OMS sobre as origens do vírus (4), finalmente publicado em fevereiro – e mal recebido pela comunidade científica. “As duas teorias [origem natural  x  vazamento de laboratório] não foram abordadas de forma equilibrada”, diz uma carta assinada por 18 pesquisadores das universidades mais importantes do mundo (MIT, Harvard, Stanford, Yale, Califórnia e Chicago, entre outras) e publicada em maio (5).

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Das 120 páginas do relatório da OMS – que classifica a teoria do mercado Huanan como a mais plausível, e o vazamento como “extremamente improvável” – apenas oito efetivamente discutem as possíveis origens do vírus, de forma superficial. “Uma investigação crível deveria exigir acesso a arquivos, amostras, pessoas e instalações do Instituto de Virologia de Wuhan. A OMS não fez nada disso”, ataca o biólogo molecular Richard Ebright, da Universidade Rutgers. De fato. A própria OMS acabou admitindo, após a má repercussão do relatório, que não podia descartar a tese de vazamento. “Todas as hipóteses continuam na mesa”, disse seu diretor-geral, Tedros Adhanom.   

A terceira razão para a mudança é que foram surgindo novas informações, e elas contam uma nova história. Segundo o Wall Street Journal, agências de inteligência do governo americano teriam descoberto que três cientistas do instituto de Wuhan foram a um hospital da cidade, com sintomas gripais, em novembro de 2019. Eles poderiam, portanto, ter começado a pandemia, ao contrair o Sars-CoV-2 e carregá-lo para fora do laboratório. A virologista Marion Koopmans, da OMS, disse ter sido informada pelo governo chinês que os três cientistas testaram negativo para o vírus. Mas a China nunca revelou os nomes dessas pessoas, nem apresentou os resultados dos testes.

Esse episódio é apenas um de vários envolvendo o Instituto de Virologia de Wuhan. Nos casos que você conhecerá a seguir, há elementos ainda mais intrigantes. Antes de começar, que uma coisa fique clara: nenhum deles é suficiente para dizer que o Sars-CoV-2 tenha surgido em laboratório. O que permitem afirmar, com segurança, é que essa hipótese precisa ser investigada – algo que 14 países, incluindo EUA, Reino Unido, Canadá, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Israel, defendem (6).

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Os seis mineiros

Entre abril e maio de 2012, seis homens se enfiaram numa mina abandonada perto da cidade de Tongguan, no condado de Mojiang (sul da China). Estavam procurando algo: talvez cobre, metal que já fora extraído ali. A mina estava cheia de morcegos e fezes desses animais, cujos fragmentos os homens acabaram inalando. Depois de duas semanas trabalhando na mina, eles começaram a ter tosse forte, febre alta e dificuldade respiratória. Foram internados e diagnosticados com pneumonia de causas desconhecidas, possivelmente de origem viral. Dois deles, de 42 e 45 anos, morreram. Os demais, com idades entre 30 e 63 anos, sobreviveram, mas com recuperações sofridas (um dos homens, de 46 anos, passou 107 dias internado).

Amostras de sangue deles foram enviadas para o Instituto de Virologia de Wuhan, que testou a presença de vários vírus. Deu negativo. Então os cientistas resolveram ir até a mina. A líder da expedição era a virologista Shi Zhengli, famosa pelas pesquisas com morcegos (era conhecida como batwoman entre os colegas).

Ela ficou meses coletando amostras da mina e dos morcegos, que depois levou para análise em Wuhan. Valeu o esforço: Shi detectou quatro coronavírus (7) que nunca haviam sido vistos. Um deles, que ela batizou de CoV/4991, era o que havia infectado os seis mineiros. Mais tarde, o nome foi trocado para RaTG13 (referência à espécie do morcego hospedeiro, Rhinolophus affinis, à cidade de Tongguan e 2013, ano em que o vírus foi identificado).

O RaTG13 é, entre todos os vírus conhecidos até hoje, o mais parecido com o Sars-CoV-2: ambos compartilham 96,2% do código genético. Tongguan fica a 1.500 km de Wuhan – uma distância fora do alcance dos morcegos R. affinis, que voam no máximo 180 km (e geralmente bem menos, 30 km). Também é muito longe do mercado onde a pandemia supostamente começou: os comerciantes de animais selvagens certamente poderiam conseguir morcegos mais perto. O mais provável, portanto, é que o RaTG13 tenha sido levado até Wuhan pelo Instituto de Virologia. Mas há um porém: isso não prova nada.

O RaTG13 e o Sars-CoV-2 são parecidos, mas também são distintos: 1.100 nucleotídeos (“letras” genéticas), dos 30 mil que compõem cada um deles, são diferentes. É uma diferença grande. As mutações que o coronavírus vem sofrendo durante a pandemia, por exemplo, geralmente se resumem a meia dúzia de nucleotídeos. Por isso, a hipótese defendida pela maioria dos cientistas, e apontada como mais provável pela OMS, é que tenha havido um hospedeiro intermediário. Algum bicho teria pegado o RaTG13, que sofreu mudanças dentro dele (provavelmente via recombinação genética, ou seja, a fusão do vírus de Tongguan com outro) e só então se transformou no Sars-CoV-2.

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O banco de dados do Instituto de Wuhan, que continha dados sobre 22 mil vírus (e poderia revelar o que foi feito com alguns deles), foi apagado da internet no começo da pandemia.
O banco de dados do Instituto de Wuhan, que continha dados sobre 22 mil vírus (e poderia revelar o que foi feito com alguns deles), foi apagado da internet no começo da pandemia. (Ilustração: Gustavo Magalhães | Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

O problema é que até hoje, mais de um ano após o início da pandemia, esse hospedeiro intermediário ainda não foi identificado. Com outros coronavírus recentes, e parecidos com o atual, ele foi determinado em poucos meses (era a civeta, no caso do Sars-CoV-1, e o dromedário, no caso do Mers). Encontrar o animal intermediário solucionaria o enigma sobre a origem do vírus e encerraria o assunto. Mas isso ainda não ocorreu – mesmo com todo o interesse global, e da própria China, para que aconteça. Talvez os cientistas não tenham encontrado um hospedeiro intermediário porque não exista um.

Essa possibilidade joga a bola de volta para a hipótese do vazamento de laboratório. Ela parece ter algum nexo geográfico e cronológico: o fato de o RaTG13 só ter contaminado pessoas na mina de Tongguan, sem infectar mais ninguém depois, e seu suposto descendente só ter aparecido sete anos depois, justamente em Wuhan. A linha de raciocínio é essa. Para continuá-la, o próximo passo é desvendar que tipo de experimento Shi Zhengli e sua equipe realizaram com o vírus de Tongguan.

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A China nunca revelou exatamente o que eles faziam, e inclusive tomou medidas na direção contrária. Entre o final de 2019 e o começo de 2020, o banco de dados do instituto de Wuhan, que continha o código genético de 22 mil amostras de vírus e podia ser acessado pelo endereço batvirus.whiov.ac.cn, foi removido da internet. Zhengli confirmou a medida: ela alegou que o banco de dados estava sendo alvo de hackers. 

Mas é possível descobrir o que era feito nos laboratórios de Wuhan. A resposta está no próprio contrato do National Institutes of Health, citado no começo deste texto. Ele não poderia ser mais claro – e é de deixar o cabelo em pé. Antes, uma segunda ressalva.   

Ninguém acredita, com exceção de alguns fanáticos, que o Sars-CoV-2 tenha sido liberado intencionalmente pela China, para tirar alguma vantagem. Embora tenha registrado um número relativamente baixo de mortes por Covid-19, o país também sofreu fortes perdas econômicas (em 2020, seu crescimento foi o menor em 44 anos, ou seja, o menor em toda a era capitalista no país, iniciada após a morte de Mao Tsé-tung em 1976). E, pior, ele teve sua imagem manchada pela pandemia, com repercussões geopolíticas que podem se estender por décadas.

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Em suma: a China não ganha nada com o coronavírus. Ele só atrapalha, e muito, a ascensão do país. Se o Sars-CoV-2 tiver mesmo vazado de um laboratório, foi sem querer. Acidentes acontecem. E acidentes de laboratório, por mais que pareçam coisa de ficção científica, também.

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(Ilustração: Gustavo Magalhães | Design: Juliana Krauss/Superinteressante)
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O vírus quimérico

1977 foi um ano relativamente tranquilo para a Guerra Fria. O democrata Jimmy Carter tomou posse como presidente dos EUA, e as relações do país com a União Soviética se acalmaram temporariamente. Mas, nesse mesmo ano, a URSS teve que lidar com um problema sério: uma epidemia de gripe causada pelo vírus H1N1 (um subtipo do influenza). A doença, que começou a se espalhar em novembro, logo rompeu as barreiras do país e ficou conhecida internacionalmente como “gripe russa”.

Ela matou 700 mil pessoas pelo mundo, com uma característica incomum: era especialmente letal em pessoas de 20 e poucos anos. Análises de laboratório revelaram que o vírus era quase idêntico a uma variante do H1N1 que havia se espalhado pelo planeta nos anos 1950 e sumido depois. Por isso ele só matava jovens: gente que não havia sido exposta ao vírus na aparição anterior, duas décadas antes, e não tinha anticorpos contra ele.

Mas o que realmente chamou a atenção foi a semelhança genética entre o H1N1 da década de 1950 e o H1N1 soviético, de 1977. Ele praticamente não possuía alterações, o que era bem estranho. Afinal, se o vírus tivesse sobrevivido na natureza, sendo transmitido entre animais por mais de 20 anos até regressar a humanos, inevitavelmente teria sofrido mutações durante esse tempo. Por isso, acredita-se que o H1N1 russo tenha vazado acidentalmente de algum laboratório soviético – onde era mantido para pesquisas de armas biológicas (o que foi proibido em 1972, por um tratado internacional assinado por 180 países, incluindo os EUA e a URSS).

As experiências de “ganho de função” podem tornar um vírus mais letal, ou capaz de infectar novas espécies. Elas eram realizadas em Wuhan – com o endosso dos EUA.
As experiências de “ganho de função” podem tornar um vírus mais letal, ou capaz de infectar novas espécies. Elas eram realizadas em Wuhan – com o endosso dos EUA. (Ilustração: Gustavo Magalhães | Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

Esse não foi o único caso do tipo. Em 1966, 1972 e 1978, o vírus da varíola (único, até hoje, a ser erradicado pela humanidade) escapou e matou algumas pessoas. Sua origem, como ficou comprovado depois, foram laboratórios da London School of Tropical Medicine e da Universidade de Birmingham. Em 1995, o vírus da encefalomielite equina venezuelana (EEV) reapareceu na Venezuela e na Colômbia, onde matou 311 pessoas. Era geneticamente idêntico a uma cepa de 1963; logo, muito provavelmente estava sendo preservado num laboratório, de onde escapou.

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E o Sars-CoV-1, que surgiu na Ásia em 2003, vazou três vezes: naquele mesmo ano, cientistas que estavam estudando o vírus em Taiwan, Cingapura e na China foram acidentalmente infectados e o carregaram para fora dos laboratórios (8). “Esses tipos de vazamento acontecem o tempo todo, na verdade. Até aqui, nos EUA, nós tivemos percalços”, revelou o médico Scott Gottlieb, diretor da FDA (a Anvisa americana) entre 2017 e 2019, à emissora CBS. De fato. Os laboratórios do Center for Disease Control (CDC), órgão do governo americano que estuda vírus, foram investigados seis vezes desde 2003 por violar regras de segurança – e um deles chegou a ter o alvará de funcionamento cassado (9).

Os centros de pesquisa do CDC estão entre os poucos, no mundo, a possuir a certificação BSL-4: “nível de biossegurança 4”, em inglês. Os laboratórios desse tipo possuem uma série de medidas de proteção, e por isso estão aptos a trabalhar com vírus considerados muito perigosos [veja quadro abaixo]. Ter um laboratório BSL-4 é sinônimo de desenvolvimento e poder científico. A China possui dois: um no Instituto de Virologia de Wuhan, construído com a ajuda de cientistas franceses e aberto em 2015, e outro em Harbin (inaugurado em 2018).

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(Juliana Krauss/Superinteressante)
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O laboratório de Wuhan, que custou US$ 44 milhões e levou 11 anos para ficar pronto, foi um salto tecnológico para o país. Mas há indícios de que não estava funcionando bem. Em 2018, dois diplomatas americanos visitaram o local e produziram um relatório (10)  enviado a Washington. Segundo eles, o instituto tinha “séria escassez de técnicos e investigadores adequadamente treinados, necessários para operar com segurança”. Na visita, contam os diplomatas americanos, os cientistas reclamaram que ainda não haviam recebido permissão para trabalhar com o vírus ebola. “Não fica claro como o NHFPC [órgão governamental chinês] determina quais vírus podem ou não ser estudados no novo laboratório.”      

Havia outro problema: os cientistas nem sempre trabalhavam no laboratório de altíssima segurança do instituto. “As nossas pesquisas com coronavírus são feitas em laboratórios BSL-2 ou BSL-3”, admitiu a virologista Shi Zhengli, principal cientista do instituto de Wuhan, à revista Science no ano passado. Com o surgimento da pandemia, isso mudou – para um dos vírus. “Depois do surto de Covid-19, nosso país determinou que os experimentos de cultivo e infecção animal com o Sars-CoV-2 fossem realizados em laboratórios BSL-3 ou superiores”, disse Zhengli.

Trabalhar num BSL-4 é difícil e desconfortável: os cientistas precisam usar um traje que lembra os macacões dos astronautas, e seguir longos e complexos procedimentos de descontaminação antes de entrar ou sair. É natural que, tendo permissão para optar por um BSL-2, os chineses preferissem fazê-lo. Mas trata-se de uma violação grave, já que os laboratórios desse tipo não têm segurança para trabalhar com vírus aerossolizáveis, transmitidos pelo ar.

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Isso é ainda mais alarmante se você considerar o tipo de coisa que Zhengli e sua equipe estavam fazendo. “Testar previsões de transmissão de CoV entre espécies. Modelos serão testados experimentalmente usando genética reversa, pseudovírus e ensaios com receptores [celulares]”, estipula o contrato do National Institutes of Health, que em seguida é ainda mais explícito: “experimentos numa série de culturas celulares de várias espécies e [em] ratos humanizados” (geneticamente modificados para produzir células humanas). Ou seja: os chineses estavam realizando experiências de ganho de função. Eles queriam ver se coronavírus de morcego, após certas modificações, poderiam infectar humanos.

Em 2015, Zhengli foi além. Ela participou, junto com cientistas dos EUA e da Suíça, da criação de um coronavírus “quimérico”, ou seja, que não existe na natureza (e é formado pela combinação de duas outras espécies). Na experiência (11), os pesquisadores fundiram pedaços do SHC014-CoV  – um vírus que, dizia o estudo, “está circulando atualmente em populações de morcegos chineses” – com o primeiro Sars-CoV, aquele da epidemia na Ásia em 2003. Criaram um patógeno com “corpo” de Sars-CoV-1, mas proteína spike (os “espetos” que recobrem o vírus, e ele usa para invadir as células) do SHC014-CoV.

O virologista Peter Daszak, dono da empresa EcoHealth, recebeu verba do National Institutes of Health (NIH), do governo americano, e a entregou ao Instituto de Virologia de Wuhan.
O virologista Peter Daszak, dono da empresa EcoHealth, recebeu verba do National Institutes of Health (NIH), do governo americano, e a entregou ao Instituto de Virologia de Wuhan. (Ilustração: Gustavo Magalhães | Design: Juliana Krauss/Superinteressante)
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Se você achou isso perigoso, acertou. “Os resultados indicam que vírus com a spike do SHC-014 (…) podem usar o receptor [celular] ACE2 humano”, com “notável patogênese”. Essa capacidade, de se conectar aos receptores ACE2 humanos, é uma das habilidades-chave do Sars-CoV-2. É assim que ele infecta células humanas. Mas voltemos ao vírus quimérico.

Ele permitiu “avaliar a capacidade da nova proteína spike de causar doença”, prossegue o texto, para então fazer uma ressalva de praxe: diz que a descoberta poderia ajudar “a prever futuros vírus emergentes” e orientar preparações para uma eventual pandemia. Nenhuma preparação foi feita – nada, ao menos, que pudesse evitar a situação atual. E o que aconteceu com o coronavírus quimérico após o estudo? Foi destruído? Guardado? Vazou? Só os cientistas que trabalharam nele sabem. Só eles, também, poderiam dizer o que foi feito do RaTG13 (Zhengli afirma que não possui mais amostras desse vírus; elas teriam sido destruídas durante os testes).

Essas perguntas talvez nunca sejam respondidas. Mas os fatos demonstram bastante coisa. Recapitulando: o Instituto de Virologia de Wuhan fazia experiências potencialmente perigosas, sob condições de segurança nem sempre ideais, em vírus geneticamente parecidos com o Sars-CoV-2, incluindo seu ancestral mais próximo (descoberto a 1.500 km de Wuhan e levado até lá). E, em pelo menos um desses testes, o objetivo era tornar um coronavírus apto a infectar humanos, usando a proteína spike para acessar os receptores celulares ACE2 – uma das principais “qualidades” do Sars-CoV-2.

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Montagem sem emendas

Tudo isso está registrado em estudos científicos, documentos oficiais e declarações das pessoas envolvidas. É um conjunto de informações que já existia, mas ainda não estava claro em março de 2020. Foi quando um grupo de cinco cientistas dos EUA, da Inglaterra e da Austrália publicou um estudo “comprovando” (12) que o Sars-CoV-2 tinha origem natural.

Foi esse texto, cujo autor principal é o biólogo Kristian Andersen, do Scripps Research Institute (EUA), que baseou todo o consenso descartando a possibilidade de vazamento do vírus – inclusive a famosa carta (13) assinada por 27 cientistas, e publicada no jornal científico Lancet, classificando a hipótese como “teoria conspiratória”. O organizador da carta foi o virologista Peter Daszak – aquele mesmo envolvido com as pesquisas de Wuhan. Ou seja, há nela um evidente conflito de interesses. Mas o principal problema é que, na verdade, o tal estudo não é bem o que parece ser.

No trabalho, Andersen e seus colegas analisam o código genético do vírus usando um software e tiram duas conclusões: se ele tivesse sido montado em laboratório, isso teria deixado rastros visíveis. E o Sars-CoV-2 não faz uma conexão perfeita aos receptores ACE2: se alguém estivesse criando um patógeno, teria feito um trabalho melhor. É isso. Os argumentos são só esses dois – e ambos contêm fragilidades evidentes.    

Primeiro, desde o ano 2000 existe uma técnica de edição genética, a No See’m (também conhecida como seamless assembly, ou “montagem sem emendas”), que não deixa rastros – e já foi testada em coronavírus (14). “O sequenciamento genômico do vírus não aponta sinais de manipulação. [Mas isso] não exclui a possibilidade de ter havido manipulação usando meios que não deixam uma ‘assinatura’, incluindo métodos usados anteriormente no próprio instituto de Wuhan”, diz o biólogo Richard Ebright, da Universidade Rutgers.

Segundo, quem disse que os cientistas do laboratório de Wuhan estavam tentando criar um vírus com a maior afinidade possível aos receptores ACE2 humanos? Talvez eles só quisessem ver se isso era possível (como na criação do coronavírus quimérico, em 2015). Ou, em vez de alterar diretamente o código genético, estivessem fazendo pesquisas de “passagem serial”.

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Em maio deste ano, sob pressão global, os cientistas de Wuhan publicaram um novo estudo. Ele apresenta oito coronavírus nunca antes vistos – e tenta rebater a tese de que o Sars-CoV-2 tenha surgido em laboratório.
Em maio deste ano, sob pressão global, os cientistas de Wuhan publicaram um novo estudo. Ele apresenta oito coronavírus nunca antes vistos – e tenta rebater a tese de que o Sars-CoV-2 tenha surgido em laboratório. (Ilustração: Gustavo Magalhães | Design: Juliana Krauss/Superinteressante)

Essa técnica consiste em pegar o vírus, usá-lo para infectar células, extrair uma amostra e inocular outro conjunto de células, repetindo o processo dezenas de vezes. Ela acelera a evolução natural. Serve para gerar vírus enfraquecidos (como os usados nas vacinas da febre amarela e da poliomielite), mas também pode ser usada para tornar um vírus capaz de infectar uma nova espécie – sem que você precise editar diretamente o código genético dele.

Seja como for, o genoma do Sars-CoV-2 contém um ponto que tem provocado discussão. Para que o vírus consiga invadir uma célula, sua proteína spike precisa ser cortada em duas (S1 e S2), de forma precisa, no momento da infecção. O vírus não tem ferramentas para fazer isso, então ele usa uma enzima humana, a furina – que acerta um “alvo” no ponto exato da proteína spike. A furina está presente em diversos tipos de células humanas, o que ajuda muito na replicação do Sars-CoV-2. É isso que o torna tão virulento e transmissível (o Sars-CoV-1 usa uma enzima chamada TMPRSS2, bem menos comum). Alguns defensores da tese de vazamento acreditam que esse “alvo” foi colocado no Sars-CoV-2.

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Isso teria sido feito inserindo uma sequência de aminoácidos (P-R-R-A: prolina, arginina, arginina, alanina) que não existe no RaTG13 e seria improvável de acontecer na natureza, por dois motivos. As trocas de aminoácidos via mutação geralmente acontecem uma a uma (não quatro, juntas, de uma só vez). E, no Sars-CoV-2, essas duas argininas são formadas pela sequência de nucleotídeos CGG-CGG, (citosina-guanina-guanina), que é rara: os demais coronavírus, e o próprio Sars-CoV-2, geralmente “escrevem” esse aminoácido usando outra combinação de nucleotídeos, a CGU (citosina-guanina-uracila).

Mas calma lá. Outros coronavírus, como o Mers e o HKU1, também possuem um “alvo” para a furina (15) , e nem por isso se acredita que tenham sido criados ou modificados em laboratório. E a sequência CGG, mesmo rara, também não prova nada: ela pode perfeitamente ter sido herdada de outro vírus, ainda desconhecido, com o qual o RaTG13 (ou outro ancestral) teria se misturado dentro de algum animal intermediário. A natureza está cheia de acontecimentos que parecem improváveis.

No fim de maio, com o aumento da pressão internacional sobre a China, Shi Zhengli e seus colegas do instituto de Wuhan publicaram um estudo (16) para rebater a hipótese de vazamento de laboratório. O trabalho apresenta oito novos coronavírus, que infectam morcegos e nunca haviam sido descritos antes. Segundo os cientistas chineses, esses novos vírus se ligam mal a células humanas – são menos eficientes, nessa tarefa, do que vírus como o Pangolin-CoV-GD.

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A suposta conclusão disso é: o Sars-CoV-2 só poderia ter surgido naturalmente, após passar por um pangolin (como o M. javanica, que parece um tatu e vive na Ásia). Mas o trabalho não prova isso, nem tenta fazê-lo. Só recomenda mais estudos para “prevenir o futuro aparecimento de [novos] Sars-CoVs, ou entender melhor a origem do Sars-CoV-2”.   

Novos estudos virão, inclusive os do tipo perigoso. Em 2017, os EUA decidiram retomar suas experiências de “ganho de função” com vírus – que a China e outros países provavelmente continuarão a realizar mesmo após a pandemia. Talvez a real origem do Sars-CoV-2 jamais seja elucidada. E talvez seja até melhor assim.

Se um dia ficar comprovado que ele se originou de um vazamento de laboratório em Wuhan, as demais nações poderão exigir algum tipo de reparação – da mesma forma que as potências europeias, no Tratado de Versalhes, obrigaram a Alemanha a pagar pelos danos da Primeira Guerra Mundial. Uma imposição que sufocou a economia alemã e empobreceu sua população, levando à ascensão de Hitler e outra guerra global. Um cerco geopolítico à China poderia terminar em algo terrível: muito pior do que a própria pandemia de Sars-CoV-2.

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Fontes

(1) U.S. Government Gain-of-Function Deliberative Process and Research Funding Pause on Selected Gain-of-Function Research Involving Influenza, MERS, and SARS Viruses. Disponível em https://www.phe.gov/s3/dualuse/Documents/gain-of-function.pdf (2) Benefits and Risks of Influenza Research: Lessons Learned. A Fauci e F Collins, 2012. (3) Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. B Cao e outros, 2020. (4) WHO-convened Global Study of Origins of SARS-CoV-2. OMS/China, 2021. (5) Investigate the origins of COVID-19. D Relman e outros, 2021.

(6) Joint Statement on the WHO-Convened COVID-19 Origins Study. US Department of State, 30/3/2021. (7) Coexistence of multiple coronaviruses in several bat colonies in an abandoned mineshaft. S Zhengli e outros, 2016. (8) Laboratory Escapes and “Self-fulfilling prophecy” Epidemics. M Furmanski, Center for Arms Control, 2014. (9) CDC labs repeatedly faced secret sanctions for mishandling bioterror germs. USA Today, 2016. (10) “17 Wuhan 48” unclassified SBU cable. Disponível em bit.ly/3vNPwHG

(11) A SARS-like cluster of circulating bat coronaviruses shows potential for human emergence. S Zhengli, R Baric e outros, 2015. (12) The proximal origin of SARS-CoV-2. K Andersen e outros, 2020. (13) Statement in support of the scientists, public health professionals, and medical professionals of China combatting COVID-19. M Turner e outros, 2020. (14) Efficient Reverse Genetic Systems for Rapid Genetic Manipulation of Emergent and Preemergent Infectious Coronaviruses. R Baric e outros, 2017. (15) SARS-CoV-2 and bat RaTG13 spike glycoprotein structures inform on virus evolution and furin-cleavage effects. S Gamblin e outros, 2020 (16) Identification of a novel lineage bat SARS-related coronaviruses that use bat 2 ACE2 receptor. S Zhengli e outros, 2021.

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