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O que é que há, velhinho: a história do Pernalonga

De coadjuvante do Gaguinho a símbolo da Warner Bros., a história do Pernalonga, que completa 80 anos em 2020.

Texto Rafael Battaglia | Ilustração Thobias Daneluz | Edição Alexandre Versignassi | Design Estúdio Nono


O mundo era bem diferente nos anos 1920. Sem televisão, cinema praticamente fazia parte da cesta básica. Nos EUA, 70% da população frequentava semanalmente.

Era baratinho. Com o equivalente a R$ 4 de hoje dava para arranjar até quatro horas de entretenimento. É que, além do longa-metragem, o público assistia a reportagens, documentários, curtas animados e filmes de menor orçamento. Tudo numa sessão só – era como ir ao cinema ver TV, antes de a TV existir.

Os desenhos funcionavam como um complemento dessas sessões. Na época, as técnicas de animação já tinham dado um bom salto. Havia curtas que adaptavam tiras de jornal e personagens famosos, como o Gato Félix. Mesmo assim, nenhum estúdio investia pesado nessa área. Os desenhos eram até mais simples do que a tecnologia do período podia prover.

Quem subiu o sarrafo foi Walt Disney, em 1928, quando Mickey e Minnie deram as caras. Walt produziu Steamboat Willie, considerada a primeira animação com som sincronizado. Desenhos anteriores até tentavam criar essa harmonia –  sem grandes êxitos. No curta de Disney, contudo, todos os efeitos sonoros combinavam perfeitamente com o que estava na tela. Além da música de fundo, é possível ouvir o motor do barco, o sino no pescoço da vaca, os gritos do gato, os batuques nas panelas. Parece pouca coisa para quem olha de hoje. Não era.

Em 1929, Walt aprimoraria ainda mais a combinação de som e imagem com a série Silly Symphonies (“sinfonias bobas”). Eram animações surrealistas que acompanhavam a música de uma orquestra que parecia ter tomado LSD antes de tocar. Arte pura.   

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Logo, as sessões com trabalhos de Walt Disney passaram a atrair cada vez mais público. Em 1930, ele trocou a pequena Celebrity Pictures pela gigante Columbia, que passou a distribuir seus desenhos. Em 1932, outra mudança: Disney assinou com a United Artists, que tinha Charles Chaplin entre os fundadores. A partir daí, pavimentaria sua trilha como o Pelé da animação.

Era hora de os outros estúdios correrem atrás, e tentarem produzir algo à altura da produção de Walt. 

Foi o caso da Warner. O estúdio tinha sido criado em 1923 por quatro irmãos filhos de imigrantes poloneses, os “Warner brothers” – “Warner”, diga-se, é a americanização do sobrenome original, Wonskolaser. Desde o início, a Warner ficou conhecida por controlar as três etapas do mercado cinematográfico: produção, distribuição e exibição. Para a empresa, então, não fazia sentido terceirizar os desenhos – era preciso criar seu próprio estúdio de animação.

O encarregado foi o produtor Leon Schlesinger, parceiro (e parente distante) dos irmãos Warner, que contratou três diretores da Disney para criar, em 1930, uma série de animações para fazer frente a Silly Symphonies. A intenção era tão nítida que nem tentaram disfarçar. A série teria um nome com significado idêntico à de Walt Disney: Looney Tunes.

Sim. Looney Tunes é uma marca tão forte hoje que ninguém costuma pensar no significado das palavras – tunes é uma das palavras para “música”;  e looney, para “lunático”, “destrambelhado”. Não contente, a Warner ainda criaria outro selo nesse estilo em 1931: o Merrie Melodies (“melodias alegres”).       

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Bom, o primeiro desenho Looney Tunes, Sinkin’ in the Bathtub, introduziu as estrelas mais antigas da Warner, Bosko e sua namorada, Honey (uma clara cópia de Mickey e Minnie). Não chegava a ser algo à altura da obra da Disney, mas quebrava o galho. Além disso, Sinkin’ in the Bathtub já trazia uma assinatura da Warner – a frase de encerramento “That’s all folks” (“Isso é tudo, pessoal”).

Foram 57 curtas de Bosko e Honey em três anos. Mas Hugh Harman e Rudolf Ising, dois dos três diretores que Leon Schlesinger havia contratado, se desentenderam com ele e foram para a Metro-Goldwyn-Mayer, que dava seus primeiros passos nas animações (em 1940, o estúdio lançaria outro clássico octogenário, Tom e Jerry).

Em 1934, Friz Freleng, o diretor restante, se juntou a alguns jovens animadores para promover mudanças significativas nos desenhos da Warner – dentre esses novatos estavam nomes como Bob Clampett e Chuck Jones. E um ano depois, em 1935, a dupla criou o primeiro looney tune que se tornaria eterno: Gaguinho (“Porky Pig”, no original). O nome em inglês é um trocadilho – pig quer dizer “porco”; pork é “carne
de porco”. 

O porquinho gago e tímido logo conquistou o público. Em 1937, o neurótico Patolino deu as caras – o outro pato nervoso dos desenhos, Donald, tinha estreado três anos antes, no Silly Symphonies.

Os personagens de desenho, seja na Warner, seja na Disney, começavam a ganhar vida própria. Tornavam-se  mais “humanos”. Seres com personalidade.

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Já com essa filosofia em mente, a Warner criou um coadjuvante para Gaguinho. Ele estreou em Porky’s Hare Hunt, no qual o porco tenta caçar uma lebre maluca, agressiva e com uma risada estridente. Era uma primeira versão do Pernalonga – ainda sem nome, e sem a cara que você conhece.

A lebre de 1938 enfrentou resistência por parte dos executivos da Warner. Eles não viam potencial para um personagem tão agressivo e imprevisível – a lebre original é cruel com o Gaguinho, dá uma olhada no YouTube. Mas os animadores insistiram. E longos dois anos depois a lebre voltava em A Wild Hare, de 1940. Nascia o Pernalonga – Bugs Bunny, no original. 

“Bugs” vem de bugsy – “doidinho”. A palavra, por sua vez, vem de bug (inseto). É como dizer que alguém tem “insetos na cabeça”. Já bunny é “coelhinho”. Pois é: o Pernalonga é tratado ora como coelho, ora como lebre (hare) – uma incongruência que acabou incorporada à mitologia do personagem. Enfim. A tradução ao pé da letra seria “Coelho Maluco”. A fórmula para criar o nome, aliás, foi a mesma que já tinha sido com o Patolino. O nome original do pato é “Daffy Duck”: “daffy” vem de daft (“doido”, “pirado”). “Pato Maluco”.

A Wild Hare, dirigido por Tex Avery, não deu só nome ao coelho. Também fincou as raízes para a personalidade dele. Sai o temperamento agressivo, entra a malandragem. Ele se tornou um personagem debochado, irônico e sempre um passo à frente dos demais. Mas agora só sacaneava se fosse incomodado antes. “O Pernalonga é um voyeurista: observa a ação de longe e escolhe o momento certo de agir”, diz Alessandro Costa, professor do curso de Arquivologia UFMG e autor de uma tese sobre a história dos Looney Tunes. “E, quando o faz, é sempre com refinamento, sofisticação.”

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O Pernalonga é um filho de muitos pais. Avery, Jones, Clampett, Freleng… Para montar a personalidade do coelho, eles se inspiraram em diversas figuras da época, como o humorista Groucho Marx e o ator Clark Gable – em especial, seu personagem falastrão no filme Aconteceu Naquela Noite (1934). Há uma cena, inclusive, em que Gable aparece comendo uma cenoura.

Outro pai do Pernalonga é o seu dublador, Mel Blanc, que ficou conhecido como o “homem das mil vozes”. Blanc sempre colaborou com a Warner Bros – é dele a risada da lebre de Porky’s Hare Hunt, que depois seria reaproveitada em outro personagem que ele dublou nos anos 1940, o Pica-Pau. Para não perder Blanc, aliás, a Warner fez um contrato de exclusividade. Resultado: ele chegou a fazer a voz de 90% dos personagens do estúdio. Haja gogó.

O fato é que agora, com o trio de ferro Pernalonga, Gaguinho e Patolino, a Warner já tinha, sim, algo para fazer frente a Walt Disney. E para superá-lo. Na Disney, Mickey estrelava aventuras inocentes, e a empresa estava preocupada em entender a anatomia de personagens humanos e animais. O objetivo ali era, principalmente, deixar os movimentos animados da forma mais real possível (algo que se consolidaria com seus longas-metragens, como Branca de Neve). A Warner foi na contramão. Eles também eram perfeccionistas, mas focavam todos os seus esforços em outra área: usar as possibilidades surrealistas dos desenhos para ampliar o humor. Basta pensar nos tiros de espingarda que faziam o bico do Patolino parar atrás da cabeça.

A Warner, então, se tornou uma especialista na engenharia do humor. Freleng já tinha virado professor: dizia que o tempo era a essência da comédia, especialmente o que antecede a piada: ele não poderia ser muito curto (para criar o clímax) nem muito longo (o que deixaria os espectadores impacientes). Os animadores também usavam como recurso a quebra da quarta parede, que é quando os personagens conversam com o público.

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(Thobias Daneluz/Superinteressante)
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GAGUINHO (1935)

É o primeiro “case” de sucesso dos Looney Tunes – seus antecessores foram descontinuados. Pernalonga e Patolino estreariam como coadjuvantes dele.

PATOLINO (1937)

É o terceiro personagem mais recorrente dos desenhos originais, aparecendo em 130 curtas de animação. Só perde para Pernalonga (167) e Gaguinho (153). “Desssprezível”, como ele próprio diria.

PIU-PIU (1942)

Inicialmente, o personagem, que em inglês se chama Tweety (“tweet” é a palavra usada para sons de pássaro) seria rosa. Foi o diretor Bob Clampett que mudou para amarelo, transformando-o em um canário.

FRAJOLA (1945)

Gatos genéricos que apareciam nos curtas antecederam sua criação. O nome do personagem em inglês, Sylvester, vem de Felis silvestris catus, o gato doméstico.

TAZ (1954)

O diabo-da-tasmânia apareceu em um desenho com o Pernalonga e seguiu como coadjuvante em poucas ocasiões. Só ficaria popular mesmo nos anos 1990, com a série Taz-Mania, que veio na esteira dos Tiny Toons.

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Baixos e altos

No começo dos anos 1940, os desenhos passaram por um pequeno direcionamento editorial: a Segunda Guerra. Ao menos 40% das animações da Warner desse período eram relacionadas ao conflito. Serviam principalmente para vender War Bonds – títulos que o governo americano vendia ao público para financiar o esforço de guerra.

A ação aumentou ainda mais a popularidade dos Looney Tunes. O impacto, inclusive, foi sentido na rival. A Disney também passou a investir no humor escrachado (e inteligente). Principalmente com Donald e Pateta, dois personagens desajustados, e mais interessantes, que o mocinho Mickey.

Com o fim da Guerra, os Looney Tunes seguiram como uma força do cinema, criando personagens como Marvin, o Marciano (1948) e o Papa-Léguas (1949), na qual a criação de novas leis da física chegou ao auge – quem não lembra do Coiote pairando no ar com uma bigorna da ACME?

Na década seguinte, o estúdio continuou lançando curtas importantes. What’s Opera, Doc?, de 1957, mostra Pernalonga em uma paródia da obra do compositor Richard Wagner. Entrou para a história.

Nos anos 1960, porém, a TV se tornou a forma número 1 de mídia, e passou a roubar público do cinema. Os desenhos também passavam na TV, claro. Mas a renda era bem menor que a dos pagantes de ingressos. Quem soube mesmo fazer essa transição foi outra companhia, mais jovem, a Hanna-Barbera.

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Eles criaram uma revolução: as sitcoms em forma de desenho animado. O maior expoente foi Os Flintstones. Era a primeira animação a ser exibida no horário nobre. Fred e Barney se tornaram estrelas de outro patamar: era como se eles fossem pessoas de fato. Até comercial de cigarro eles fizeram. E pavimentaram todo um novo gênero na TV – que culminaria, décadas mais tarde, com Os Simpsons

A Warner tinha ficado para trás. E, em 1969, decidiu acabar com Looney Tunes e Merrie Melodies. Pernalonga e cia. continuaram a aparecer em alguns especiais feitos para TV, mas a produção não era constante. Quem cresceu assistindo a eles nas manhãs de sábado viam, na maior parte do tempo, os episódios da era pré-TV, feitos lá atrás para o cinema.

As coisas só mudariam graças a um sujeito chamado Steven Spielberg.

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Em 1988, o diretor de E.T. e sua produtora, a Amblin Entertainment, se envolveram no filme Uma Cilada para Roger Rabbit. Misturando animação com atores em carne e osso, o longa, dirigido por Robert Zemeckis, promoveu o histórico encontro de vários personagens, como Mickey e Pernalonga. Foi um sucesso de público e levou três Oscars.

Roger Rabbit provou que os desenhos clássicos ainda tinham um apelo. Isso só confirmou as suspeitas da Warner. O estúdio já tinha contatado Spielberg em 1987 para um projeto de animação. O diretor, então, virou produtor executivo dessa nova empreitada, que envolveu mais de cem pessoas, 18 meses de trabalho e US$ 25 milhões de orçamento.

Spielberg cuidava de cada detalhe da produção, do desenvolvimento dos personagens à aprovação dos storyboards. A ideia era retomar o espírito dos Looney Tunes clássicos. Em 1990, a Warner lança Tiny Toons, estrelada por Perninha, Lilica, Presuntinho e outras versões jovens dos primeiros personagens. A metalinguagem reina ali: o pessoal estuda na “Looniversidade” para, no futuro, estrelarem as animações dos Looney Tunes. Foi um hit, assim como os desenhos que vieram na sequência:

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(Thobias Daneluz/Superinteressante)

TINY TOONS
Inicialmente, a história dos novos Looney Tunes foi pensada como filme. Com o desenvolvimento, Steven Spielberg e a Warner decidiram criar uma série, que teve 98 episódios.

ANIMANIACS
Com esquetes e números musicais, era estrelado pelos irmãos Yakko, Wakko e Dot. Astros do cinema mudo (e por isso são preto e branco). A premissa: eles foram trancados na torre d’água da Warner nos anos 1920 por serem malucos demais.

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PINKY E O CÉREBRO
Os ratinhos de laboratório apareceram em Animaniacs e, em 1995, ganharam a própria série. A história era a mesma todos os dias: tentar conquistar o mundo.

Na esteira do sucesso dos Tiny Toons, o velho Pernalonga conseguiu uma recolocação no mercado de trabalho. Em 1992, a Nike promoveu, num comercial, um encontro entre o coelho e Michael Jordan. Era a semente do filme Space Jam, de 1996. “De início, achei uma ideia boba. Não sabia como aquilo viraria um filme”, desdenhou Joe Pytka, diretor do comercial e que foi chamado para comandar o longa. Pytka mordeu a língua, e o filme foi um fenômeno: rendeu US$ 380 milhões em valores de hoje.

Em 2002, outro reconhecimento. O Pernalonga, que já havia conquistado uma estrela na Calçada da Fama na década de 1980, é eleito o maior personagem dos cartoons de todos os tempos pela TV Guide, uma tradicional publicação dos EUA. Outros seis Looney Tunes aparecem no Top 50. Hoje, o streaming deu outra chance aos desenhos. Os Looney Tunes ganharam novos episódios pelo HBO Max – chegam ao Brasil em 2021. A temporada de caça ao coelho (ou de caça ao pato) vai continuar por muito tempo.

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