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A bruxa do cacau

Há 30 anos, a Bahia era surpreendida pela vassoura-de-bruxa. Hoje, a praga ainda assombra a região – mas os produtores encontraram uma forma de lucrar produzindo menos: o chocolate artesanal.

Texto: Guilherme Eler, de Ilhéus (BA)* | Ilustração: Marcel Lisboa | Design: Yasmin Ayumi | Edição: Alexandre Versignassi


“A terra dá frutos de ouro”, diz Jorge Amado no início da obra São Jorge dos Ilhéus (1944). Não era apenas força de expressão do autor baiano. As cifras que o cacau gerava ao sul da Bahia na primeira metade do século 20 garantiram décadas de fartura aos coronéis de Ilhéus e arredores. A alta expressiva no preço das amêndoas de cacau no mercado internacional fazia a cidade fervilhar como nunca antes. E a chegada de trabalhadores de vários cantos do País não servia só para movimentar os bordéus e os cabarés; mexia também com a geografia de Ilhéus, acirrando as disputas por terra. Ter um pedaço de chão para plantar cacau era como ganhar uma impressora de dinheiro.

O coronelismo do interior baiano começava a ganhar novos contornos. Aos poucos, os grandes vilões já não eram mais os barões do cacau, e sim a chegada do capital estrangeiro – representado pelas indústrias exportadoras das amêndoas. Essa presença fez o negócio do cacau mudar de patamar: a construção do porto de Ilhéus, na década de 1970, permitiu o envio de 300 mil toneladas de amêndoas ao exterior todos os anos ao longo do período. Os preços acompanharam o ritmo, e a tonelada do cacau chegou a valer US$ 3,6 mil em 1978, consolidando o Brasil como segundo maior produtor do mundo. A safra nacional ainda alcançaria seu ápice anos mais tarde, em 1986, quando a Bahia, sozinha, produziu quase 400 mil toneladas do fruto – 86% do total do País. 

O problema é que os bons ventos, que desde o século 19 sopravam no setor, começariam a cessar. Uma praga iria interromper a estrada de prosperidade trilhada pelo cacau no sul da Bahia. Quem sentiu o golpe primeiro foi a cidade de Uruçuca, distante 40 km de Ilhéus. Sem mais nem menos, alguns dos cacaueiros plantados por lá começaram a ganhar um aspecto envelhecido – secos como uma vassoura velha. Suas folhas se tornavam retorcidas e amarronzadas, seus frutos não se desenvolviam direito ou apodreciam ainda no pé. As amêndoas, agora escurecidas, ficaram intragáveis. Era maio de 1989, e a vassoura-de-bruxa iniciava sua cruzada para varrer o cacau para fora da Bahia.

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(Marcel Lisboa/Superinteressante)

Não demorou até que lavouras de cidades vizinhas já estivessem tomadas pelo fungo. Espalhando-se rapidamente pelo ar, a vassoura-de-bruxa (Moniliophthora perniciosa) reduziu a produção baiana em 60% e provocou a falência de quase 30 mil fazendas. A baixa produtividade fez o preço despencar – e o desemprego da região chegar a níveis inéditos. Estima-se que 250 mil trabalhadores rurais ficaram sem ter de onde tirar seu sustento.

O fungo, natural da região do Vale do Rio Amazonas, já tinha demonstrado seu alto poder de devastação em 1920, quando acabou com lavouras de cacau do Equador. Mas no caso da Bahia, onde a produção era mais robusta, havia um agravante: se os frutos do cacau, naturais do bioma amazônico, se sentiam em casa com o clima quente e úmido do sul baiano, o mesmo valia para o seu mais cruel inimigo. 

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Produtores da época foram pegos de surpresa, já que não se tinha um conhecimento prévio sobre a maneira adequada de se lidar com a doença. Arrancar o mal à força, fazendo a poda dos pés de cacau, não surtia o efeito desejado. Pelo contrário: quando se corta uma árvore infectada, ela tende, por conta própria, a criar novos ramos e novas folhas na região que foi depenada – uma forma de se “proteger” do corte inesperado. E são justamente os tecidos mais jovens da planta que o fungo prefere atacar. 

Foi o que os produtores afetados pelos primeiros focos da vassoura-de-bruxa no Estado, no começo dos anos 1990, aprenderam na prática. Cacauicultores que seguiam a orientação do governo de podar as plantas, em vez de riscar a vassoura do mapa, só fizeram contribuir para que o problema se espalhasse mais. E a produtividade das lavouras, ao mesmo tempo, continuava sendo arrasada pelo fungo.

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(Arte/Superinteressante)
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Mas a pergunta que não queria calar era: o que um fungo típico da região amazônica fazia tão distante de seu habitat natural? O que teria feito a vassoura-de-bruxa ganhar os pés de cacau na Mata Atlântica? 

Ninguém sabe ao certo como a doença foi capaz de cruzar 4 mil quilômetros e desembarcar no sul da Bahia. A hipótese mais aceita é que a introdução do fungo não aconteceu de forma natural – mas, sim, por ação de agroterrorismo, pensada de antemão para sabotar fazendas da região.

Foi para essa conclusão que apontou um inquérito conduzido pela Polícia Federal em 2006, que classificou a introdução do fungo como um ato humano intencional – mas não identificou suspeitos do crime. O processo ainda foi encaminhado ao Ministério Público Federal da Bahia, mas acabou arquivado em 2007. Também em 2006, o Ministério da Agricultura chegou a apurar as acusações de fraude e o suposto envolvimento de servidores públicos no caso. Em 2011, a Controladoria Geral da União (CGU) optou pelo mesmo desfecho: arquivamento do processo, dada a impossibilidade de investigar algo que havia ocorrido 20 anos antes.

Independente de qual seja a porta de entrada, o fato é que a chegada da bruxa do cacau impediu que a produção regional se recuperasse por completo. No ano de 2018, a Bahia produziu 122,5 mil toneladas de amêndoas – e segue liderando a produção nacional, com 48% do total, acompanhada de perto pelo Pará (responsável por 45%). Da mesma maneira, a tarefa de conviver com a vassoura-de-bruxa, mesmo 30 anos após seu surgimento, também segue sendo uma pedra no sapato de quem produz.

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Velha conhecida

O agricultor Rigoberto dos Santos, que há oito anos trabalha como gerente da Fazenda Provisão, em Ilhéus, já sabe de antemão que não colherá todo o cacau plantado na safra atual – que se estende de setembro a abril. Segundo seus cálculos, a produção anual da propriedade, algo em torno de 4 mil arrobas (1 arroba = 15 quilos) será desfalcada em mais de 10%: pelo menos 500 arrobas de amêndoas devem ser, irreversivelmente, perdidas para a vassoura-de-bruxa. “Antes da vassoura [chegar à Bahia], a produção era de 14 mil arrobas”, conta.

Um relatório elaborado pela Ceplac (Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira) sobre a safra 2016/2017 apontou um total de 9,8% de perdas na produção baiana por conta do fungo. Na safra anterior, 2015/2016, esse número havia sido de 12,6%. E o cenário poderia ser muito pior, não fossem os avanços em genética que permitem aos produtores driblar o problema.

A principal maneira de minimizar as perdas foi apostar no cultivo de variedades mais resistentes à vassoura-de-bruxa, selecionadas de outras regiões produtoras, nacionais ou estrangeiras, mas que se adaptam bem ao clima baiano. São os chamados clones. “Já temos soluções tecnológicas para o controle efetivo da vassoura. Principalmente via genética, por meio do plantio de clones resistentes”, explica José Marques, coordenador de pesquisa da Ceplac. “O problema é que nem todos os produtores tiveram condições econômicas ou o domínio adequado do manejo para implementá-los.”

A Ceplac, órgão vinculado ao governo federal, reúne hoje uma lista de 18 variedades de cacau clonadas recomendadas a produtores. Pés de cacau clonados começam a produzir em um período entre quatro e cinco anos após plantados – e continuam dando frutos por pelo menos duas décadas.

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(Ana Lee/Superinteressante)
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Graças à ciência, também, foi possível descobrir um aspecto desconhecido do comportamento da vassoura de bruxa quase três décadas depois de ela ter surgido na região. Quando o fungo infecta um pé de cacau, a forma como a planta tenta se livrar do visitante indesejado é inibindo sua respiração – matando o intruso sufocado. O que pesquisadores da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) descobriram em 2018 é que a praga utiliza uma via alternativa para respirar, uma espécie de “pescoço auxiliar”, que não é identificado pelas defesas do pé de cacau ou por fungicidas.

“É como se a planta fosse um lutador de MMA muito forte e o fungo, um lutador fraquinho”, explica Gonçalo Pereira, coordenador do Laboratório de Genômica e Expressão da Unicamp. Quando a planta tenta estrangulá-lo, acaba gastando muita energia em vão, já que o fungo permanece respirando com seu pescocinho alternativo. Exausta por conta da tarefa, a planta acaba se tornando um alvo fácil para o lutador mais fraco. “Nesse momento, a doença muda de fase. Aí acontece a necrose do ramo infectado, que fica parecendo uma vassoura.”

O grupo de pesquisadores hoje trabalha no desenvolvimento de novas moléculas de agrotóxicos que consigam coibir com sucesso esse mecanismo. A ideia é que, no futuro, os testes resultem em opções de fungicidas mais eficientes para o mercado.

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(Arte/Superinteressante)

Hoje, a produção atual de cacau no Brasil não é suficiente sequer para satisfazer o consumo interno. Isso acontece desde 1996/1997, quando as 180 mil toneladas produzidas naquela safra não deram conta de atender às processadoras nacionais. O Brasil se tornava importador de cacau – condição que ocupa até hoje – e só voltaria a exportar o fruto quase 20 anos depois, em 2015.

A produção mundial hoje é comandada por Costa do Marfim e Gana: juntos, os países africanos garantem dois terços do cacau do planeta – o Brasil está em sétimo no ranking, com 4% do total. O mercado internacional, no entanto, vive um clima de apreensão. Em julho de 2019, a dupla ameaçou suspender a venda da próxima safra, 2020-2021, caso a tonelada do produto não chegue ao valor mínimo de € 2,3 mil. Se confirmado, o hiato nas exportações africanas seria suficiente para provocar uma crise de falta de cacau no mundo.

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A aposta no cacau fino

A maior parte dos 25 mil produtores do sul da Bahia ainda enxerga o cacau à maneira dos produtores africanos: como commodity. Segundo dados de um estudo realizado pelo Sebrae da Bahia em parceria com o Instituto Arapyaú, divulgado em fevereiro de 2019, 97% do cacau produzido serve para abastecer multinacionais. O mercado brasileiro no setor é dominado por três empresas: a franco-belga Barry Callebaut, a americana Cargill e a Olam, com sede em Singapura – todas contam com usinas em Ilhéus. Depois de processado, o cacau sai dali para abastecer grandes fábricas de chocolate, como a Nestlé.

Só 2% da produção total pode ser considerada cacau fino, e 1%, cacau “premium”. Tentar satisfazer os exigentes padrões de qualidade no cultivo dá resultado. Os lotes costumam ser pequenos, mas empresas como a Dengo, marca de chocolates criada pelo fundador da Natura, oferecem prêmios de 70% a 160% em relação ao preço do cacau na bolsa de mercadorias. Em 2018, foram compradas 160 toneladas de amêndoas, todas de fazendas do sul da Bahia.

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(Ana Lee/Superinteressante)

A ideia de tornar o cacau um produto com alto valor agregado e apostar em seu valor artesanal vem ganhando força. Os movimentos “bean-to-bar”, (da amêndoa à barra), e “tree-to-bar”, (da árvore à barra’), que apostam no uso de matéria-prima selecionada, reúnem ao menos 40 marcas no sul da Bahia. E contribuíram para que grupos de novos empreendedores – vários deles, descendentes de antigos coronéis da região – voltassem a fazendas, antes inativas, para produzir cacau. Só que o foco principal, agora, não são apenas as sacas de 60 quilos de amêndoas de cacau. São também barras com 70 (80 ou 90) gramas de chocolate fino, artesanal.

É o exemplo da empresária Juliana Aquino. Foram 15 anos afastada dos negócios da Fazenda Santa Rita, na cidade baiana de Arataca, que hoje ela administra com o marido. “A gente não tinha como assumir a produção. Ninguém conseguia mais se sustentar”, conta. Na propriedade de 400 hectares, 70 são dedicados a plantações de cacau. A maior parte da produção ainda é exportada, mas uma parcela serve para alimentar a produção da marca de chocolates Baianí, que hoje é de 50 kg por mês. A meta é chegar aos 600 kg mensais de chocolate. “Mais do que isso, fica difícil de administrar, perde o caráter artesanal.”

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Receitas com alto teor de cacau, porém, ainda esbarram em uma mudança de mentalidade de consumo. Acostumada a produtos mais doces, é normal que a clientela por vezes estranhe o gosto mais amargo de chocolates com 70%, 80% de cacau. E tem o preço. Chocolates bean-to-bar podem custar mais de R$ 200 o quilo. Por outro lado, há cada vez mais consumidores. Segundo um estudo do Sebrae feito em 2017, o mercado interno de chocolate gourmet tem uma taxa de crescimento anual de 20% – três vezes mais que o do chocolate comum. O sul da Bahia, quem diria, continua a dar frutos de ouro. A diferença é que, hoje, eles vêm em uma embalagem mais estilizada. 

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(Arte/Superinteressante)

*O repórter viajou a convite do 11° Chocolat Bahia Festival – Festival Internacional do Chocolate e Cacau

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