Um mistério de doze anos: a banda falsa que fazia covers fantásticos de Bowie
No ano em que muitos mistérios da internet foram resolvidos, poderiam solucionar este também.

2024 ficará marcado como o ano em que alguns dos maiores mistérios da internet se resolveram. Descobrimos, após quatro anos, a identidade da celebridade número 6. Descobrimos, após três anos, a verdadeira faixa que até então era conhecida apenas por “Ulterior Motives” — um sujeito no Reddit assistiu 12 horas de pornô só pra isso.
Descobrimos, após cinco anos, de onde veio a foto original das “backrooms” — o lugar fica em Wisconsin, EUA. Descobrimos, após 17 (dezessete!) anos, os reais autores da “música mais misteriosa da internet”.
Todas essas histórias são fascinantes para quem é cronicamente online e adora a jornada de investigar algo em grupo. Mas existe um mistério que já ultrapassa uma década de existência e permanece sem resposta: quem é a pessoa (ou pessoas) por trás da banda fake Milky Edward And The Chamberlings?
A história começou em fevereiro de 2012, quando uma conta no YouTube chamada @MilkyEdwards postou três vídeos em seu canal. Visualmente, são todos idênticos: uma pessoa põe um disco de vinil para tocar em uma vitrola enquanto, ao fundo, repousa a capa do álbum em questão — batizado de Starman e lançado supostamente em 1973, ele tem o nome do grupo e ilustrações dos quatro integrantes.
É no áudio que vem a surpresa: são três sublimes covers de David Bowie, mais especificamente das faixas Soul Love, Starman e Moonage Daydream, todas elas presentes no seminal disco The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars, de 1972, um dos mais importantes da carreira de Bowie.
Para quem gosta de soul e, especialmente, dos hits da gravadora Motown, as covers de Milky Edwards são um prato cheio. Elas retrabalham o glam rock de Bowie em algo mais festivo e dançante, com baixos pulsantes e backing vocals animados.
Há dois vocalistas principais, um mais jovem, de voz mais aguda, que empresta seu charme a Soul Love, e um segundo, mais velho e com voz mais encorpada, que cuida das outras duas faixas. Há muito o que amar aqui conforme as composições de Bowie derretem por entre o frenesi da música negra dos anos 60, passeando com seu groove uptempo entre cabelos afro e vestidos de bolinha.
Para um artista que já teve cover de todo mundo — de Nirvana a Lorde, de Nine Inch Nails a Seu Jorge — e era geralmente descrito como um dos melhores vocalistas da história, Bowie foi dignificado com as versões de Milky Edwards. Elas realmente soam autênticas, como o trabalho de alguém que ama música.
A reação natural de quem gostava das faixas era procurar saber mais sobre o grupo e esse álbum misterioso de 1973. Só que, para a surpresa de muitos, a internet não ajudava: sites como Wikipedia, AllMusic, Discogs e afins não tinham nenhum registro de Milky Edwards nem de seus Chamberlings. Quem eram esses caras?
As descrições dos vídeos ofereciam poucos detalhes sobre a banda em si. “Vinil difícil de achar” dizia a postagem de Starman. “Raro”, dizia a postagem de Moonage Daydream.
A única outra manifestação que tivemos de @MilkyEdwards foi em resposta a um comentário: “Sooper8 — acidentalmente deletei seu post sobre ser gravado na Holanda. Eu posso dizer com propriedade que o álbum com certeza não foi gravado lá”. E só. Até hoje, isso é tudo que temos de comunicação por parte dessa banda.
Fraude?
Demorou mais de um ano para que alguém notasse os links e os vídeos começassem a viralizar, em setembro de 2013. A notícia começou a se espalhar pelas redes sociais e, em poucos dias, as covers de Milky Edwards eram um sucesso.
As desconfianças de fraude foram imediatas. O fórum Rate Your Music foi o primeiro a levantar a bola de que a coisa toda poderia ser uma armação. A thread ainda existe, mas o primeiro post foi deletado — nele, o usuário apontava a primeira indicação definitiva de fraude: a fonte usada na arte da capa do disco era moderna demais para estar em um álbum dos anos 1970.
Alguns dias depois, um artigo no jornal The Guardian investigou o assunto a fundo, trazendo a história para o mainstream. O autor Ian Watson consultou um designer gráfico que atestou: a fonte, Mojo Standard, era mesmo contemporânea (criada em 1996), portanto a arte, no mínimo, não era o que dizia ser.
Anos depois, em 2017, o youtuber Lawls fez um vídeo recriando a capa de Milky Edwards And The Chamberlings e descobriu outra coisa: o texto “And The Chamberlings” havia sido aplicado com uma segunda fonte, chamada Jonah, que é ainda mais nova, de 2005. Utilizando as duas fontes, ele conseguiu remontar a imagem com proximidade o suficiente para deixar evidente que se tratava de uma arte feita neste século.
E os quatro sujeitos na capa? Ninguém sabe quem são, mas os comentários nos vídeos têm suas próprias teorias, levantando nomes como Idris Elba, Carl Weathers e até Martin Luther King. O design parece ser uma “homenagem” à capa de Reflections, álbum das Supremes.
As Supremes também são influência para a música em si. “Starman” copia o riff inicial de “You Keep Me Hangin’”, enquanto “Moonage Daydream” empresta o baixo de “You Can’t Hurry Love”. Também há influências claras de grupos como Temptations e Four Tops.
Voltando pra 2013, a descoberta de que se tratava de uma fraude não atrapalhou o sucesso de Milky Edwards. O próprio site oficial de David Bowie reconheceu a qualidade das faixas com um post anunciando “versão soul de Ziggy Stardust descoberta”.
Diz o texto: “Milky Edwards & The Chamberlings não é um nome que tenha perdurado ao longo dos anos, apesar de aparentemente terem lançado um álbum de covers impressionantes de Bowie no estilo da Motown em algum momento da década de 1970.
O LP de 11 faixas é chamado Starman e apresenta versões de todas as músicas do álbum Ziggy Stardust. No entanto, informações sobre o grupo são difíceis de encontrar, assim como cópias do próprio disco. Comentários deixados na página deles no YouTube sugerem que a banda teve um fim prematuro após um período na gravadora Mercury, em meio a rumores de satanismo e suicídio.
Infelizmente, as evidências apontam para o fato de que isso é, na verdade, um engano moderno e que Milky Edwards & The Chamberlings nunca existiram de verdade. Mas não deixe isso desanimá-lo.
As três faixas disponíveis no YouTube (Soul Love, Moonage Daydream e Starman) ainda valem muito a pena ouvir, e vamos torcer para que quem quer que esteja por trás dessa farsa grave o restante do álbum em breve”.
(O papo de satanismo e suicídio, muito reproduzido por aí, origina-se de um único comentário feito no vídeo de Moonage Daydream, postado antes dos vídeos viralizarem. A conta que postou essa história provavelmente faz parte da farsa.)
Havia, e ainda há, um site oficial, com um endereço de e-mail para quem quiser entrar em contato. Os que tentaram nunca obtiveram resposta.
Mas quem era, afinal?
Como dito, nunca ninguém revelou ser o verdadeiro Milky Edwards. Na época, a imprensa musical chegou a questionar alguns suspeitos, como Tom Jones, Sharon Jones e Charles Bradley, mas todos negaram estar relacionados à história.
A única novidade que tivemos nesses anos todos foi quando supostamente, em 2021, uma caixa com 300 compactos do grupo, fabricados na Argentina, desaguou na costa de Portugal. Os vinis foram colocados à venda e, hoje, dá para achar no Discogs. Mas a história é fantástica demais para ser verdade e o mais provável é que alguém tenha ripado o áudio dos vídeos do YouTube e gravado em vinil para fazer uma graninha. A gravadora que consta no rótulo, ZS Records, é uma óbvia brincadeira (ZS = Ziggy Stardust).
E é aqui que termina a história. 12 anos depois, ninguém sabe quem foi Milky Edwards e de onde veio sua fenomenal música soul. Tudo o que temos são essas três faixas anônimas. Até que alguém, um dia, revele a verdade.