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Todo mundo tem razão?

De um lado, há a idéia de que cada sociedade tem o direito de definir como quiser as regras que regem a vida dos indivíduos. De outro, a de que há uma ética universal que não pode ser violada.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 30 jun 2001, 22h00

Rodrigo Cavalcante

No meio de uma conversa de bar, um amigo conta que acabou de voltar de um país do Oriente Médio onde as mulheres não podem expor o rosto nas ruas e as adúlteras são punidas com pedradas em praça pública. Na mesma linha de citações de “costumes exóticos”, alguém diz que conhece uma aldeia indígena que obriga os meninos a passarem por um doloroso rito de passagem para a vida adulta: eles têm que colocar a mão numa cumbuca de palha cheia de formigas gigantes que picam suas peles até sangrar – uma prova de que suportam a dor e se tornaram homens. Outro amigo, médico, desata a falar mal da religião de um dos seus pacientes que é contra a transfusão de sangue em nome de uma pureza espiritual. A essa altura, o clima cordial da conversa muda e alguns ficam visivelmente agressivos no ataque a esses costumes.

Para complicar a situação, aparece alguém defendendo a tese de que o que parece absurdo e inevitável para nós pode ser perfeitamente normal para os outros: afinal, se os valores morais variam de povo para povo são diferentes e devem ser respeitados, quem somos nós para julgá-los?

Esse impasse quase sempre leva a duas reações. Ao longo da história, a mais comum tem sido impor os valores de uma cultura hegemônica, que se arvora superior, sobre outra. Na marra. O resultado você conhece: romanos perseguindo cristãos, cristãos tentando converter os índios, judeus perseguidos pelos nazistas, europeus colonizando a África. A segunda reação tem sido procurar uma resposta para uma pergunta espinhosa: apesar das evidentes diferenças de cultura e de comportamento entre os povos, há valores que todos os homens devem respeitar? De onde vem a nossa noção do que é certo e errado?

No plano pessoal, a resposta para essas perguntas faz toda a diferença na hora de ajudar ou não um amigo, ser leal ou infiel à namorada, demitir ou dar mais uma chance ao empregado. Até no descontraído futebol com os amigos, seus valores morais estão lá, ajudando-o a decidir se você deve ou não “retribuir” um pontapé desleal. No plano mundial, a existência ou não de uma ética universal define o que são os direitos humanos, como devem ser usadas as inovações científicas e até mesmo o que deve ser entendido como um crime de guerra.

Para alguns pesquisadores, os valores morais não caem do céu como supostamente aconteceu com os dez mandamentos. Eles são invenções humanas, estratégias da espécie para garantir sua sobrevivência. “O que chamamos de bondade e solidariedade não são inspirações divinas”, diz o americano Edward O. Wilson, professor da Universidade de Harvard, especialista no estudo das origens biológicas do comportamento humano. Ele explica que se um dos nossos antepassados há milhares de anos decidisse abandonar seu grupo de caça para tentar a sorte sozinho, teria poucas chances de garantir o almoço. Com o tempo, uma série de tentativas e erros foi fazendo com que a vida social se tornasse um dos traços da espécie humana. “A necessidade de pertencer a um grupo e ser fiel a ele tornaram-se características do homem”, diz Wilson. “Sabe aquela união que a gente sente quando estamos torcendo pela seleção na Copa do Mundo? Ela surgiu aí.”

O problema é que esses mesmos laços que unem uma torcida também são usados para agredir a torcida adversária. “É o lado perverso dos valores humanos”, diz Wilson. “A solidariedade dentro do grupo não vale para os grupos de fora.” Cada grupo tenta impor seus valores como os melhores, resistindo a aceitar diferenças de cultura. Se as regras do futebol dão margem para tanta polêmica, imagine o que acontece quando se tenta criar regras de conduta para toda a humanidade.

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A Organização das Nações Unidas (ONU) tentou fazer isso ao proclamar, em dezembro de 1948, os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Dali para a frente, os países que não seguissem essas normas poderiam estar sujeitos a punições. Estaria tudo bem resolvido não fosse por um detalhe: como um seleto grupo de países pode definir quais são os valores que devem ser seguidos por todos os homens, seja numa ilha no Pacífico, seja no bairro onde você mora?

“Apesar de ter sido elaborada por algumas nações, a declaração serve para defender qualquer ser humano da violência e da intolerância”, diz Katerina Stenou, diretora da divisão de políticas culturais da Unesco – o órgão das Nações Unidas responsável por estudar problemas de ordem cultural como esses. “Esse texto está sempre aberto a receber contribuições de outras culturas, mas não podemos aceitar a idéia de que os direitos individuais podem ser desrespeitados com a desculpa de que as culturas são diferentes.” Ela rebate assim a crítica de que a declaração não faz sentido para todos os homens, já que, em algumas culturas, os direitos individuais são menos importantes que os direitos coletivos. Os antropólogos sabem que em muitas aldeias indígenas, como na dos ianomâmis, não há nada de anormal em abandonar um recém-nascido por excesso de gente na aldeia ou porque ele nasceu com uma deficiência física.

Imagine se algum grupo político, usando essa pequena sociedade como exemplo, defendesse a tese de que alguns seres humanos têm que ser sacrificados para o bem geral? Tome-se o exemplo da circuncisão feminina praticada em alguns países africanos. Ou do hábito de alguns homens do mundo árabe de jogar ácido no rosto de mulheres cujo comportamento eles não a-provam. São selvagerias indefensáveis ou autodeterminações daquelas sociedades, que devem ser respeitadas pelos outros povos?

A antropóloga Alcida Rita Ramos, diretora da Organização Não-Governamental Pró-Ianomâmi reconhece que diversas vezes ficou chocada com alguns traços culturais dos índios que estuda. “O estômago fica embrulhado, mas a gente tem que entender que isso faz sentido naquela comunidade”, diz Alcida. “Até mesmo porque um índio ficaria dez vezes mais chocado se tivesse que estudar o nosso sistema presidiário ou como alguém pode morrer de fome enquanto outro joga comida fora.” Para o índio e antropólogo Daniel Mundurucu, “textos como a declaração dos direitos humanos foram escritos por povos que abandonaram valores comunitários. Isso faz pouco sentido para os índios, que ainda seguem esses valores.”

Você já deve ter notado que essa discussão volta recorrentemente à-quele instante na mesa do bar em que cada um coloca o seu ponto de vista e a conversa chega a um impasse. Para continuar o bate-papo, há basicamente duas soluções que dividem a maioria dos pensadores contemporâneos. A primeira delas é reconhecer que, de fato, não existe nada que se possa chamar de valor universal. Cada povo tem a sua cultura e elas não são nem melhores nem piores entre si – são apenas diferentes. Boa parte dos pensadores ocidentais chegou a essa conclusão, incluindo aí desde o filósofo alemão Friederich Nietzsche até o existencialista francês Jean Paul Sartre. “É difícil para a humanidade conviver com a idéia de que não existem certezas universais”, diz Ciro Marcondes Filho, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Novas Tecnologias, Comunicação e Cultura da Universidade de São Paulo (USP).

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Ciro compara esse sentimento ao de um jovem que perdeu o pai autoritário e ainda não sabe o que fazer com a sua liberdade. “É claro que é mais complicado viver num mundo sem certezas”, diz. “Mas o que as pessoas querem? A volta de ideologias dogmáticas nos dizendo o que fazer?” Esse período de desilusão com as ideologias unificadoras, que abalou o mundo nas últimas décadas, foi batizado por alguns pensadores franceses de era pós-moderna. Esqueça o nome complicado e guarde isso na cabeça: viver num mundo pós-moderno é ter que admitir que suas certezas mais íntimas não passam de princípios pessoais ou da sua cultura que valem tanto quanto os de qualquer outra pessoa, por mais exóticos e intragáveis que eles lhe pareçam. Para os pós-modernos, aquele impasse na mesa de bar não é necessariamente ruim e nem há porque ser nostálgico. Assim como o homem ficou um pouco aturdido quando descobriu que a Terra não é o centro do nosso sistema solar, ele deve se acostumar com a noção de que não existe uma razão universal.

A segunda solução para o impasse é acreditar que há, e deve haver, um mínimo denominador comum entre as culturas, que defina uma ética universal válida para todas as sociedades do planeta. Afinal, um partido político fascista tem o direito de se registrar em nome do direito de expressão? “Mesmo que não haja uma razão universal, devem existir regras para impedir a ascensão de grupos extremistas”, diz Ciro Marcondes. “Mas essas regras são tão elementares que não precisam ser defendidas em nome de uma ética universal.”

Para essa linha, é impossível defender qualquer valor elementar de direitos humanos sem que haja um centro que oriente a discussão. “No tempo da ditadura, os militares brasileiros também costumavam relativizar os direitos humanos dizendo que isso não se aplicava ao nosso país”, diz o diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras Sérgio Paulo Rouanet. Mas ele diz que é possível usar a razão para defender alguns valores em detrimento de outros. Um desses mecanismos racionais pode ser encontrado na velha bronca que as mães dão em seus filhos quando eles fazem mal ao irmão caçula: “Você gostaria que ele fizesse isso com você?” Se a resposta for “não”, nem você nem ninguém deve fazer o mesmo com qualquer ser humano. De uma forma mais rebuscada, essa foi a proposta defendida pelo filósofo alemão Immanuel Kant no século XVIII.

Outra saída racional para a diferenciação não-preconceituosa entre as culturas seria a criação de instituições políticas que não levem em conta as crenças pessoais de cada cultura para impor convicções dogmáticas à força. “Foi o que aconteceu depois das guerras sangrentas na Europa entre católicos e protestantes no século XVII”, diz Cícero Romão Filho, professor do Departamento de Ciências Políticas da USP. “Os assuntos divinos foram separados dos assuntos terrenos, e os direitos civis foram assegurados.” Se isso não tivesse acontecido, todas as disputas judiciais teriam que ser resolvidas na Igreja até hoje. Para o antropólogo evolucionista Dennis Werner, da Universidade Federal de Santa Catarina, a ciência também pode ajudar o ser humano a definir conceitos como o bem-estar físico e psicológico, cabendo aos homens seguir os valores que proporcionem esse bem-estar.

“É preciso acreditar que é possível criar instituições que melhorem a qualidade de vida dos homens”, diz Werner. “E só a ciência, com ajuda da psicologia neurológica, por exemplo, pode ajudar a definir o que esse bem-estar significa.”

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O filósofo Renato Janine Ribeiro, da Universidade de São Paulo, diz que todas essas estratégias racionais não são regras prontas, como receitas de bolo. “Cada julgamento de valores requer um criterioso processo de debate”, diz. “E para cada um desses julgamentos é preciso assumir a responsabilidade de todas as conseqüências.” Não há como esperar, portanto, que aquela discussão de mesa de bar seja tranqüila como um chá beneficente. Mas, apesar das divergências entre os que defendem uma ética universal e os que defendem as diferenças (veja quadro ao lado), todos concordam que cada um deve ter seu lugar garantido à mesa. É bom, portanto, ir se preparando para voltar mais tarde para casa. Pelo menos nessa roda, a saideira ainda vai demorar.

 

rcavalcante@abril.com.br

Para saber mais

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Na livraria

 

As Origens da Virtude

Matt Ridley, Record, 2000

 

Condição Pós-Moderna

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David Harvey, Loyola, 1993

 

Consiliense

Edward Wilson, Harvard Press, 1998

 

Raça e História

Claude Lévi-Strauss, Os Pensadores, 1972, Abril Cultural, 1972

 

As Razões do Iluminismo

Sérgio Paulo Rouanet, Companhia das Letras, 1992

 

Uma História da Verdade

Felipe Fernandez-Armesto Record, 2000

A razão de cada um

De um lado, os argumentos dos que acham que não há valores universais – apenas crenças particulares de cada cultura. Do outro, os que defendem que existe, sim, uma ética válida para todos, independentemente das crenças de cada um.

 

Racionalistas – Apesar das diferenças culturais, é possível estabelecer valores que devem ser seguidos por todos os homens

Relativistas – Não existe uma ética universal. Todos os valores são valores de um grupo e não podem ser generalizados

 

Racionalistas – Os valores universais são baseados na busca da razão. Foi essa busca que assegurou o surgimento da democracia e da cidadania

Relativistas – O que o Ocidente chama de razão pode ser outra coisa em outras culturas. Não há como defender que a democracia ocidental é mais racional do que a organização política de uma tribo indígena

 

Racionalistas – Os direitos individuais não podem ser sacrificados em nome da coletividade

Relativistas – O indivíduo como o conhecemos é uma invenção do ocidental do século XVIII. Em outras culturas, não existe essa divisão entre sociedade e indivíduo

 

Racionalistas – O progresso de cada povo depende do grau de formação científica de seus cidadãos

Relativistas – Para outras culturas, o progresso não pode ser entendido como uma seta de tempo liderada pela ciência e tecnologia. Afinal, os povos com menos educação científica podem ser considerados mais evoluídos por viverem em harmonia com a natureza

 

Racionalistas – Se a democracia não pode ser considerada superior a outros valores, qualquer ditador pode usar a violência em nome da diversidade

Relativistas – A defesa contra a violência física pode ser assegurada sem a necessidade de uma ética universal. Esses direitos são elementares

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