Samdhong Rinpoche
Primeiro-ministro do governo exilado do Tibete, o lama Samdhong Rinpoche diz que os jogos na China vão contribuir com a luta pela autonomia da região
Eduardo Szklarz
O dalai-lama vem chamando a atenção do mundo inteiro por sua luta pela autonomia do Tibete contra a invasão chinesa. Mas, nos bastidores, quem mexe os pauzinhos para articular com a China é Samdhong Rinpoche, o primeiro-ministro do Governo Tibetano no Exílio, entidade que representa a região e tem sede em Dharamsala, na Índia. Rinpoche tinha 11 anos quando seu país foi invadido pelas tropas de Mao Tsé-tung, em 1950, e fugiu de lá 9 anos depois – quando o regime comunista aumentou a repressão para conter uma revolta popular. Hoje, esse monge budista de voz serena e pausada lidera seu povo nas rodadas de diálogo com o governo de Pequim e denuncia atos de violência nas alturas do Himalaia.
“Esse problema não é apenas de um grupo de pessoas mas de toda a humanidade”, diz. Uma das maiores autoridades mundiais em budismo e especialista nos ensinamentos de Mahatma Gandhi, Samdhong Rinpoche prega, como o líder indiano, uma resistência não violenta. Nesta entrevista, ele afirma que é contra os protestos pró-Tibete nas cidades que receberam a tocha olímpica, revela que sua maior esperança está no povo chinês e explica por que o Tibete não reivindica a independência, apenas a liberdade religiosa.
Como você vê os protestos nas cidades percorridas pela tocha olímpica?
Aprecio a boa intenção das pessoas que se manifestam a favor do Tibete. Essa é uma excelente oportunidade que eles têm de chamar a atenção do mundo para a nossa causa. Mas não posso apreciar suas ações, que não são muito educadas nem pacíficas. Sua agressividade atrapalha a passagem da tocha por essas cidades. Não me sinto feliz com isso.
Você diz que os países não devem boicotar os Jogos Olímpicos de Pequim. Acredita que o evento pode ajudar a democratizar a China?
Não sei se os Jogos Olímpicos terão esse impacto. Mas o certo é que eles não são realizados apenas para as autoridades da China, e sim para todas as pessoas comuns que vivem lá. O povo chinês está muito orgulhoso por sediar os Jogos e, se eles não forem realizados de maneira apropriada, as pessoas ficarão chateadas e infelizes. A felicidade dos chineses é muito importante. Além disso, o evento talvez favoreça sua interação com outros povos e com o mundo livre. Nesse sentido, os Jogos Olímpicos podem ter um bom efeito na mente do povo chinês – e é por isso que apoiamos sua realização.
O povo chinês poderia apoiar a causa tibetana?
Sim. Se eles entendessem a nossa causa, certamente nos ajudariam. Muitos chineses inclusive já estão nos apoiando, dentro e fora da China. Infelizmente, a maioria deles não tem acesso à informação livre. Estão sendo constantemente doutrinados pela propaganda da RPC [República Popular da China]. Mas, quando vão ao Tibete e vêem que a realidade é outra, eles se tornam simpatizantes da nossa causa. E, quanto mais o povo chinês tiver acesso a uma informação completa, mais nos apoiará.
Qual é a realidade do Tibete hoje?
O povo do Tibete está sob completa repressão por parte das forças chinesas. Nos últimos 50 anos, ele vem sendo afetado por graves problemas: não existe liberdade de expressão, de pensamento nem de religião. Tudo é regulado. Os tibetanos também vivem uma crise econômica muito difícil, sem acesso a educação e a serviços de saúde. A cada ano, milhares de pessoas das novas gerações arriscam sua vida tentando escapar para a Índia. Já há cerca de 150 mil tibetanos vivendo fora do Tibete.
A modernização da China pode ajudar a melhorar essa situação?
Não existe modernização na China. Se ela existisse, seria muito bem-vinda. Modernização significa respeito pelos direitos humanos e uma sociedade aberta que garante os direitos individuais. Nada disso existe na China. O que existe lá é apenas o mercado e o consumo. Mas mesmo o crescimento da economia chinesa não vem beneficiando o Tibete; ele beneficia apenas os imigrantes chineses que estão se assentando ali, enquanto o povo tibetano original está sendo marginalizado, sem nenhuma prosperidade econômica. Para acabar com a nossa identidade, a China promove um programa de mudança demográfica para o Tibete. Hoje, os chineses já somam quase 8 milhões, contra 6 milhões de tibetanos.
Vocês não reivindicam a independência do Tibete, e sim a autonomia religiosa e cultural. Mas, com o tempo, essa autonomia não levará naturalmente a uma necessidade de independência política?
Por que deveríamos pensar nesses termos? Tudo depende de nossa relação com o governo da China. Se o governo nos tratar bem e garantir nossa autonomia, então estaremos totalmente satisfeitos e felizes. O que pedimos é liberdade de expressão, cultura e religião. Se tivermos liberdade e pudermos ter uma vida boa, por que pediremos a separação política?
Há esperança de que em breve a China aceite essa autonomia e que o dalai-lama possa regressar?
Sim, com certeza. Basta que eles tenham vontade política de implementar o que a Constituição chinesa garante: a autonomia nacional regional [por esse sistema, áreas de minorias étnicas podem gozar de uma espécie de autogoverno sob a liderança do governo central chinês]. Se essa autonomia for de fato implementada, o povo tibetano poderá seguir o próprio modo de vida e suas tradições. A China não precisa mudar a Constituição, apenas implementá-la. Nada mais.
Grande compradora de matérias-primas, a China tem uma influência cada vez maior em países da Ásia e da África. Essa expansão prejudica a democracia no mundo?
A comunidade internacional precisa pensar nisso. Os países desenvolvidos falam muito em liberdade, igualdade e democracia. Mas, na hora de lidar com regimes ditatoriais e autoritários, eles não são enérgicos o suficiente para detê-los. Isso acontece porque o mercado chinês é mais importante que direitos humanos, a democracia e a liberdade.
Por outro lado, muitos dizem que o crescimento do mercado chinês poderia conduzir à democracia no país. O que você acha?
Muitas pessoas acreditam que a liberalização econômica levará à liberalização política. Mas isso não aconteceu até agora. Ao contrário: as multinacionais estão mais felizes com os regimes autoritários do que com os democráticos.
Por quê?
Na China, as empresas podem fazer o que quiserem, desde que mantenham um líder político feliz e um comandante militar em suas mãos, subornando-os. Num país como a Índia é diferente: embora ela tenha uma população e um mercado semelhantes aos da China, não há tantas empresas interessadas em investir lá porque na Índia existe democracia, estado de direito, poder judiciário independente, imprensa livre e plena abertura para a participação de sindicatos. Os trabalhadores indianos não podem ser explorados como os chineses – que ganham salários baixos ou mesmo nenhum salário. Portanto, o poder econômico ocidental está protegendo o regime autoritário chinês.
O dalai-lama sempre pregou a luta pacífica, a não-violência. Como vocês reagem aos protestos ocorridos nas últimas semanas no Tibete?
Não acredito que a violência tenha sido iniciada pelos tibetanos. Ela foi iniciada por não-tibetanos ou pelas autoridades chinesas. Creio que os tibetanos foram empurrados para uma situação intolerável. Por isso, houve um pouco de violência. Do contrário, o povo tibetano não iniciaria a violência por si só.
Muitos dizem que, antes da invasão chinesa, o Tibete era uma sociedade feudal, com escravidão e sem escolas. O país se modernizaria mesmo se não fosse invadido pela China?
Se os chineses não tivessem ocupado o Tibete, ele estaria muito mais moderno e democrático. Antes da ocupação, não havia pessoas sem acesso a comida, escolas ou mesmo medicamentos. Não havia muitos ricos, assim como não havia pobres necessitando de serviços básicos. As pessoas eram muito felizes. Claro que não se tratava de uma democracia propriamente dita, mas um tipo de combinação entre religião e política, assim como havia proprietários de bens e também camponeses. Mas a relação entre eles não pode ser comparada com os feudos da Europa medieval.
O que os dalai-lamas fizeram para melhorar a situação do povo tibetano?
O 13º dalai-lama fez todos os esforços para democratizar o Tibete, mas não pôde realizá-lo devido aos distúrbios provocados por britânicos e chineses nos primeiros anos do século 20. O 14º dalai-lama [Tenzin Gyatso, o atual líder espiritual dos tibetanos] também estava ansioso por democratizá-lo, mas infelizmente o Tibete foi ocupado pela China. Hoje, os tibetanos que vivem no exílio pedem 100% de democracia no país, mas isso não tem sido possível. Se você observar outros países da região, como Nepal e Butão, verá que todos eles passaram por processos de modernização. Só o Tibete ficou de fora. A ocupação não trouxe qualquer melhora ao povo tibetano. As pessoas não deveriam acreditar na propaganda chinesa.
A popularidade do budismo no Ocidente, inclusive no Brasil, explicaria o apoio ao Tibete?
É possível. O budismo é muito compatível com a ciência moderna – e talvez essa seja uma das razões de sua popularidade nos países do Ocidente.
Os dois Tibetes
O maior entrave ao diálogo entre tibetanos e chineses é a visão que cada lado tem da história. A China afirma que o Tibete já era parte de seu império desde o século 13. Já o Tibete diz que funcionou como um reino independente durante séculos e que a China não exerceu sobre ele um domínio constante. Em 1912, por exemplo, os tibetanos declararam sua independência e tiveram autonomia até 1950 – quando a China voltou a conquistar a região.
E aí começa outra divergência. Os chineses dizem que “liberaram” o Tibete do feudalismo, acabando com a opressão do povo por uma elite corrupta que mesclava religião com política. E que os tibetanos nunca tiveram tanta qualidade de vida quanto hoje. Já para os lamas, a ocupação destruiu milhares de mosteiros e matou cerca de 1,2 milhão de pessoas. Especialistas estimam que o número de mortos é menor, mas chegaria a centenas de milhares. Pelo menos num ponto, lamas e autoridades chinesas concordam: o Tibete está cada vez mais parecido com o resto da China – com grandes fábricas, boates e prostitutas (como na foto acima).
Samdhong Rinpoche
• Tem 69 anos e nasceu em Jol, uma vila situada nas montanhas do leste do Tibete.
• Seu verdadeiro nome é Lobsang Tenzin. Aos 5 anos, foi reconhecido como a reencarnação do 4º Samdhong Rinpoche (um título religioso tibetano que significa algo como “O Precioso”).
• Como um bom monge, ele esbanja paciência na hora de negociar com a China. “Para uma pessoa, 50 anos é muito tempo. Mas não para uma nação. Por isso, continuamos nossa luta”, diz.
• Gosta de comida indiana, de preferência apimentada.