Rival de “Ainda Estou Aqui”, “Flow” foi feito com software gratuito e apoio do governo da Letônia
A animação é o primeiro filme letão a chegar ao Oscar. Virou febre no país europeu e já está revolucionando o cinema por lá. Entenda.

Na semana passada, Ainda Estou Aqui se tornou a primeira produção brasileira a ser indicada ao Oscar de Melhor Filme. A notícia antecipou o Carnaval e colocou todo mundo em clima de Copa do Mundo. Uma festa. Mas nós não somos os únicos animados por uma nomeação inédita.
A Letônia, país europeu da região do mar Báltico, conseguiu as suas primeiras indicações ao Oscar com Flow, que concorre a Melhor Animação e a Melhor Filme Internacional – categoria que disputa com Ainda Estou Aqui e outros três filmes (o francês Emília Perez, o dinamarquês A Garota da Agulha e o alemão A Semente do Fruto Sagrado).
Ex-república soviética, a Letônia tem 1,8 milhão de habitantes – o mesmo que Curitiba. E, nas ruas da capital Riga (e provavelmente no resto do país), só dá Flow. “Há pôsteres do filme por todo lugar e pessoas fazendo grafite de gato”, disse ao site Deadline Gints Zilbalodis, o diretor da animação.
Flow acompanha a história de um gato que precisa arranjar um novo lar após uma enchente inundar a região em que vive. No caminho, ele precisará se unir com outros animais (entre eles, um cachorro, um lêmure e uma capivara) para enfrentar a catástrofe. Veja o trailer:
Flow não tem diálogos. Foi feito com uma equipe e orçamento enxutos e finalizado a poucos dias de sua estreia, no Festival de Cannes. Desde então, tem ganhado uma porção de elogios da crítica e prêmios importantes – no começo do ano, ele desbancou filmes como Robô Selvagem e Divertida Mente 2 e levou o prêmio de Melhor Animação no Globo de Ouro.
Vamos entender os bastidores desse filme – e a revolução que ele já causou no mercado de cinema da Letônia.
Equipe pequena, repercussão gigante
Flow demorou cinco anos e meio para ficar pronto. É um prazo razoável para longas de animação. Mas as semelhanças com Pixar, DreamWorks e cia. param por aí. O filme letão custou cerca de US$ 3,8 milhões. Para comparar com outros indicados ao Oscar desse ano: estima-se que Robô Selvagem custou US$ 78 mi; Divertida Mente 2, US$ 200 mi.
Além disso, a equipe de produção também é bem pequena para os padrões de uma animação. Uma rápida pesquisa na base de dados do IMDb mostra que Zilbalodis exerceu diversas funções: além de diretor, foi coroteirista, coprodutor, designer de produção… Até compôs a trilha do filme.
Nascido em 1994, Zilbalodis é o mais famoso nome da nova geração de cineastas da Letônia. Antes de Flow, o diretor trabalhava majoritariamente sozinho. Seus curtas e até mesmo seu primeiro longa, Away (2019), foram feitos dessa forma.
Zilbalodis define Flow como um filme naturalista. A partir de (muita) observação de ambientes reais, ele e sua equipe conceberam animais e diversas cenas com água (um dos elementos mais difíceis de se fazer no mundo da animação). Para isso, usaram o Blender, um software gratuito e de código aberto.
Em vez de desenhar storyboards (uma espécie de história em quadrinhos que serve para guiar a gravação, seja ela live action ou animada), a produção do filme construiu grandes cenários em 3D e “passeou” por eles com a câmera, como se estivessem explorando uma locação real. Segundo o diretor, isso ajudou a decidir como filmar a história.

Tudo precisou ser seguido à risca para não estourar o orçamento. Por isso, não há cenas deletadas de Flow.
Para escolher os animais, a equipe do filme considerou uma porção de espécies. A seleção final levou em conta a diversidade de formato e as possibilidades de interação entre eles. Quase todos foram dublados usando sons de animais de verdade. A exceção foi a capivara, que em Flow emite o som de um camelo bebê. O diretor achou que o barulho real do bicho (que parece o de um pato) não combinava com a personagem.
Flow estreou na mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes, um dos mais importantes do cinema. O filme foi finalizado há poucos dias do evento – Zilbalodis só conseguiu ver o corte final na estreia. Desde então, Flow tem conquistado a crítica, bateu recordes de bilheteria na Letônia – e está provocando uma revolução no setor em sua terra natal.
Mercado em ascensão
Durante boa parte do século 20, o letão que quisesse estudar cinema precisaria se mudar para cidades como Moscou e São Petersburgo. Escolas especializadas em audiovisual demoraram para chegar ao país.
Com o fim da União Soviética, em 1991, o cinema foi uma das ferramentas usadas na Letônia para fortalecer a identidade do país – mas uma forte crise financeira atrasou os planos de expansão desse setor.
A Letônia foi o membro da União Europeia mais atingido pela crise de 2008. O PIB encolheu 24% e a taxa de desemprego chegou a 19,5%. Uma das consequências desse período foi a fuga de cérebros e a falta de mão de obra qualificada. Na primeira década do século 21, a população diminuiu 13%. Dos que caíram fora, 80% têm menos de 35 anos.
Por sorte, a recuperação financeira veio – e rápido. O país tem se tornado um centro financeiro emergente, atendendo empresas russas e de outras antigas repúblicas soviéticas. O mercado cinematográfico não está fora dessa equação: graças a políticas do governo, filmes letões estão saindo do papel – e produções estrangeiras têm escolhido o país para realizar suas gravações.
Com incentivos que podem abater até 50% dos custos de produção, a Letônia criou um dos esquemas mais competitivos da Europa. Estúdios costumam chegar com uma equipe enxuta e, a partir daí, contratar mão de obra local para os sets. Estima-se que filmar por lá pode ser 25% mais barato que na Alemanha. Os preços em Riga também competem com os praticados em Praga (Tchéquia) e Budapeste (Hungria), outros destinos do leste europeu que já entraram na rota de Hollywood.
Flow é resultado de toda essa política audiovisual. O filme foi financiado sobretudo pela Letônia, mas também com grana da Bélgica e da França. Pela repercussão, o governo deu uma recompensa de 300 mil euros para a equipe do longa, além de mais 150 mil euros para cobrir os custos de divulgação para a campanha de prêmios.

A partir de agora, o objetivo é aumentar ainda mais o orçamento desse setor (apesar das políticas recentes, a Letônia ainda investe menos em audiovisual em comparação com os outros países bálticos, Estônia e Lituânia). Ainda no primeiro semestre, o Ministério da Cultura da Letônia apresentará um projeto para um programa de estudo focado em animação.
“Tem havido muito mais investimento depois de Flow“, disse Zilbalodis ao Deadline. “Em breve, devem construir mais estúdios por aqui”.
O Oscar acontece no dia 2 de março – mas Flow já fez história.