Planeta queijo
Como um alimento tão estranho, fedido e vivo, cheio de micro-organismos e coisas que jamais aceitaríamos em outras comidas, pôde acabar se tornando tão popular - e tão gostoso? A história, a ciência e o futuro do queijo
Marina Fuentes
Pegue 10 litros de leite, misture com ácido e deixe estragar num lugar quente. Algum tempo depois, o líquido terá se transformado numa massa semissólida, de aspecto estranho e lotada de bactérias – que se alimentam do leite e nele liberam seus excrementos. Parece apetitoso? Espere a gororoba secar, molde-a no formato desejado e coma. Se preferir, deixe-a apodrecendo por mais algumas semanas e fungos se juntarão à festa, adicionando mofo. Desde que a humanidade aprendeu a fazer queijo, ele virou uma de nossas comidas preferidas. Mas, se você parar para pensar, não deveria ser assim. “Os melhores queijos do mundo têm gosto muito forte, e cheiram como uma coisa que você não deixaria entrar na sua casa. O queijo é comida extrema”, define perfeitamente o queijólogo (opa, fromagier) Max McCalman, autor de vários livros sobre o assunto. Tem razão. O queijo possui características que jamais aceitaríamos em outros alimentos. Por que gostamos tanto dele? A história explica.
Acredita-se que a produção do queijo tenha começado junto com a criação de animais, lá pelo ano 12000 a.C. Mas a primeira referência a ele data do ano 3000 a.C, e está num desenho feito pelos sumérios. Era um povo que sabia viver: carrega a honra de ter inventado a cerveja. Ao contrário do que acontece hoje, em que a maior parte dos queijos é feita com leite de vaca, o primeiro queijo do mundo foi produzido com leite de cabra. Ele fez sucesso, tanto que os sumérios aprenderam a produzir 20 tipos diferentes de queijo, mas o sabor não era lá essas coisas. Isso porque o queijo sumério era fabricado pela mistura do leite com algum componente ácido, como suco de limão, que tinha a função de coagular o líquido e transformá-lo em sólido. Em alguns casos, isso resultava em queijos muito fedorentos. Tanto que o nome de um deles, nagabu, também era usado como xingamento pelos sumérios. Mas, naquela época, o gosto e o cheiro eram preocupações secundárias. O importante era conservar o leite, tarefa que o queijo cumpre excepcionalmente bem – isso acontece porque as bactérias e os fungos que o infestam não fazem mal ao ser humano (mais sobre isso daqui a pouco, quando chegarmos ao século 19).
O queijo só se tornaria realmente gostoso muito tempo depois, nos últimos séculos antes de Cristo. Isso porque sua composição mudou: saiu o limão e entrou o coalho, uma enzima produzida pelo estômago dos animais. Não se sabe exatamente como isso aconteceu, mas os historiadores acham que foi sem querer. Acontece que, naquela época, os romanos transportavem o leite em sacos feitos de pele de animal – que contém restos da tal enzima. Alguém pode ter deixado o leite muito tempo dentro do saco; e aí, ao abri-lo, encontrado uma bela surpresa. Hoje, a maioria dos queijos é produzida com coalho – e alguns levam também outros aditivos (veja no infográfico).
A expansão dos romanos pela Europa, entre 50 a.C. e o ano 100, foi a grande divulgadora da atividade queijeira – como dificilmente estragava, o queijo era a ração perfeita para os soldados de Roma, que o levavam por onde passavam. Os países que hoje se consideram reis dos queijos finos, como França e Suíça, devem isso aos romanos. Que também foram os responsáveis por transformar esse alimento, até então considerado coisa de pobres, em delícia gastronômica. Só que os romanos tinham um hábito curioso: misturar todos os tipos de leite em seus queijos (se você quiser saber no que dá essa mistureba, procure no supermercado um queijo espanhol chamado Cabrales – que é feito com leite de vaca, cabra e ovelha). Mas nem todas as receitas de Roma eram estranhas. Algumas delas, como a do parmesão tradicional, são seguidas até hoje. Os romanos também usavam o queijo numa panqueca (que chamavam de placenta), e criaram um cheesecake feito com leite de ovelha.
A empolgação com o alimento se tornou cada vez maior, até chegar ao ponto mais bizarro (e gostoso): os queijos mofados. O primeiro registro deles é do ano 800, quando o imperador Carlos Magno estava viajando pela França. Era uma sexta-feira, dia em que Carlos não comia carne, e seu anfitrião não conseguiu peixe. Decidiu servir um queijo – mofado. Depois de uma certa relutância, o imperador provou e adorou. E o tal queijo mofado, um roquefort, passou a ser considerado iguaria.
Mas nessa época o queijo sofreu seu primeiro revés. Surgiram teorias pseudo-científicas dizendo que ele fazia mal à saúde (podia causar pedras nos rins), e os médicos passaram a desaconselhar seu consumo, que caiu drasticamente. O desenvolvimento do queijo passou para os monastérios – que precisavam ser autossuficientes, e por isso investiam muito tempo e esforço na fabricação e no aperfeiçoamento de certos alimentos. Os monges trapistas, que já faziam uma ótima cerveja, inventaram queijos de alto nível, como o port-du-salut (um queijo forte, que é produzido até hoje -não por monges – e custa R$ 30 o quilo).
O Renascimento, entre os séculos 14 e 16, foi um tempo de renegar as crenças medievais e inventar coisas novas – inclusive de comer. O queijo ganhou variedades gourmet, como o brie e o camembert, e voltou a ser cultuado na Europa. Mas ainda levaria um bom tempo para chegar ao Brasil. Sim: embora houvesse vacas por aqui desde os primórdios da colonização, tivemos que esperar até o século 19 para ter acesso ao queijo – quando a receita de um tipo chamado Serro foi trazida pelos portugueses. Algumas fazendas passaram a produzir uma versão simplificada dele, o Queijo Minas.
Logo depois, o biólogo Louis Pasteur viria a fazer uma descoberta revolucionária. No final do século 19, ele constatou que a fermentação do queijo não era simplesmente uma reação química, causada pela mistura do leite com o coalho. Na verdade, ela era causada por seres vivos – 7 tipos de bactéria, que comem a lactose do leite e excretam vários tipos de substância. Sabendo dessas coisas, foi possível isolar, estudar e selecionar esses bichinhos. A fabricação do queijo se tornou uma ciência, e finalmente passamos a entender por que cada tipo tem o gosto que tem. O queijo suíço, por exemplo, é todo furadinho por causa do CO2 liberado pelas bactérias que vivem dentro dele. E seu gosto se deve aos ácidos acético e propriônico que elas geram. Pasteur revolucionou o queijo. Ironicamente, seu outro grande feito viria a causar uma grande polêmica entre os amantes desse alimento.
O QUEIJO SEM QUEIJO?
Existem duas maneiras de fazer queijo. A artesanal, com leite não pasteurizado, geralmente em fazendas pequenas e com processos tradicionais. O queijo artesanal é cheio de nuances e surpresas (dois pedaços do mesmo tipo, feitos pelo mesmo produtor, podem ter gostos completamente diferentes) e o preferido dos experts. O outro é o queijo industrializado, que compramos no supermercado. Ele é feito com leite pasteurizado, ou seja, que foi fervido para matar as bactérias naturais – só contém bactérias cultivadas em laborátorio, que são adicionadas artificialmente.
As duas filosofias, artesanal e industrial, sempre conviveram pacificamente nas prateleiras e barrigas do mundo. No Brasil, por exemplo, o Ministério da Agricultura exige que todos os queijos sejam feitos com leite pasteurizado – e concede licença para que algumas queijarias produzam com leite “cru” e métodos tradicionais, desde que elas sigam boas condições de higiene.
Mas uma guerra está se desenhando. Os EUA, maiores produtores do mundo, querem acabar de vez com o queijo não pasteurizado, que consideram perigoso para a saúde. Alguns tipos, como o brie e o camembert artesanais, já estão banidos por lá. É ilegal produzi-los, comprá-los ou importá-los – a alfândega apreende os queijos proibidos. E os especialistas temem que essa diretriz se espalhe para outros países, até se tornar uma norma quase global.
Exagero? Já está acontecendo. O melhor camembert do mundo é produzido na Normandia, região no norte da França. Só que duas companhias, responsáveis por 90% da produção de lá, decidiram abandonar o método de fabricação tradicional – e vão pasteurizar todo o seu queijo. Ou seja: o camembert autêntico praticamente desapareceu. “O queijo precisa das bactérias naturais para se desenvolver plenamente. A gente aprendeu que as bactérias do iogurte fazem bem à saúde. Vamos acabar aprendendo que as bactérias do queijo também são benéficas”, acredita o historiador da comida Andrew Dalby. Talvez ele esteja sendo muito otimista. Na verdade, a tendência é outra. Os queijos industrializados podem ter sua gordura animal (leite) substituída por gordura vegetal. Ou podem ser totalmente feitos à base de vegetais. Não, não estamos falando do tofu. Estamos falando do queijo sintético – um produto que tem cor, textura, cheiro e até gosto de queijo. Mas não é queijo. Nos EUA, ele é um megassucesso: geralmente na versão cheddar, pode ser encontrado em qualquer supermercado e em várias redes de fast food. Um teste feito pelo governo alemão com 51 marcas e tipos de queijo descobriu que 40% deles eram sintéticos – sem que essa informação estivesse destacada no rótulo.
No Brasil, a onda do queijo sintético invadiu as prateleiras de requeijão: vários deles contêm amido ou gordura vegetal (informação que consta do rótulo, mas em letrinhas bem pequenas), e por isso são sintéticos ou semissintéticos. Os fabricantes fazem isso porque o produto fica mais barato – mas menos saboroso. Tem gente mexendo no seu queijo.
Tá na tábua
Veja como são feitos, e quais ingredientes levam, alguns dos queijos mais conhecidos – e consumidos – do mundo
O queijo pelo mundo
Tipos e tradições exóticas
Contém larvas vivas
Você acha que já provou de tudo? Experimente o Cazu Marzu, um queijo que contém… larvas! Ele é feito com leite de ovelha, e deixado num ambiente aberto e escuro para atrair moscas – que nele depositam seus ovos. O queijo foi inventado na Sardenha (Itália) e é proibido, mas faz sucesso no mercado negro. Ele deve ser consumido com as larvas vivas e saltitantes – recomenda-se usar óculos para proteger os olhos.
Fama injusta
Na Alemanha, há um prato tradicional chamado handkase mit musik: é um queijo, o handkase, acompanhado de música – no caso, os puns que a maioria das pessoas solta após comê-lo. Mas é injustiça: na verdade, a flatulência é causada pela cebola que acompanha o queijo.
País do catupiry
Ele não é exatamente um queijo, e sim um requeijão (pasta formada pelo aquecimento e coagulação do leite). O Catupiry foi inventado em 1911 na cidade de Lambari, Minas Gerais, pela família de imigrantes italianos Silvestrini. Desenvolvido a partir do requeijão tradicional (que tem consistência mais firme), o cremosíssimo Catupiry hoje é exportado para o Japão e os EUA.
O cheese da questão
Quem faz, e quem come, o queijo do planeta
Mundo: 18 bilhões de kg/ano (2,8 kg por pessoa)
Maior produtor: EUA 4,1 bilhões de kg
Maior variedade: França 700 tipos
Maior exportador: Alemanha 603 milhões de kg
Maior consumidor: Grécia 27,6 kg per capita/ano (no Brasil, são 3 kg)
Para saber mais
Cheese: A Global History
Andrew Dalby, Reaktion Books, 2009.
The Cheese Plate
Max McCalman, Clarkson Potter Books, 2002.
American Farmstead Cheese
Paul Kindstedt, Chelsea Green, 2005.