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Não se deixe levar pelos críticos: as sequels de Matrix têm seu lado bom

No esquenta para o quarto filme, um repórter reassiste à trilogia – e descobre que Reloaded e Revolutions, embora falhos, ousaram ser diferentes. Um alívio na linha de produção que se tornou a Hollywood das franquias.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 19 set 2021, 18h12 - Publicado em 19 set 2021, 18h01

(Atenção: o texto abaixo contém spoilers. Ou melhor: falar do enredo de filmes lançados em 1999 e 2003 não conta realmente como spoiler – mas vai que o caro leitor não assistiu ainda?)

Falar mal das sequels de Matrix é um hábito unânime. É algo que se espera de uma pessoa minimamente disposta a viver em sociedade. Sua família pode ter um tio do pavê, um fã de Sambô, um priminho que pede gole de Yakult, um adolescente que toca Legião Urbana na roda de violão, e todas esses humanos são tolerados anualmente no Natal, em respeito ao melhor do espírito cristão.

Mas assistir Reloaded e gostar? Não. Assistir Revolutions e gostar? Essa talvez seja uma das poucas maneiras de conseguir uma exoneração instantânea numa repartição pública brasileira. Existe nas penitenciárias uma ala onde os jurados de morte se escondem dos demais presos – e dentro dessa ala há uma ala onde ficam os fãs das sequels de Matrix, perseguidos até pelos próprios jurados de morte.

Como eu não me dou bem com críticos de cinema, nunca fui fã de Natal e não sou um concursado ameaçado, vamos nessa. Esclarecendo algumas coisas, antes de mais nada:

De fato, o Matrix original é uma obra de arte. Por um lado, ele não poderia ser mais óbvio ou familiar: seu roteiro segue passo a passo a jornada do herói descrita pelo acadêmico Joseph Campbell. O hacker Neo percorre a mesma trajetória do Odisseu de Homero, de Luke Skywalker, de Harry Potter, de Moana. O enredo de todo personagem insuspeito que sai da zona de conforto, é chamado para uma grande aventura, passa por provações etc.

Por outro lado, há sequências de ação espetaculares e muito criativas, figurinos que se tornaram ícones instantâneos, uma dose cavalar de filosofia, um comentário pesadíssimo (e cada dia mais válido) sobre alienação e nossa submissão à tecnologia e, por fim, referências à cultura pop e não tão pop assim, que vão de Alice a Baudrillard. É o pacote completo. Poucos filmes conseguem ser ao mesmo tempo um blockbuster de tiroteio e um tópico respeitável para um doutorado.

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(Ah é, claro: não se esqueça do príncipe morto que desperta – olha só a inversão de papéis – com o beijo da princesa. Uma pitada de irmãos Grimm soft que só não derrete um desalmado.)

Ou seja: não dá para negar que Matrix seria um monumento ainda mais imponente se tivesse parado em um filme só. Eu adoraria entrevistar as irmãs Wachoswsky. Perguntar se a história foi pensada como uma trilogia desde o início ou se os longas extras surgiram por pressão da Warner para encher os bolsos. A Super talvez tenha a oportunidade de fazer essas perguntas conforme começar o ciclo de divulgação do quarto Matrix, cujo lançamento está programado para dezembro de 2021.

Voltando ao assunto, é claro que as sequels têm seus (muitos) problemas. Em Reloaded, o mais incômodo são as longas cenas sem função alguma.

Explico: no Matrix original, todas as sequências de tiro, porrada e bomba são etapas fundamentais do desenvolvimento do personagem de Neo. O duelo com Morpheus é sua primeira aula sobre a manipulação das leis da física no mundo virtual. Depois, ele vê seu mentor ser sequestrado. Então, se mete em confusão para resgatá-lo. Por fim, luta para voltar para casa. Em cada etapa, o hacker descobre novas habilidades e vê florescer seu amor por Trinity.

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Em Reloaded, por outro lado, há muita pancadaria satisfatória para a parte boxeadora do meu cérebro, mas inútil para o enredo. Por exemplo: após uma conversa produtiva com a Oráculo, Neo se vê cercado repentinamente por centenas de cópias do Agente Smith. Depois de uns cinco minutos de arranca-rabo coreografado à perfeição, com efeitos especiais que hoje parecem toscos mas na época impressionavam, o protagonista escapa porque é incapaz de vencer em tal desvantagem numérica. Não há um motivo convincente para que aquele duelo ocorra naquele momento.

O mesmo vale para a breve luta com o aliado Seraph (que, graças à estética orientalizada, torna-se apenas uma recriação do treino com Morpheus no primeiro filme). Por um lado, o duelo ilustra a índole nobre do guardião da Oráculo; por outro, há maneiras mais eficazes de apresentar um personagem aliado do que passar um belo naco de filme saindo no braço com ele.

E nem falamos em cenas inúteis que só dão sono, mesmo. Como Trinity e Neo transando enquanto uma rave estilão Mad Max rola numa imensa caverna em Zion. Eu sempre vou ao banheiro nessa hora, tamanha vergonha alheia. Cringe.

 

Dito isso, a revelação ao final do filme é espetacular (ainda que infelizmente escape a muitas pessoas porque o diálogo é confuso). O Arquiteto da Matrix explica a Neo que ele é sim o tal Escolhido, mas que isso não faz a menor diferença. Esse Jesus do código binário, o messias que finalmente libertaria a humanidade das máquinas, na verdade estava nos planos das máquinas o tempo todo.

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A inteligência artificial sabia que uma pequena porcentagem dos seres humanos conectados à Matrix acabaria se libertando e iniciando uma rebelião. Sabia porque outros modelos de Matrix foram testados: um mundo perfeito não deu certo; um mundo de sofrimento também não. A simulação em que havia livre-arbítrio foi a que funcionou melhor. Mas, com o poder de escolha, surge o fato inevitável de que alguns humanos escolherão sair da alienação e lutar pela liberdade.

Assim, de tempos em tempos, é preciso dar um reset na Matrix. Matar a maior parte dos humanos que se libertaram e recomeçar o ciclo, mesmo sabendo que um novo lote de Homo sapiens recém-rebelados logo vai começar a se acumular na cidade livre de Zion. O Escolhido é o mediador desse processo, o humano que invariavelmente chega ao Arquiteto apenas para descobrir que é só mais um. Antes de Neo, houve cinco outros escolhidos.

(A história pra valer é mais complicada do que isso: os fãs saberão que na verdade o Escolhido tem uma… escolha: pode optar pela aniquilação completa da humanidade em vez de dar o reset na Matrix e recomeçar a colônia humana em Zion com um pequeno número de Adões e Evas. Mas, para os fins deste texto, o descrito acima vai bastar.)

É uma reviravolta espetacular. Você acaba o primeiro filme apresentado a um messias que vai salvar a humanidade. Ao final do segundo filme, esse messias na verdade é só mais uma peça no tabuleiro de um jogo que já se repetiu cinco vezes. É a tese e a antítese. Temos uma breve ilusão de liberdade, para então descobrir que o buraco da manipulação é mais embaixo.

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O último filme, Revolutions, é bem mais sólido. A longa batalha final da cidade de Zion contra o exército das máquinas não poderia ter uma motivação mais convincente: é a humanidade resistindo à aniquilação. Niobe pilotando uma enorme nave em um duto de manutenção subterrâneo é uma homenagem clara à Millenium Falcon entrando na Estrela da Morte em O Retorno de Jedi.

Neo vai pessoalmente bater um papo com o chefão das máquinas. O messias tem uma carta na manga para negociar uma trégua: a inteligência artificial só conseguirá derrotar Agente Smith, um vírus de computador que se alastra com violência na Matrix, com a ajuda do Escolhido. Após a tese e a antítese, a síntese: o último filme não termina com uma derrota das máquinas, mas com um acordo.

É um jeito bem sacado de amarrar o final, e vem acompanhado de uma alusão clara à crucificação: o sacrifício de Neo pela humanidade envolve ele deitado, de braços abertos, conectado aos robôs – e eles utilizam seu corpo como intermediário para destruir o vírus Smith. Simbologia nunca faltou às irmãs Wachowsky.

A cena mais importante, porém, vem logo antes: Trinity morre ao pousar a nave que ela usa para levar Neo até a cidade das máquinas. No primeiro filme, Trinity ressucita Neo. No segundo, Neo ressucita Trinity. No terceiro, ambos se sacrificam, e não há ninguém para salvá-los. Tese, antítese e síntese também na história de amor.

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Talvez esse não seja objetivamente o melhor jeito de amarrar um final. Mas é um jeito corajoso. As irmãs Wachowsky, confrontadas com o desafio de superar um filme praticamente perfeito, tentaram dar um passo além dele e fazer continuações diferentes, que foram autênticas tanto em seus erros quanto em seus acertos. As sequels de Matrix são realizações de humanos; não de máquinas.

Um alívio diante do que viria uma década depois em Hollywood: franquias como Marvel usando as mesmas fórmulas bem-sucedidas de novo e de novo para não desagradar o público. Assistir ao quinquagésimo filme com os Vingadores – todos com as mesmas piadas, o mesmo ritmo e a mesma mistureba de dezenas de personagens – se tornou uma experiência estranhamente repetitiva e alienante. Um pouco como estar preso na Matrix.

O jeito é torcer para que o quarto filme seja também algo criativo e minimamente bem pensado, ainda que venha com falhas. Triste mesmo, afinal, seria um Matrix feito que nem pão de forma, com um enredo pré-fabricado.

 

 

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