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Judith Butler – Uma vida dedicada a refletir e perturbar

Judith Butler redesenhou a questão de gênero com a Teoria Queer e se tornou uma voz incômoda a provocar polêmicas.

Por Thales de Menezes
Atualizado em 26 out 2020, 09h55 - Publicado em 31 out 2019, 13h06

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SI_FilósofosPop_Butler_cap relação da filósofa americana Judith Butler com o Brasil vai além da repercussão de seus trabalhos como uma grande teórica dos estudos queer. Mesmo sua clara influência nos principais círculos de discussões sobre filosofia política e ética não é sua ligação mais forte com seguidores brasileiros, marcada por um episódio de tensão.

Em novembro de 2017, Butler esteve em São Paulo para lançar o livro Caminhos Divergentes – Judaicidade e Crítica do Sionismo e para participar do seminário “Os Fins da Democracia”, no Sesc Pompeia. Nas semanas que antecederam o evento, uma petição on-line anônima reuniu mais de 300 mil assinaturas pedindo o cancelamento da participação da filósofa no seminário.

O texto da petição dizia: “Judith Butler não é bem-vinda no Brasil! Nossa nação negou a ideologia de gênero no Plano Nacional de Educação e nos Planos Municipais de Educação de quase todos os municípios. Não queremos uma ideologia que mascara um objetivo político marxista. Seus livros querem nos fazer crer que a identidade é variável e fruto da cultura. A ciência e, acima de tudo, a realidade nos mostram o contrário.”

No dia do evento, manifestantes pró e contra sua vinda ao País protagonizaram um embate intenso, com uma boneca representando a filósofa sendo queimada no meio da rua. No seminário, Butler defendeu a democracia como a conquista de uma luta diária. Pediu mais diálogo, compreensão de todos os discursos e o uso de linguagem clara para combater qualquer avanço do autoritarismo.

As manifestações, a favor e contra, apresentaram um número maior de brasileiros interessados na escritora profícua e professora da Universidade da Califórnia, em Berkeley, que, ainda nos anos 1980, instaurou no campo dos estudos de gênero uma nova proposta: identificar uma pessoa como homem e mulher seria algo socialmente construído, fluido, refutando a “consequência automática” do sexo biológico. Sua proposta foi chamada de Teoria Queer.

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O termo queer é uma apropriação de uma palavra que durante anos foi utilizada de modo ofensivo. A reversão para um significado positivo surgiu na defesa de movimentos gays, lésbicos e feministas nos Estados Unidos e sua relação com grupos de discussões acadêmicos. Para Butler, o termo gera debates sobre força, resistência, estabilidade e variáveis na questão de gênero.

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O conceito de variabilidade dentro do campo do gênero é fundamental no pensamento de Butler. Para ela, o gênero não é uma coisa que se é, mas uma coisa que se faz. Ela foca a performatividade, defendendo que a identidade de gênero é uma sequência de atos. “Dizer que o gênero é performativo é um pouco diferente, porque algo ser performativo significa que produz uma série de efeitos. Agimos, andamos e falamos de uma maneira que consolida a impressão de ser homem ou mulher”, afirma.

Judith Butler nasceu em Cleveland, Ohio, de uma família de judeus húngaros e russos, que perdeu parte de seus membros no Holocausto. Ela afirma que seu primeiro “treinamento em filosofia” veio nas aulas de ética judaica que assistiu na escola hebraica. E Butler frequentou essas aulas como punição. O rabino da escola obrigou a estudante, então com 14 anos, a frequentar essa disciplina por ser tagarela demais, perturbando a ordem na escola.

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“Nunca mais parei de perturbar”, brinca a filósofa sobre o episódio. Em palestras, ela recorda algumas perguntas que fazia nessas aulas: “Por que Spinoza foi excomungado da sinagoga? Poderia o idealismo alemão ser responsabilizado pelo nazismo? Como entender a teologia existencial?”

Butler passou um ano na Bennington College antes de se transferir para a Universidade de Yale. Lá ela recebeu diploma de bacharel em artes em 1978 e doutorado em filosofia em 1984. Fez carreira docente nas universidades Wesleyan, George Washington e Johns Hopkins, e ingressou na Universidade da Califórnia em 1993.

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Desde a publicação de Problemas de Gênero, em 1990, a atuação de Butler no movimento feminista tem passado por transformações. Para ela, cada vez mais suas questões feministas se relacionam com maior segurança para as mulheres contra a violência, índices maiores de alfabetização, diminuição da pobreza e mais igualdade. “A vida tem que ser protegida. É precária. Eu chegaria ao ponto de dizer que a vida precária é, de certa forma, um valor judaico para mim”, disse em entrevista.

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Problemas de Gênero foi escrito numa época em a aids apresentava números crescentes nos Estados Unidos, mas ao mesmo tempo em que movimentos de política sexual chegavam às ruas. A bandeira LGBT ainda não estava inserida no mainstream comportamental.

Uma das inovações desse livro impactante foi sugerir que o gênero é constituído por ação e fala. O gênero não é uma essência ou uma natureza da qual o comportamento da pessoa seja seu produto. No entendimento da filósofa, os indivíduos não existem antes ou independentemente dos sexos que “realizam”.

Butler leva ainda mais longe suas considerações questionando a própria diferença entre gênero e sexo. Por anos, o movimento feminista fez uma distinção entre sexo corporal e gênero, aqui representando convenções sociais que determinam as diferenças entre masculinidade e feminilidade. Essas feministas aceitaram a existência de diferenças anatômicas entre homens e mulheres, mas apontaram como a maioria das convenções que determinam os comportamentos de homens e mulheres são, de fato, construções sociais de gênero. Para um feminismo “tradicional” (definição de Butler), sexo é categoria biológica, gênero é categoria histórica.

A filósofa questiona essa distinção, porque os “atos de gênero” teriam consequências que afetariam até a percepção das diferenças sexuais corporais. Para Butler, “o sexo não é um dado corporal sobre o qual a construção do gênero é artificialmente imposta, mas uma norma cultural que governa a materialização dos corpos”.

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Além da questão de gênero, Butler é uma voz indignada. Depois do 11 de Setembro, ela escreveu em protesto às políticas americanas impostas na Guerra do Iraque, no tratamento a palestinos e no estado dos prisioneiros de Guantánamo. Butler rejeitou que a destruição do World Trade Center pudesse justificar essas medidas violentas. “As fronteiras dos EUA foram rompidas, uma vulnerabilidade insuportável foi exposta, um pedágio terrível na vida humana foi causado e foi motivo de medo e luto. Deveríamos perguntar se as experiências de medo e perda devem levar imediatamente à violência e à retaliação militares.

Não seria possível sustentar que os EUA têm maiores problemas de segurança do que alguns dos povos mais contestados e vulneráveis do mundo. O deslocamento do privilégio do primeiro mundo, por mais temporário que seja, oferece a chance de começar a imaginar um mundo em que essa violência seja minimizada, em que uma inevitável interdependência seja reconhecida como base da comunidade política global. O controle final não é e não pode ser um valor absoluto.”

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Ao longo de sua carreira, Butler permaneceu no cenário político, frequentemente se pronunciando contra discriminação, racismo e guerra. Ela participou do Occupy Wall Street, em 2011, em protesto contra a desigualdade econômica e social, a ganância, a corrupção e a indevida influência das empresas no destino de pessoas.

Ela também atuou como presidente da Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas, organização internacional empenhada no combate contra violações dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, pessoas transgêneres e portadoras do vírus HIV, e assumiu uma cadeira no conselho consultivo da Jewish Voice for Peace, uma organização ativista de esquerda dos Estados Unidos que dedica suas ações e seus estudos ao conflito israelense-palestino.

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