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Eu vi “Lost” só agora. E gostei do final.

A jornada do repórter que assistiu à série do zero anos depois do fim – e que agora quer convencer você de que não há nada de errado com o último capítulo.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 23 out 2020, 19h56 - Publicado em 5 dez 2017, 08h48

Você talvez não conheça ninguém assim — essa é uma condição de saúde rara, afirmam alguns médicos —, então eu me sinto na obrigação de me apresentar. Olá, meu nome é Bruno. Eu sou uma pessoa normal que gostou do final de Lost. E vou tentar te convencer a gostar, também.

É muita ousadia da minha parte. Acredite, eu sei o quanto minha opinião é impopular.

Não se preocupe, eu não vou negar nenhum dos problemas. Muitas pontas ficaram soltas. Várias coisas que pareciam ter explicação não tinham. E não, nós nunca vamos saber porque a Sun foi a única que não voltou no tempo quando voltou à ilha no voo da Ajira. (Descobri só depois, graças aos comentários dos leitores, que é porque ela não era uma das candidatas do Jacob. É óbvio, como fui tão ingênuo?)

Lost é um fenômeno meio difícil de explicar, admito. Um avião parte ao meio a 11 quilômetros de altitude, mas uma pá de gente sobrevive à queda. Eles vão parar em uma ilha tropical onde há um monstro de fumaça, ursos polares e estações de pesquisa científica abandonadas. E aí… bem, aí aparece uma bomba atômica. Mas nessa altura do campeonato você já não se surpreende com mais nada – a bomba é o de menos.

Quando eu e minha namorada decidimos, no começo deste ano, abrir o Netflix e dar uma chance à série 13 anos depois de seu lançamento, eu me lembrava vagamente de cada uma dessas cenas. Muito vagamente. Afinal, eu tinha nove anos de idade quando Lost mudou a história da TV. Fiquei chocado com a queda do avião – e morrendo de medo do ruído misterioso da abertura –, mas fiquei mais impressionado ainda com meus pais: nunca tinha visto os dois tão entusiasmados com uma série.

Desde então, acompanhei de longe. Me limitei a espiar a TV e ouvir sem parar as duas frases mais comuns: 1. Lost mudou o mundo do entretenimento e abriu caminho para coisas como a Netflix. 2. O final foi uma aula de suicídio televisivo. Como todo consenso é perigoso, entrei em 2017 disposto a tirar a prova – e sentir o tal último episódio na pele, sem conclusões precipitadas.

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Eu vi “Lost” só agora. E gostei do final.
Eu começando a assistir. ()

Depois de quase um ano, nenhuma maratona (ufa!) e várias dúvidas, pegamos pipoca, lápis e papel e começamos a assistir ao S06E17. Logo de cara notei que a série passou a perna justamente no tipo de fã mais perigoso que existe: o que corre para o fórum de discussão – lembre-se, estamos em 2004 – depois do episódio e repassa tudo.

Para esses caras, Lost era um cubo mágico. Uma versão psicodélica de um romance de Agatha Christie em que o final se encaixaria bem feito uma máquina de Rude Goldberg (agradeço a um thread do Reddit pela analogia útil). Nada disso: no final, Lost era uma história de fantasia com alguns mistérios e elementos filosóficos – o que é perfeitamente aceitável – e não O Caso dos Dez Negrinhos, em que até os eventos mais sobrenaturais ganham explicações pé no chão na voz monótona do juiz Wargrave.

Lost é uma série sobre pessoas, não sobre mistérios. Por isso, não precisa de um Poirot. Ela termina quando seus personagens se resolvem no plano espiritual, não quando as pontas soltas são amarradas no plano prático. Nenhum dos passageiros realmente gostaria de ter pousado em Los Angeles no primeiro capítulo – é esse critério, inclusive, que Jacob usa ao escolhê-los como candidatos para substituí-lo. Eles são trapaceiros, prisioneiros, viciados, azarados crônicos e problemáticos em geral. E se tornam, na ilha pessoas melhores do que eram.

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“Mas e a caverna? E a luz? E a rolha do mal? E o fumacinha?” A ilha, ficamos sabendo, é uma Caixa de Pandora, que contém todos os males do mundo. O monstro de fumaça é um demônio que quer abri-la. Você pode até não gostar de explicações mitológicas, mas não há nada que obrigue o roteirista a afirmar que a fumaça é alguma coisa com explicação racional e tecnológica (nanorrobôs? Jura?) ou que o mal encerrado na caverna de luz é palpável. Às vezes, demônios são só demônios, o mal é só o mal. A Bíblia está aí para provar que a fórmula faz sucesso – e a referência a Esaú e Jacó está aí para provar que Lost pira na Bíblia.

Eu vi “Lost” só agora. E gostei do final.
Eu para os haters. ()

Agora, pense no que você ficou sabendo: Hurley, cheio de problemas de autoconfiança, se torna guardião da ilha. Ben Linus, praticamente um psicopata redimido, finalmente assume o sonhado papel de mão direita do guardião, e pensa um pouco no seu longo currículo de besteiras. Desmond – um Odisseu escocês, que passa por poucas e boas em uma longa jornada para encontrar sua Penélope – sobrevive e pode voltar para ela. Até Jack ganha o direito de ser Deus por alguns minutos antes de morrer (se tem um cara com complexo de Deus, é ele). Mas não antes de resolver seus problemas de paternidade, mesmo que em outra dimensão.  

Não importa a fragmentação narrativa: no final, todos eles se resolveram por dentro. E podem passar pela porta, seguir em frente. A exceção é Linus, que ainda precisa passar um tempo de castigo. O próprio Michael Emerson explica aqui melhor do que eu.   

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Eu vi “Lost” só agora. E gostei do final.
Assista de novo, dê uma chance. ()

Minha moral da história é: se você não viu e tem medo de ver, não se preocupe e veja. Mas assista para curtir a direção incrível e os personagens maravilhosos, e não para apontar erros e inconsistências. Você já faz isso no trabalho o dia todo, Lost é entretenimento.

Todo mundo concorda que, com ou sem final, a série é uma das coisas mais legais e importantes da TV. Vai perder por causa de um episódio, só porque ele é o último? De jeito nenhum: nas boas histórias, a jornada e o jeito de contar são mais importantes que o desfecho.

É só lembrar de Moll Flanders, de Daniel Defoe. Seu título original é um imenso spoiler, que resume todo o conteúdo do livro: As Venturas e Desventuras da famosa Moll Flanders, que Nasceu na Prisão de Newgate, e ao Longo de uma Vida de Contínuas Peripécias, que Durou Três Vintenas de Anos, sem Considerarmos sua Infância, Foi por Doze Anos Prostituta, por Doze Anos Ladra, Casou-se Cinco Vezes (Uma das Quais com o Próprio Irmão), Foi Deportada por Oito Anos para a Virgínia e, enfim, Enriqueceu, Viveu Honestamente e Morreu como Penitente. Está tudo lá. Mesmo assim, você não deixa de ler – e gostar – dele. 

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Assista Lost. É bacana.

 

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