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Democracia direta

O que aconteceria se o nosso presidente fosse escolhido via reality show? Veja aqui, neste conto de Fred Di Giacomo.

Por Fred Di Giacomo
Atualizado em 26 out 2020, 20h16 - Publicado em 5 set 2017, 17h41

Pele branca sobre pele negra, num quarto escuro cheirando a incenso barato. Brisa suave. O vaporizador passou a noite toda ligado, abastecido por haxixe marroquino 100% orgânico. Deus abençoe os neo-abolicionistas que livraram meu povo de passar a vida na prisão por vender ervas naturais para brancos estressados. Som rolando. TV On The Radio seguido de Plaquê de 100. A música do século 21 era bacana, tinha alma. Agora tudo é mimimi e superficialidade. Visto a cueca box, observando a respiração tranquila de Sabine e sua pinta ao lado do nariz. Os alemães têm bons DJs, boas cervejas e bons brechós, mas não sabia que eram tão bons de cama. Sabine, se vacilar me apaixono. Tenho que ficar esperto.

– Cacete, que merda, hoje tem votação!

– Biscoito?

– Te acordei, princesa?

– Biscoitinho, você está fazendo muito barulho, amor. Que grito foi esse? Cadê a Frida?

– Coloquei ela na sala. Você sabe que não gosto da gata na cama na hora do sexo. Sei lá, me sinto observado, duplamente pelado.

– Ah, Biscoito, ela faz parte da nossa familinha. E você é tão bonito pelado… Além do mais, a gente estava só dormindo.

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– Olha, Bine, pra mim, dormir junto, assim de conchinha, é muito mais intimidade do que sexo. Você sabe.

– Pra mim, o certo é biscoito, e não bolacha, he, he, he.

– Ha, ha, ha, tá bom, tá bom.

Sempre que discutíamos por alguma coisa – fosse política, fosse televisão; o que, ultimamente, significava a mesma coisa – Sabine cortava a tensão com a piada vintage do “biscoito ou bolacha” – de onde vinha meu apelido carinhoso. Era uma forma de mostrar que, no fundo, tudo era uma grande questão de opinião e ego. E olha que os cientistas sociais chamavam nossa geração de “geração pós-ego” – juventude que abandonou as redes sociais, os astros da mídia e o amor insano pela vida e pela liberdade para poder ter um pouco de tranquilidade e segurança. “Viver eternamente é um tédio”, pulsavam os grafites espalhados pelos muros cinza da metrópole. Eutanásia moral era a nova coqueluche hipster: “Viva depressa, morra jovem e deixe um cadáver sexy.”

– Sabine?

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– Pois não, Biscoitinho?

– Você deixou seus sapatos dourados jogados pela casa de novo?

– Deixei, e daí? Você tem que entender que minha bagunça é uma forma de expressão, é arte.

– Até sua calcinha suja do lado do box?

– Sim, arte e resistência, my dear: nada é mais revolucionário do que um homem arrumando a casa para sua mulher. Melhor que isso, só meu café na cama agora.

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Café da manhã era nossa paixão primordial. Sabine não comia animais, mas amava sua tostada de abacate com café preto descafeinado, seguida de panquecas de banana com maple syrup. Eu, não, como um grande humanista, meu foco eram as pessoas; comeria até cachorro se estivesse na Coreia. Minha religião era o bacon. Realmente, café da manhã era nossa paixão primordial. Café da manhã e as decisões que aconteceriam em breve. Hoje era dia de votação. Nós que estávamos na linha de frente não poderíamos nos apaixonar. As pessoas andavam tensas e o mundo, dividido. Eu e Sabine lutávamos quase do mesmo lado. Mas ela apoiava Revolution Jane, uma esquerdista clássica, e eu preferia Nayra AC0T1R3N3, que assim como eu tinha vindo dos subúrbios, que assim como eu era negra, que assim como eu queria resgatar a democracia.

Haviam transformado nossas eleições num show pirotécnico movido por anunciantes e decidido por fanáticos manipulados que mal ouviam as propostas de seus heróis; preocupavam-se mais com a forma do que com o conteúdo. Nayra tinha forma: frohawk erguido e orgulhoso na cabeça, olhos grandes e expressivos e um sorriso imenso que transmitia sinceridade. Jane não tinha o mesmo apelo visual. Acreditava que a vaidade feminina era estimulada pelo sistema masculinista em que vivíamos. A afirmação, obviamente, virava chacota nos discursos ágeis e sarcásticos de seu oponente Odair Olivetto. Odair era o motivo pelo qual eu e Sabine estávamos juntos hoje. Seus vídeos virais, seus seguidores fanáticos, sua capacidade de mobilizar milhões e de destruir os mais fracos eram um risco para ambos.

Baque surdo. A explosão deve ter acontecido a uns 200 metros.

– Biscoito, estou me depilando aqui no chuveiro, viu?

– Beleza, gatinha, mas você sabe que hoje é “o” dia, né?

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– Todo dia é dia de mudança, Biscoitinho.

– Sabine, porra, você não ouviu explosão? Você não está com um pouco de medo?

– Medo? Por quê? Aumenta o volume da televisão, vai!

Medo, Sabine. Medo de se apaixonar. Medo de morrer. Medo de terminar como todos do velho bairro. Existe escapatória para a mediocridade?

Televisor ligado, Frida pula no meu colo. Odeio essa gata. Amo sua dona. Cheiro de incenso é bom, me lembra infância. Casa dos meus pais no interior, vila suburbana no final do século 21. Trabalhadores de bicicleta pedalando de chinelo para o trabalho. Trabalhadoras de bicicleta pedalando com filhos na garupa, de saias longas e compridas tranças ao estilo das crentes. Seguidores do pastor Jó, que também vai estar na televisão hoje. Pastor Jó, o homem de fé. Pastor Jó, aquele que aguenta todas provações sem trair Deus. Trabalhadores pedalando bicicletas de volta para casa ao anoitecer. Crepúsculo alaranjado no céu limpo do Noroeste. Boias-frias, faxineiras, serventes de pedreiros e contínuos. Só eu com pais com curso superior, observando o ir e vir das canelas pedalantes, sem precisar correr atrás de trampo. Existe ex-pobre? Só eu, agora, segurando uma gata feminista em um apartamento confortável esperando a morte chegar.

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– Biscoito, vou entrar na banheira? Quer vir?

Banheira? Banheira?! Caraca, a revolução nunca vai nascer de uma banheira. Nunca vai nascer de uma rave. Nunca vai nascer de uma universidade. Sabine, por que parece que uma ponte separa meu coração do coração da mulher que eu amo?

– Sabine, eu acho que…

Explosões intensas.

Dor de cabeça, poeira, cheiro de sangue. Pólvora e pele queimada. Onde foi esse estouro? 50 metros? 100 metros? Não, isso foi aqui do lado. Cheiro de sangue no lugar do incenso. Será que foi a Frida? Um miado. Porra, estou tonto…. Meu Deus, o banheiro. O banheiro! Sabine, você está bem? Sabine?? Ich liebe dich pra caralho, porra.

Mais estouros. Parecem bombinhas, mas se fossem traques fariam eco. As rajadas são secas. Tiros. A voz da televisão segue febril amplificada pelo miado choroso de Frida. Na televisão, Brando Trevisan, adolescente calvo de 50 anos, calça seus tênis laranja e narra os acontecimentos importantes que eu e Sabine esperávamos ansiosos e que agora arrebentaram nas nossas cabeças:

– Os tiros e a explosão que marcaram o suicídio de Jane foram uma visível retaliação à performance explosiva do Pastor Jó, defensor de uma teocracia neoludista regida pelos Dez Mandamentos. Há alguns minutos, trancado em sua igreja e cercado por fiéis que fizeram questão de participar do programa, o pastor foi duro nas críticas a quem chamou de “abortistas comunistas opressoras”. Após se flagelar brutalmente, ele detonou os explosivos que levava na cintura, enquanto ouvia em fones de ouvido – repetidamente – um audiobook do Velho Testamento. Pastor Jó levou consigo sete filhos, três esposas, uma delas menor de idade, e 77 fiéis. O ato foi visto como uma clara provocação à finalista Jane, conhecida por seus apoiadores como “Revolution”. Jane não deixou barato. Ela acaba de responder forte, responder com estilo, atacando a zona oeste boêmia – área nobre da nossa cidade cinematográfica. Antes de cometer seu eletrizante ato performático, a filha de industriais gritou: “Vamos acordar, pequena burguesia!”.

Realidade-375-2
(Fido Nesti/Superinteressante)

Burguesia é o cacete, pô! Saí da quebrada para aguentar desaforo de patricinha… Acho que quebrei umas três costelas nessa explosão, dói para respirar. “Viver eternamente é um tédio”, dizia o panfleto que nos convocava para as finais. Arte ou comercial? Grafite ou anúncio? Me arrasto até o banheiro em chamas, mas não sei se quero entrar. A televisão segue ladrando.

– A explosão levou com Jane 1.984 moradores voluntários da Cidade Cenário que não vão mais acordar, mas terão seus nomes devidamente creditados no final do nosso programa. Apesar de ter superado o pastor Jó e dobrado nossa audiência, Revolution segue sendo a candidata menos votada, entre os quatro que estavam neste paredão final. Os dois finalistas restantes são o astrólogo e pensador empírico Odair Olivetto, que defende a volta da nossa sociedade ao glorioso século 19, e a independente Nayra AC0T1R3N3, cuja proposta de governo segue um tanto misteriosa. Pelo que sabemos até agora, ambos são saudosistas: Odair, dos gloriosos anos 1800, e Nayra, dos anos 2000. Hoje, quatro gladiadores modernos vieram matar e morrer por seus ideais, cercados por uma plateia de voluntários espalhados pela Cidade Cenário. Dos 4 mártires, sobreviverá uma ideia, um ideal que governará nossa livre república pelo próximo ano. Lembremos que quem manda aqui é você, querido telespectador. Você é o patrão! Que ideia deve sobreviver ao sacrifício da carne? Em breve assistiremos às kamikazes performances finais de Odair e Nayra. Quantos inocentes perecerão com eles em mais uma eletrizante série de atentados artísticos? Não saia daí! Daqui a pouco vamos dar mais uma espiadinha no que esses dois guerreiros estão tramando. Mas antes: nossos comerciais.

Eu já não tinha esperanças no sistema, mas segui lutando. Era o que deveria fazer. Me voluntariei para participar do show como plateia, mas não esperava me apaixonar. Sabia dos riscos de fazer parte do espetáculo, dos riscos de ser apenas um palhaço triste num circo vazio. Talvez eu quisesse me sentir parte da mudança. Talvez só quisesse poder olhar a Nayra, minha candidata, nos olhos e urrar com as pálpebras “estamos juntos, você me representa”.

Desisti de ir até o banheiro e voltei para a sala em frangalhos. Sorri quando vi na TV a jovem afropunk de 18 anos apontar sua escopeta cano cerrado na cara do jornalista milionário Brando Trevisan e dizer que aquela loucura tinha que acabar. “Nenhuma vida a menos. Chega de nos exterminar. Nossas almas não vão queimar para que você siga tendo audiência.” Essa era sua proposta secreta: acabar com o sistema pela raiz. Não podíamos mais ser governados por um insano reality show. No século passado, diziam que a revolução não seria televisionada, mas aqui estamos nós assistindo a um astro nacional implorar por sua vida. Os votos de Nayra disparam em tempo real, enquanto ela engatilha a arma e a aponta ora para a careca de Brando, ora para as câmeras, que tremem. Subitamente a tela fica escura.

Outra explosão.

Vencemos? Tiros ecoam. Visão embaçada, e calor infernal se aproximando. Escuro nos olhos e nos olhos das telas. Vencemos? Uma olhada pela janela revela as dezenas de televisores, telões e celulares se acendendo em uníssono como um monstro enorme com seus milhares de olhos que tudo veem. Brando Trevisan aparece sorrindo.

– Bem, amigos, a final segue eletrizante. Voltamos já já, depois de uma palavrinha dos nossos anunciantes, que avisam: “Viver eternamente é um tédio”. Não saia da poltrona – a não ser que ela tenha sido explodida.

 

Fred Di Giacomo é autor dos livros Canções para Ninar Adultos e Guia Poético e Prático para Sobreviver ao Século XXI (Ed. Patuá). Já escreveu roteiros para a Rede Globo, letras para a banda Bedibê e foi editor do site da SUPER – onde desenvolveu o game Science Kombat.

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