Como o nacionalismo da 1ª Guerra fez Tolkien resgatar a mitologia europeia
Para o autor de "O Hobbit", a violência do século 20 era sintoma de um mundo que havia abandonado a moral dos mitos em prol da veneração da modernidade.
Tolkien foi original ao tentar reinventar a mitologia europeia, um projeto colossal que ninguém havia tentado (ou achado razões para tentar) realizar antes dele. Mas Tolkien não surgiu do nada. O trauma das Grandes Guerras talvez seja o melhor jeito de explicar o renascimento do interesse pelas mitologias medievais que tomaria o planeta de assalto com o seu trabalho.
É preciso recuar um pouco mais no tempo para entender o porquê de tudo isso. No século 19, a Idade Média estava na moda entre os intelectuais europeus, que a usavam para tentar descobrir a suposta “essência” de seus países e de sua história. Poetas ingleses reinventaram o rei Arthur, compositores de ópera na Alemanha resolveram se inspirar nas sagas da Escandinávia viking, escritores portugueses só queriam saber de cruzados matando mouros, e por aí vai.
Não por acaso, essa paixonite medieval coincidiu tanto com movimentos nacionalistas quanto com a expansão colonial europeia na África e na Ásia. É claro que, no longo prazo, isso de todo mundo se achar o máximo acabaria dando em caca — e deu, levando à carnificina da Primeira Guerra Mundial, na qual muito moleque com a cabeça cheia de ideias sobre “cavalheirismo” e “glória” bateu as botas. A natural reação da maioria dos escritores e artistas que viveram essa época foi considerar que esses sonhos românticos medievais tinham sido perniciosos, ajudando a levar a Europa para o abismo. Em outras palavras, chega de rei Arthur e de Thor.
Só que uma minoria de intelectuais — e os mais influentes foram, disparado, Tolkien e seu amigo C.S. Lewis (o criador das Crônicas de Nárnia) — chegou justamente à conclusão oposta. O século 20 estava virando um pesadelo, segundo eles, não por mitologia demais, mas por mitologia de menos. Sim, a guerra era um troço horrendo, e devia ser evitada a todo custo, mas só tinha virado um massacre industrializado sem precedentes porque muita gente não acreditava mais nos padrões eternos de certo e errado que podiam ser encontrados, por exemplo, no cerne das antigas mitologias. Era preciso recontá-las antes que fosse tarde.
Partindo de uma matéria-prima confusa e desorganizada — na mitologia escandinava, por exemplo, a diferença entre elfos e anões não é muito clara —, Tolkien fez questão de criar um universo consistente, sistematizado e lógico. Outro ponto importante é a maneira como ele decidiu “limpar” sua matéria-prima — nas palavras do próprio Tolkien, “purificando-a de seu lado grosseiro”. Embora seja possível reconhecer a inspiração das figuras de Odin e Thor nos “deuses” do universo do autor, os chamados Valar, essas figuras divinas, na verdade, estão mais para anjos um pouco mais poderosos. Em Tolkien, só existe um único Deus verdadeiro. Não por acaso, o autor era um fervoroso (e conservador) católico apostólico romano.
O Hobbit, primeiro livro de fantasia de Tolkien, saiu em 1937. Fez sucesso, mas era destinado ao público infanto-juvenil. O Senhor dos Anéis foi escrito durante a Segunda Guerra Mundial, e acabou publicado só em 1954. Só virou um fenômeno de público em meados dos anos 60, graças ao lançamento de uma edição pirata nos EUA. O timing não poderia ter sido melhor, porque o livro acabou sendo “adotado” pelos hippies e por muitos outros membros da juventude que, assim como Tolkien, achavam que o mundo tinha entrado numa espiral de destruição no século 20. Nesse ponto, de fato, o professor antiquado de Oxford e muitos fãs dos Beatles tinham algo em comum: a visão negativa, contestadora, a respeito do mundo moderno.
As semelhanças paravam por aí. Ao ver as referências (relativamente raras, na verdade) à magia nos livros, a rapaziada de 1968 logo pensava em tradições místicas pagãs ou orientais, que certamente levariam Tolkien a fazer o sinal-da-cruz e sair correndo; liam sobre a célebre erva de cachimbo hobbit e logo pensavam em maconha (embora Tolkien tivesse usado até o nome científico do tabaco, Nicotiana, para deixar claro que o troço era simples fumo mesmo).
Pouco importava: o gênio já tinha saído da garrafa. Junto com as bandas de rock e o sinal de paz e amor, o gênero da fantasia medieval virou parte inseparável do “pacote” dos anos 60 (tanto que até os Beatles pensaram em produzir e estrelar sua própria versão cinematográfica de O Senhor dos Anéis).
Para atender a essa demanda, imitações bastante deslavadas da obra tolkieniana começaram a ser publicadas, vendendo feito pãozinho quente (um dos principais exemplos é A Espada de Shannara, do americano Terry Brooks, lançada em 1977). E um novo tipo de jogo, baseado na interpretação de personagens, fez da fantasia medieval seu principal filão. Eram os RPGs (do inglês role playing game, “jogo de interpretar papel”), que têm como um de seus primeiros e mais famosos exemplos o célebre Dungeons and Dragons (“calabouços e dragões”), lançado originalmente em 1974.
Em 1976, a fantasia chegou aos computadores com Colossal Cave Adventure, dando origem ao RPG em videogame. E o gênero continua a gerar fenômenos da cultura pop, como World of Warcraft e The Elder Scrolls: Skyrim.
Colocando nesses termos, pode ser que você fique com a impressão de que, após os anos de ouro de Tolkien e Lewis, as recriações da mitologia medieval acabaram lentamente virando uma mistura de mercantilismo deslavado e escapismo barato. Na verdade, tudo indica que não, ao menos não totalmente — e um dos melhores contra-exemplos recentes é justamente As Crônicas de Gelo e Fogo, ou Game of Thrones, como decidiram batizar a versão televisiva do universo do romancista George R.R. Martin.
Sim, a série é uma máquina de fazer dinheiro, e o mundo de Martin é muito mais cínico que o de Tolkien. Mas o autor continua fazendo o que o mestre fez tão bem na metade do século 20: usar elementos mitológicos para refletir sobre a natureza do poder, do certo e do errado. E isso nunca deixará de ser relevante.