Como David Bowie acidentalmente inventou um ritmo novo na Jamaica
Em 1985, uma faixa obscura de Ziggy Stardust foi parar em um teclado como preset. O resto é história.
Os anos 80 foram uma fase bem peculiar para David Bowie: após tomar um calote de seu empresário, o cantor inglês resolveu fazer um álbum para ficar rico. Assim nasceu Let’s Dance (1983), seu maior trunfo comercial – logo seguido de dois flops criativos, Tonight (1984) e Never Let Me Down (1987). Foi também a época do histórico show Live Aid (1985) e do filme Labirinto (1986), além de, provavelmente, ser a última década de Bowie com sua grande parceira criativa, a cocaína.
Longe da terra da rainha, porém, havia algo mais no ar. Na Jamaica, no começo daquela década, o gênero principal de reggae era o dancehall, que usava colagens e samples para produzir batidas novas, as quais recebiam o nome de “riddims”. Essa ainda era uma época em que as gravadoras não mandavam seus advogados para cima de qualquer infração de direito autoral, ou mesmo se importavam muito com isso (essa revolução litigiosa só aconteceria na virada para os anos 90, graças ao hip-hop nos EUA). Portanto, os “riddims” eram a festa da uva no mundo do reggae: com uma música, você criava outras quinze.
Os primeiros riddims eram baseados em faixas de reggae mais antigas. Porém, nos anos 80, tudo mudou quando o músico jamaicano Wayne Smith e seu produtor Noel Davey comparam um teclado japonês Casio MT-40. (Na verdade, Davey queria um Yamaha DX7, superior, mas a falta de dinheiro fez com que ele ficasse com o Casio mesmo). Esse modelo, lançado em 1981, tinha alguns presets – sons pré-gravados que podiam ser acionados pelos botões – e, entre eles, estava um que se chamava apenas “rock”.
Para ouvidos insuspeitos, era uma linha de baixo animadinha. Para Smith e Davey, era ouro.
Os dois usaram o preset como riddim e fizeram uma das músicas mais importantes da década, “Under Me Sleng Teng”, lançada em 1985. E nada mais seria o mesmo: começava ali a era do reggae digital, que bebia de fontes internacionais para os riddims e usava sintetizadores e computadores na produção.
“Eu levei aquele riddim para outros estúdios e a primeira impressão de todos era que era uma faixa muito leve”, disse Davey numa entrevista em 2016. “Naqueles dias, as pessoas ainda estavam fazendo o dancehall pesado com bateria e baixo. Até mesmo a Jammy’s [gravadora] tinha suas dúvidas. Mas eu e Smith dissemos: ‘vocês não têm nada a perder, lancem’. E aí, surpresa, dominou o mundo. Você tem que tentar as coisas às vezes”.
A dupla lançou tendência: o riddim se espalhou e dezenas de outros artistas jamaicanos passaram a criar novas músicas em cima dele – especula-se que, hoje, existam mais de 400 músicas criadas a partir de “Under Me Sleng Teng”. O reggae se transformava e ganhava uma cara mais eletrônica.
E o que isso tem a ver com David Bowie? Bem, para essa resposta, temos que viajar da Jamaica para o Japão, em 1986. A funcionária da Casio, Hiroku Okuda, abriu uma edição da revista Music Magazine e se deparou com uma reportagem com o título “A Inundação Sleng Teng”, que explicava a peculiar história do fenômeno.
Okuda era uma jovem musicista japonesa que, por interesses pessoais, havia se especializado em reggae – o ritmo jamaicano tinha sido até mesmo o tema da sua dissertação. No final dos anos 70, ela havia entrado para a Casio para trabalhar na divisão de teclados, com a missão específica de criar presets para o MT-40. Foi ela que inseriu no aparelho o arranjo que eventualmente se tornaria um sucesso no mundo do reggae.
“Naqueles tempos, minha cabeça era cheia de reggae, então acho que, tentando criar um preset pra rock, naturalmente acabei inventando algo que funcionava pra reggae também”, disse ela em uma entrevista em 2022.
Mas de onde veio aquele sample? Por muitos anos, especulou-se que Okuda havia usado um trecho de “Something Else” de Eddie Cochran, ou de “Anarchy In The UK”, dos Sex Pistols. Mas, em 2015, ela revelou ao Engadget que a inspiração havia sido uma música de rock dos anos 70, sem citar qual. “Você imediatamente perceberia ao ouvir a música”, declarou.
E a internet logo achou seu Graal: a música “Hang On To Yourself”, terceira no lado B de “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”, o antológico álbum de 1972 que cimentou Bowie como ícone do rock. (Outra grande parceria com a cocaína, aliás).
Tempos depois, naquela entrevista de 2022, Okuda mudou sua versão: “Eu realmente costumava ouvir muito rock britânico, então tenho certeza que deve haver músicas que me influenciaram. Mas o resultado final foi algo que criei sozinha. Não foi baseada em nenhuma outra faixa”, disse ela.
Só que não tem como negar: “Hang On To Yourself” é idêntica ao sample do teclado que acabou virando o riddim de “Under Me Sleng Teng”. E foi assim que Bowie, que estava do outro lado do Atlântico tentando pagar os boletos e largar as drogas, acabou dando origem a uma revolução no mundo do reggae. E que perdura até hoje, com artistas como Popcaan, Alkaline e Spice sendo representantes do dancehall moderno. Além do uso do sample original em jingles, trilhas sonoras e remixes (procure aí no YouTube: Lorde – Royals Dancehall Remix).
Se você quiser descer mais fundo no buraco do coelho, o blog Pushing Ahead of The Dame, uma das maiores autoridades na documentação da história de Bowie, tem suas próprias especulações sobre a originalidade do roqueiro na faixa. “O riff principal de Hang On To Yourself é dito ser plágio – parece estar copiando ‘Fire Brigade’, do The Move, que, por sua vez, havia copiado ‘Something Else’ do Eddie Cochran”, diz o texto sobre a música. Então talvez o crédito seja mesmo de Cochran, como tanta gente especulou.
Até que ele levante do caixão e negue, porém, Bowie segue como autor da música.