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1970 – Quando o sonho acabou

O lançamento de Let It Be marcou o ano da separação da banda – um final engatilhado por conflitos de interesse e um bode geral entre os quatro.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 26 out 2020, 09h55 - Publicado em 20 dez 2019, 17h18
(Reprodução/Divulgação)


Era para ser um símbolo da volta dos Beatles às suas raízes. Um retorno a um rock menos grandiloquente: sem a megalomania de um álbum duplo nem a superprodução da fase psicodélica. E que melhor regresso às origens do que matar a saudade dos shows ao vivo? Eles se empolgaram com a ideia de uma apresentação, cogitaram tocar dentro de um museu e numa casa de show underground. Até aí, maravilha. Mas, para extrair o máximo desse acontecimento, McCartney idealizou um documentário que registrasse o grupo compondo canções e ensaiando para o tal show. Era o “Projeto Get Back”. Então os quatro se instalaram num grande galpão de cinema com a equipe do diretor Michael Lindsay-Hogg – que filmara o especial para TV The Rolling Stones Rock’n’Roll Circus, além de clipes dos próprios Beatles. Nesse ambiente, as câmeras registrariam a evolução de cada música, dando aos fãs a oportunidade de assistir aos métodos de composição e ensaio da banda. Parecia um plano infalível. Mas falhou. Miseravelmente.

Aquele espaço amplo era o oposto do aconchego do estúdio de gravação, e os músicos não se sentiam à vontade diante das câmeras. “Eles estavam nos filmando tendo uma briga”, recordou Harrison, décadas depois. “Qual era o sentido daquilo?”. George foi quem mais se sentiu desconfortável. Além da equipe de filmagem, lamentava a onipresença de Yoko Ono e também a postura de chefão assumida por Paul. Um dia perdeu a paciência e abandonou o grupo. “Legal, então vamos chamar o Eric Clapton”, respondeu John, agressivamente. A verdade é que as canções não evoluíam, a tensão só aumentava, e a partida de George foi o ponto final naquele experimento malfadado.

“To where you once belonged.” (Express/Superinteressante)

De volta ao ambiente que conheciam bem, o estúdio de gravação, a banda concluiu um dos melhores resultados daquele projeto. Escrita por Paul, “Get Back” era uma resposta irônica às declarações de um político da direita britânica, Enoch Powel, que atacava imigrantes indianos e paquistaneses. O refrão da música parodiava esse tipo de discurso: “voltem para o lugar ao qual vocês pertencem”. O problema é que parte da opinião pública não era boa de interpretação de texto. Entendeu de forma literal e chamou os Beatles de racistas. McCartney se inconformou. Não poderia haver banda menos racista que a deles. Afinal, seus super-heróis eram negros (Chuck Berry, Smokey Robinson, Little Richard…). E a postura dos quatro confirmava a teoria. Em 1964, durante uma turnê americana, os Beatles se recusaram a tocar para uma audiência segregada na Flórida. Ficaram tão escandalizados com o racismo no sul dos EUA que até mandaram colocar em contrato: só se apresentariam se os negros pudessem se sentar na plateia onde bem entendessem.


Ouvir Paul e John cantando juntos, trocando acordes em violões – enquanto George faz a linha de baixo na sua Fender Telecaster –, dá a impressão de que a música é sobre a velha amizade dos dois. Mas não. McCartney escreveu “Two of Us” para a fotógrafa Linda Eastman, com quem se casara em março de 1969. A composição é sobre os frequentes passeios dos dois – Linda estimulava Paul a sair de carro por lugares desconhecidos, até que se perdessem.

“On our way back home.” (C. Maher/Superinteressante)


A versão em Let It Be é de um show ao vivo. Foi gravada durante a última apresentação da história dos Beatles: o lendário show no topo do prédio da Apple. A letra de John mistura declarações de amor a Yoko Ono – “Tudo o que eu quero é você. Tudo tem de ser exatamente do jeito que você quiser” – com versos nonsense e uma alfinetada no amigo Mick Jagger, cuja banda debutou mimetizando o que os Beatles faziam: “Você pode imitar todo mundo que você conhece”.

Quando a canção foi gravada, Lennon já tinha se desligado do grupo – apesar de Paul ter sido o primeiro a anunciar sua própria saída, o que enfureceu os outros. A canção de Harrison – uma crítica ao excesso de ego – pode ser lida como uma reflexão budista ou algo mais direto: um desabafo contra os parceiros de banda.

São só 50 segundos reproduzidos no álbum. Mas esse improviso dos Beatles, cantado por John, é só uma parte minúscula de uma sessão de 12 minutos do grupo tocando sem roteiro. Por isso, junto com “Flying”, de Magical Mystery Tour, é uma exceção na discografia da banda: os quatro são creditados como autores.

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As palavras indianas que se repetem junto ao refrão e ao final da música, “Jai Guru Deva”, é uma saudação: “viva para sempre, guru divino”. O verso termina com o “om”, que é a vibração do universo, segundo a meditação transcendental, que Lennon aprendeu com Maharishi Yogi. A letra explica com imagens poéticas o processo criativo do Beatle: “as palavras estão fluindo como uma chuva sem fim num copo de papel”, “pensamentos vagueiam como um vento incansável dentro de uma caixa de correio”. Nos backing vocals, uma brasileira: Lizzie Bravo, fã radical da banda.

“Jay Guru Deva.” (Cummings Archives/Superinteressante)

Entrelaça duas canções, mas vai além de “A Day in the Life”: há um trecho em que as duas são cantadas juntas. A de McCartney fala sobre a paixão por Linda – “um sentimento que não consigo esconder”. A de Lennon é pessimista: “todo mundo teve um ano difícil”. Mas o período dava motivo para ele – um divórcio, uma prisão por drogas, um aborto de Yoko.

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Nada de músico indiano ou letra transcendental. Esta faixa de George é uma canção de amor, deliciosamente pop, dedicada à esposa Pattie. Nem os outros Beatles parecem de má vontade com Harrison – o que vira e mexe acontecia. Paul faz uma base animada no piano, enquanto John capricha na guitarra slide, agregando um toque de Havaí e a esse blues acelerado.

No último disco dos Beatles, ressurge uma das primeiras parcerias Lennon-McCartney, do fim dos anos 1950. Sua primeira gravação é de 1960, feita no banheiro da família de Paul, com um gravador caseiro. Mas a música é de John. Uma tentativa de emular os skiffles americanos que tinham viagens de trem como inspiração. (Skiffle era um tipo de música folk que contava com instrumentos improvisados – e baratos –, como tábua de lavar roupa no lugar da percussão. Os Quarrymen, a banda de Lennon que o uniu a McCartney, era um conjunto de skiffle.) “One After 909” foi gravada ao vivo no show do topo do prédio – uma das que mantiveram o espírito original do “Projeto Get Back”.

“Move over once. Move over twice.” (K & K Ulf Kruger OHG/Getty Images)

Esta balada de Paul é emblemática de como estavam as relações entre os quatro na época da separação. Em janeiro de 1969, a música foi gravada com produção de George Martin. Acabou encostada como todo o material da época para que o grupo se dedicasse ao seu último trabalho como banda: Abbey Road. Mais de um ano depois, porém, quando os Beatles já estavam se dedicando a projetos solo, Lennon chamou Phil Spector para fazer pós-produção naquelas canções engavetadas. E aí esse produtor encheu “The Long and Winding Road” com um arranjo orquestral piegas. Sem ninguém ter consultado o autor da obra. McCartney ficou uma fera. E a frustração só teve conserto mais de 30 anos depois, com o lançamento de Let It Be… Naked – uma versão remixada do álbum, despida das orquestrações bregas.

Mais uma resgatada das origens do grupo. Essa canção folclórica de Liverpool, datada do século 19, sobre uma prostituta vigarista que rouba seus clientes, era tocada de farra pelos Beatles em momentos mais descontraídos dos primeiros shows – ou como aquecimento no palco. Como a ideia do “Projeto Get Back” era captar a espontaneidade do grupo, fez sentido incluir a brincadeira improvisada no conjunto da obra. Até porque só ocupa 40 segundos do disco.


Esta é a canção mais recente entre os singles da coletânea Past Masters. Seu maior mérito foi ter sido escolhida para lado B do compacto que lançou “Let It Be”. Lennon já tinha se inspirado em notícias de jornal e em pôster de circo. Aqui, a ideia veio da capa de uma lista telefônica: “Você sabe o nome? Procure o número”.

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Embora já usasse a droga desde meados de 1968, o vício de Lennon em heroína só chegou a seu período mais extremo nas sessões do “Projeto Get Back”. E o efeito prático dessa doença foi que, na feitura do álbum Let It Be, John se portava como uma sombra – sua criatividade estava desligada. Repare: não há nenhuma grande canção (nova) de Lennon no disco. “Across the Universe”, seu grande momento, tinha sido gravada um ano antes. “One After 909” era o resgate de uma música feita nos anos 1950. E todo o resto da sua contribuição foi de canções mal-acabadas e algumas vinhetas… A exceção mais vigorosa foi a parte “Everybody Had a Hard Year”, dentro da música “I’ve Got a Feeling”… de Paul.

Esse estado zumbi do antigo líder jogava toda a responsabilidade nos ombros de McCartney. Ele já tinha sido o mentor de Sgt. Pepper’s, idealizou Magical Mystery Tour, foi o único engajado para que o “Projeto Get Back” vingasse… Até na lendária apresentação no topo do prédio, Paul só faltou arrastar os outros três para o palco improvisado. O desgaste de ser sempre o homem do “vamos lá, pessoal” – como um chefe de quem as pessoas falam mal pelas costas – somou-se a novas pressões. Desde que Epstein morreu, os Beatles tiveram de lidar com contadores e advogados. Relações marcadas por conflitos de interesse, que foram acumulando uma montanha de ressentimento entre os quatro. Até que, à beira de um colapso nervoso, Paul uma noite sonhou com a mãe, Mary – que morrera de câncer quando ele tinha 14 anos. Nesse sonho, ela acalmava o filho: “não se preocupe, tudo vai dar certo… deixe estar”. Esse devaneio antidepressivo foi a inspiração para que McCartney escrevesse a melhor de todas as letras de autoajuda – e com uma melodia inesquecível ao piano.

(Mirrorpix/Getty Images)

Como sucede a muitos desesperados, Paul se aproxima da religião em “Let It Be”, com expressões que caberiam na boca de um pastor: “e quando a noite está cheia de nuvens, há ainda uma luz que brilha sobre mim”. Sua mãe parece assumir a figura de uma santa, especialmente Nossa Senhora, coincidindo até no nome, Maria: “na minha hora de solidão, ela aparece de pé bem diante de mim, dizendo palavras sábias”. O nome dessa experiência mística, entre os religiosos, é epifania. Adotando aquelas sílabas tranquilizantes como um mantra, Paul McCartney escreveu um dos sucessos mais grandiosos de sua carreira – ao mesmo tempo em que abria os olhos para além da ilusão juvenil da amizade eterna. A mensagem embutida em “deixe estar” talvez tenha preparado o mais agregador dos Beatles para a realidade que ele não parecia disposto a aceitar: a maior banda da história do rock já pertencia ao passado – a um ontem no qual todos os problemas pareciam distantes.

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