Quebra-cabeça: Quebra-Nervos
O passatempo de juntar pedaços de imagens até formar uma cena completa chega à loucura nos diabólicos jogos criados por um ex-projetista de computadores.
No curso da revolução que derrubou o xá do Irã em 1979, seguidores do líder islâmico aiatolá Khomeini invadiram a embaixada dos Estados Unidos em Teerã, em protesto contra a ida do deposto Reza Pahlevi a Nova York. Além de fazer uma centena de reféns entre os funcionários diplomáticos americanos, os militantes mergulharam num trabalho capaz de quebrar a paciência do mais fiel xiita: juntar, uma a uma, as finas tiras de papel a que haviam sido reduzidos centenas de documentos da embaixada, fatiados pouco antes nos shreders, máquinas de destruir papel. O tormento a que se submeteram os iranianos para achar provas que incriminassem os Estados Unidos ficou famoso — mas não se iguala àquele que milhares de americanos vêm sofrendo também voluntariamente, desde 1974, quando um pequeno anúncio na revista New Yorker informava que um certo Steve Richardson, da pacata cidade de Nowich, Estado de Vermont, começara a fabricar requintados instrumentos de tortura. Richardson, um ex-projetista de computadores, de 51 anos, é um homem que os americanos amam odiar, pela exasperação e angústia que ele lhes inflige com seus perversos quebra-cabeças em madeira, arte na qual é um dos maiores mestres mundiais. Depois de enfrentar crueldades típicas, como peças extras que não se encaixam em lugar algum, falsos contornos, espaços vazios entre os encaixes e muitas outras, uma furiosa cliente disparou-lhe um telex sintetizando o sentimento que as pessoas em geral experimentam ao tentar montar um de seus puzzles: “Aaaaaaargh”. Não é à toa que os jogos vêm acompanhados de um brinde irônico e apropriado—um vidro de aspirina.
Dono da Stave Puzzles, empresa cujo rol de compradores inclui nomes cintilantes para os americanos, como Du Pont e Roosevelt, e, do outro lado do Atlântico, a senhora Elizabeth Alexandra Mary, mais conhecida como Sua Majestade, a rainha da Inglaterra, Richardson não esconde sua mais diabólica intenção: “Criar um quebra-cabeça que seja possível montar, mas que ninguém consiga fazê-lo”. Essa loucura tem preço—e costuma ser bem salgado, para o gênero. No ano passado, a empresa entrou para o Livro Guinness dos recordes pela venda do quebra-cabeça mais caro do mundo: um modelo exclusivo, de 2 640 peças, no valor de 7 355 dólares, algo como 650 000 cruzeiros ao câmbio paralelo de meados de julho último. É o que o autor chama “Rolls-Royce dos quebra-cabeças”. Qualquer masoquista abonado pode encomendar um jogo exclusivo, com ilustrações especialmente desenhadas por artistas contratados e peças no formato desejado, incluindo iniciais do nome, datas comemorativas ou seja lá o que se imagine. Richardson, que toma o cuidado de jamais fornecer uma imagem do quebra-cabeça completo, lembra, a propósito, a peculiar encomenda com que um texano queria presentear a namorada. “À medida que ela ia colocando as peças, aparecia a figura de uma noiva e a pergunta em letra de fôrma: “Quer casar comigo?” Deu certo, pois ela disse sim.”
Foi uma encomenda como essa, por sinal, que fez Richardson mudar de carreira. Formado em Matemática e com mestrado em Ciência da Computação, ele tinha um bom emprego no Estado de Nova Jersey, quando resolveu mudar-se com a família para Vermont em busca de uma vida mais calma. A pequena empresa para a qual foi trabalhar, entretanto, logo fechou as portas e ele acabou abrindo sua própria firma— a Stave, uma composição de seu primeiro nome com o do sócio Dave Tibbets. “Stave também quer dizer quebrar em pedaços”, explica. No começo, especializaram-se em brinquedos sob encomenda e quebra-cabeças de papelão, além de jogos interativos. Em associação com a Liga Profissional de Futebol Americano, chegaram a desenvolver um jogo com o qual é possível brincar enquanto se assiste a uma partida pela televisão. Mas, um dia, um homem ligou.
“Ele disse que tinha visto nosso anúncio nas páginas amarelas e queria um quebra-cabeça para o aniversário da mulher. Pagava 300 dólares, mas tinha que ser de madeira”, recorda Richardson. Para quem vendia produtos de papelão por 3 dólares, a encomenda era um desafio tentador. Nos meses seguintes ele, Tibbets e o sogro estudaram métodos de carpintaria, cortando margens precisas sem danificar a madeira nem a figura e encontrando a exata espessura de madeira compensada que não empenaria com o tempo ou depois de cortada em pedaços pequenos. O resultado foi uma série de desenhos de obras de arte, cuidadosamente colados e recortados numa chapa de compensado de cinco camadas, das quais a de baixo é uma cara variedade de mogno africano. Hoje, com Tibbets fora do negócio, Steve e sua mulher, Martha, responsável pela parte financeira da empresa, controlam doze cortadores e detêm uma técnica própria.
Um processo secreto de corte com trinta etapas, aliado ao caráter manual do trabalho, que utiliza uma serra elétrica de lâmina mais fina que um fio de cabelo, transforma cada quebra-cabeça numa obra única—e mais difícil de ser montada. A primeira geração de produtos da Stave ainda tinha resquícios de compaixão pelos clientes, mas a natureza impiedosa de seus quebra-cabeças logo apareceria. A segunda geração nasceu com ilustrações especialmente criadas para terem os contornos recortados, de modo a dificultar sua localização. Novas e belas armadilhas, então, vieram se acrescentar: as silhuetas, peças com o formato de uma figura humana ou de um objeto; as grandes silhuetas, formadas pela união de várias peças; as silhuetas interativas, talvez um touro e um matador conectados juntos; falsos cantos no interior e ao redor do quebra-cabeça e até uma charada dentro do jogo. Se a pessoa montar as peças, descobrirá uma seqüência de certas silhuetas e assim poderá desvendar a charada. Se fizer isso em 24 horas depois da compra, receberá um prêmio. “Adoro ouvir seus gritos de agonia enquanto você se sacrifica diante de nossas belas pecinhas de madeira”, escreve Richardson nas embalagens dos jogos.
Atualmente, passados dezesseis anos da invenção do primeiro suplício, suas vítimas estão entregues aos horrores da terceira geração. Desta vez, mesmo quem finalmente encaixar as peças e formar uma figura pode, ainda assim, estar montando tudo errado. Além disso, algumas peças devem ser viradas do avesso para serem encaixadas. No desenho de um pinheiro, por exemplo, é preciso virar certas peças com a base escura para cima a fim de compor o tronco da árvore. O mais elaborado projeto em desenvolvimento na Stave é a Dollhouse village (Vila das casas de bonecas), com silhuetas em escala para se ajustarem nas salas das casas e lojas que aparecem na ilustração. Ao preço de 5 000 dólares (440 000 cruzeiros), o complicado quebra-cabeça alivia o sofrimento das pessoas com um livreto de histórias sobre famílias que moram nessa típica vila do século XIX
Às vezes, a perversidade vai longe demais. Five easy pieces (Cinco pedaços fáceis), lançado para comemorar o 1° de abril, o dia dos tolos, tinha sempre uma peça que não se encaixava, fosse como fosse montado o jogo. Muitos clientes não acharam a brincadeira engraçada e Richardson foi obrigado a comprar de volta todos os trinta exemplares fabricados. Na maior parte dos casos, porém, os fanáticos montadores de quebra-cabeças estão sempre prontos a novos desafios, como provam as muitas cartas que o inventor recebe. Um aficionado, por exemplo, costuma escrever que os quebra-cabeças são bobos demais para tomar o tempo de um homem inteligente Richardson responde que o remetente é que é bobo demais para montar um deles. Para Tizuko Morchida Kishimoto, responsável pela brinquedoteca, um acervo de brinquedos mantido na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, essa reação ao desafio dos quebra-cabeças não chega a espantar.
“As pessoas sempre gostam de fazer algo de que se julgam capazes”, explica a educadora. “Quando fracassam, costumam reagir de duas formas: ou sentem ainda mais vontade de vencer o desafio, no caso, montar o quebra- cabeça, ou se frustram tanto que acabam desistindo. O jogo, portanto, não pode ser nem impossível de montar, porque só causaria frustração, nem fácil demais, porque não proporcionaria o prazer da conquista.” Segundo o americano Mel Andringa, professor de Arte na Universidade de Iowa e apaixonado por puzzles, “o segredo desse passatempo é que o jogador está sempre progredindo em direção a um final feliz. Raras situações na vida conduzem a um resultado tão perfeito”.
Na verdade, o prazer de transformar o caos em ordem sobre um tabuleiro vem conquistando, há mais de dois séculos, pessoas de todo tipo. É o que conta o livro Jigsaw puzzles: an illustrated history (Quebra-cabeças: uma história ilustrada), lançado este ano nos Estados Unidos por Anne D. Williams, professora de Economia em Lewiston, no Maine. Na casa em que vive com sua gata Emily, ela guarda mais de 2 000 quebra-cabeças, incluindo algumas jóias como um exemplar de chocolate e outro com peças tão pequenas que vem acompanhado de pinças. Mas o exemplar mais valioso é um mapa da Europa montado numa placa de mogno, com as fronteiras recortadas.
Trata-se de um dos mais antigos quebra-cabeças conhecidos, feito em 1766 pelo gráfico inglês John Spilsbury, a fim de facilitar o ensino de Geografia para crianças. De fato, a maioria dos quebra-cabeças antigos representavam mapas e outros motivos considerados educativos, como imagens dos profetas do Velho Testamento. Saía-se melhor quem melhor conhecesse a Bíblia. A princípio, as peças não se prendiam entre si; um vento mais forte podia arruinar o trabalho de um dia inteiro. Surgiram, então, alguns modelos com encaixes entre as peças da borda. Por volta de 1840, todas as peças dos quebra-cabeças franceses e alemães eram já interconectadas.
O maior desafio dos artesãos sempre foi, como no caso de Richardson, encontrar a matéria-prima mais adequada. No século XVIII, os quebra-cabeças eram feitos de madeiras duras, que quebravam facilmente e não se prestavam a cortes complicados. Gradualmente, os fabricantes mudaram para o pinho e outras madeiras menos duras, até que, já neste século, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, começou-se a usar o compensado, mais leve e resistente. Na mesma época, entretanto, grandes indústrias também começaram a fazer jogos de papelão, muito mais baratos. Assim, durante a Grande Depressão americana dos anos 30, essa versão foi muito procurada. Toda semana se podia comprar nas bancas um novo quebra-cabeça de 300 peças de papelão por 25 centavos de dólar; muitas bibliotecas passaram a alugá-los. Nessa época, cerca de 2 milhões desses jogos eram vendidos semanalmente.
Uma das mais tradicionais fabricantes daqueles anos de ouro—para o quebra- cabeça, bem entendido—foi a Par Company, fundada em 1933 por dois desempregados nova-iorquinos. Os quebra-cabeças de madeira compensada fabricados por John Henriques e Frank Ware viriam a ser os preferidos dos astros preferidos pelos americanos, como Gary Cooper (1901-1961) e Marilyn Monroe (1926-1962). Certa vez um diplomata ajudou os artesãos a importar madeira só para que completassem o jogo que ele Ihes havia encomendado. A fabricação era cuidadosa: usavam lâminas especiais alemãs da espessura de 0,2 milímetro, contrataram químicos para inventar colas melhores e personalizaram seus jogos com peças no formato das iniciais dos clientes ou de silhuetas especiais. Sua marca registrada era um cavalo-marinho.
Muito do estilo de Richardson vem da arte da dupla Henriques & Ware. Eles já cortavam peças que pareciam margens (mas não eram) e bordas que, mesmo encaixadas corretamente, deixavam um espaço vazio, fazendo o jogador pensar que estava errado. As embalagens tampouco davam muita chance para se adivinhar o motivo impresso, apresentando apenas um título deliberadamente obscuro. Um cavaleiro de armadura recebeu, por exemplo, o título de “garoto em lata”. Mas, quando se trata de dificultar a vida do cliente, Richardson sabe ser original, como no caso de um quebra-cabeça com a imagem de um Papai Noel, que vem com três peças extras, as quais não se encaixam em lugar algum—são os clássicos ho, ho, ho da risonha figura. Em outros, as peças se tangenciam mas não se ajustam, dependendo de uma terceira para isso. O jogo A clowder of cats (Uma cambada de gatos) só foi montado inteiro por dois dos quarenta compradores.
Uma preciosidade é Denzel the dragon (Denzel, o dragão), cujas 500 peças, que ou se sobrepõem em camadas ou se encaixam em pé, representam um dragão assediando o castelo da princesa. Preço: 2 000 dólares (176 000 cruzeiros). Há cerca de um ano, porém, parecia não haver mais artimanhas invencíveis para Richardson. Os clientes, sempre desafiando-o a criar algo insolúvel, estavam vencendo. Então, ao brincar com a areia na praia, conta ele, veio a inspiração. Começou a nascer assim a mais recente geração de quebra-nervos, cujas perfídias o autor prefere manter em segredo até que o lote esteja pronto. Com certeza, os fãs ficarão ainda mais danados da vida. Ou seja, serão clientes satisfeitos.
Quebrando cabeças brasileiras
Existem quebra-cabeças de madeira feitos um a um, como os de Richardson, e existem os fabricados em série, geralmente de papelão. Mas, para Márcio Hegenberg, diretor de marketing da fábrica de brinquedos Grow, em São Bernardo do Campo, a escala industrial de produção desses últimos jogos não Ihes tira a originalidade. Segundo ele, o verdadeiro fã de quebra-cabeças dificilmente monta uma imagem mais de uma vez. Não obstante, como o recorte das peças tende a ser o mesmo em todos os jogos, existem aficionados que preferem misturá-los para tornar o passatempo mais interessante. Num jogo comum de 1 000 unidades, podem ser encontrados entre trinta e quarenta formatos diferentes de peças. Todo ano, doze novos títulos chegam às lojas e meio milhão de jogos são vendidos no país. O maior deles, com 5 000 peças, lançado em 1986, compõe o quadro A ronda noturna, do pintor holandês Rembrandt.
Os primeiros quebra-cabeças feitos no Brasil eram de madeira, obra de alguns poucos artesãos talentosos. Há cerca de três décadas, surgiram os exemplares de papelão e poucas peças, destinados às crianças. No início, os grandes quebra-cabeças vinham com tabuleiro de papelão e cola especial importada. “Quando a pessoa acabava de montar as peças sobre o tabuleiro era só passar a cola por cima. Ela prendia e ao mesmo tempo envernizava o conjunto”, descreve Márcio, que prevê a volta desses acessórios. Graças a uma nova tecnologia, que permite o corte de peças grandes de madeira pelo sistema de facas utilizado para o papelão (no qual as facas têm o formato das peças), há dois anos a madeira voltou aos quebra-cabeças nacionais em jogos mais curáveis e bonitos para crianças.