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Anjos malvados

Crianças podem exibir cedo indícios de que serão adultos psicopatas. Mas, como ainda não têm a personalidade formada, elas recebem outro diagnóstico: transtorno de conduta

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 25 fev 2011, 22h00

Texto Mariana Sgarioni

Daniel Blair tem 4 anos e achou que seu cachorrinho de apenas uma semana de vida estava muito sujo. O melhor jeito encontrado para um banho rápido foi atirar o animal na água do vaso sanitário – e dar descarga. Por sorte, a mãe descobriu a tempo, e bombeiros resgataram o animalzinho ainda vivo no esgoto. O caso aconteceu no início de junho, na Inglaterra, e chamou a atenção das câmeras do mundo inteiro. Muitos perguntaram: será que Daniel seria um pequeno psicopata divertindo-se com o sofrimento do bicho?

Provavelmente não. Em primeiro lugar, Daniel ainda é muito novo para ter a consciência do que chamamos de certo e errado. Ou seja: ele não sabia que estava fazendo mal ao bichinho. Segundo: de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria (APA, da sigla em inglês), nenhum menor de 18 anos pode ser chamado de psicopata, uma vez que sua personalidade ainda não está totalmente formada.

Nesse casos, o que pode existir é o transtorno de conduta – um padrão repetitivo e persistente de comportamento que viola regras sociais importantes em sua idade, ou os direitos básicos alheios (veja quadro da página 34). E esse transtorno revela um forte risco de caminhar, no futuro, para o transtorno da personalidade antissocial – ou a psicopatia. Enquanto não se pode dizer que toda criança com transtorno de conduta será psicopata, certamente todo psicopata sofria desse transtorno quando era menor.

Segundo uma pesquisa da Asso­cia­ção Brasileira de Psiquiatria (ABP), cerca de 3,4% das crianças apresentam problemas de conduta como mentir, brigar, furtar e desrespeitar. A crueldade com animais é outra das características em crianças e adolescentes a que os médicos mais chamam a atenção para diagnosticar o transtorno de conduta. Se for recorrente e estiver aliado a mentiras frequentes, furtos e agressões, por exemplo, esse comportamento pode ser bem preocupante.

A esta altura você deve ter-se lembrado de milhões de adultos perfeitamente normais que já fizeram isso quando crianças. Isso é verdade. Portanto não ache agora que todo pequeno travesso ou hiperativo é um psicopata em potencial.

Para começo de conversa, um certo grau de malvadeza é relativamente normal na infância e faz parte do desenvolvimento. Sigmund Freud, o pai da psicanálise, explicava que temos impulsos instintivos agressivos e que somente ao termos contato com os outros e com a cultura é que nos moldamos e refreamos tais impulsos. Segundo ele, temos uma vocação para a rebeldia, que acabamos reprimindo em troca da convivência pacífica em sociedade. “Nascemos com um programa inviável, que é atender aos nossos instintos, mas o mundo não permite”, afirmava.

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Quanto à adolescência, também é preciso ponderar bastante antes de mandar jovens mentirosos ao psiquiatra. Estudos recentes, como o de Terrie Moffitt e Avshalom Caspi, do início da década, demonstram que uma dose de delinquência na adolescência pode fazer parte do desenvolvimento normal.

Segundo seus resultados, a delinquência leve e delimitada a apenas uma parte da adolescência pode estar ligada, por exemplo, a más companhias, o que pode ser facilmente resolvido. Esse problema pode se agravar se houver abuso de substâncias psicoativas.

É por essas e outras que um diagnóstico infanto-juvenil é tão delicado. Mas, então, quando uma criança pode ser considerada perigosa?


Pequenas mentes

Cabeça de criança é diferente da de um adulto – e precisa ser tratada como tal. Antes dos 7 anos ela ainda não tem a capacidade de julgamento totalmente formada, ou seja, a consciência do que pode ou não pode fazer. Simplesmente vai lá e faz. Pais, familiares e educadores vão dando os limites e assim ela os aprende – ou não. “Quando um garoto de 6 anos coloca o gato no micro-ondas, ele não sabe o que faz. Já, se isso acontecer com um garoto de 8 anos, será mais preocupante”, diz Francisco Assumpção Júnior, psiquiatra infantil, professor da Faculdade de Medicina e do Instituto de Psicologia da USP.

Se, por um lado, não é possível confirmar um transtorno de conduta nos pequenos, por outro já é possível observar determinadas reações. A inglesa Mary Bell, por exemplo, aos 2 anos de idade era uma menina diferente das outras. Nunca chorava quando se machucava e adorava surrar seus brinquedos. Aos 4 anos precisou ser contida ao tentar enforcar uma coleguinha, dizendo às professoras que sabia que a atitude poderia matá-la. Aos 5, presenciou a morte por atropelamento de um outro amiguinho sem esboçar nenhum espanto. Depois de alfabetizada, passou a ficar incontrolável. Pichava paredes da escola, incendiou a casa onde morava, maltratava animais.

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Aos 11 anos, Mary matou por estrangulamento dois meninos entre 3 e 4 anos, sem dó nem piedade. O caso aconteceu em 1968. Antes de ir a julgamento, a menina foi avaliada por psiquiatras, que concluíram um gravíssimo transtorno de conduta. “Ela não demonstrou remorso, ansiedade nem lágrimas ao saber que seria detida. Nem ao menos deu um motivo para ter matado. É um caso clássico de sociopatia”, dizia seu laudo psiquiátrico.

O que fez com que Mary Bell se transformasse nessa pequena fera? Para especialistas, existem 3 fatores de risco para a psicopatia: a predisposição genética, um ambiente hostil e possíveis lesões cerebrais no decorrer do desenvolvimento.

Sabe-se ainda que a maioria dos psicopatas sofreu algum tipo de abuso na infância, seja físico, seja sexual, seja psicológico. O caso de Mary Bell reuniu o conjunto completo.

Filha de uma prostituta viciada em drogas e com distúrbios psquiátricos, Mary foi abandonada e entregue para doação diversas vezes, sem sucesso. A mãe frequentemente dava drogas a Mary, que ainda pequena chegou a ser levada ao hospital com overdoses terríveis. Mas a pior parte eram os abusos praticados pela própria mãe, que obrigava a menina a se prostituir junto a ela desde os 4 anos de idade. Num ambiente assim, o desenvolvimento da personalidade é bem complicado.

Genética versus ambiente

Até hoje não se provou cientificamente que bebês como Mary nasçam já prontos, predestinados a ser adultos psicopatas – nem que nasçam como uma folha de papel em branco, preenchida no decorrer da vida. No momento em que somos concebidos já ganhamos de presente dos nossos pais e antepassados uma composição genética específica. Nossos genes regulam a quantidade dos neurotransmissores responsáveis por variadas sensações que se expressam no cérebro. Um bebê pode não nascer psicopata, mas pode, sim, vir ao mundo com tendências e predisposições genéticas ao distúrbio, o que é uma boa parte do caminho andado.

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No entanto, nenhum gene age no vácuo. De acordo com a genética comportamental, para entrar em ação, o gene precisa interagir com o ambiente de alguma forma.

“Qualquer gene precisa, para haver a chamada expressão adequada, de determinadas circunstâncias externas, sejam bioquímicas, sejam físicas, sejam fisiológicas”, dizem os pesquisadores americanos Howard S. Friedman e Miriam W. Schustack, autores do livro Teorias da Personalidade. O que quer dizer que uma predisposição genética à psicopatia pode não atuar sozinha, mas encontra terreno fértil se estiver em um ambiente hostil, violento, com carência de recursos ou afeto.

Mas essa opinião não é unanimidade. “Diversos estudos com gêmeos idênticos crescidos em ambientes separados mostram que apresentaram os mesmos sintomas de psicopatia”, contesta o neurologista Jorge Moll, coordenador da Unidade de Neurociência Cognitiva e Comportamental da Rede Labs-D’Or, no Rio. Por outro lado, há estudos com gêmeos idênticos que foram criados na mesma família, mesmo local, mesma cultura, mesma casa, mas em que só um exibiu transtorno de conduta.

“Isso mostra que os problemas não podem vir dos genes, pois eles têm genes iguais, e também não podem vir diretamente do ambiente, pois tiveram os mesmos pais, vizinhos, casa. Acredito que essas diferenças venham simplesmente de um processo randômico, do acaso, e têm uma grande influência naquilo que somos. Acasos como um bebê que cai de cabeça no chão, um vírus que ele pega, um pensamento que deixe uma impressão permanente”, afirma o neurocientista Steven Pinker, de Harvard, que por mais de 20 anos atuou no Departamento do Cérebro e Ciências Cognitivas do MIT (EUA).

Quando procurar ajuda?

Como a psicopatia em adultos não tem cura, médicos e pesquisadores da área trabalham para tentar diagnosticar o problema cada vez mais precocemente. O psicólogo canadense Robert Hare costuma fazer diagnósticos em crianças a partir dos 9 anos de idade.

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É importante, porém, diferenciar crianças mal-educadas – aquelas acostumadas a ser tratadas como pequenos reis, que podem tudo – daquelas com distúrbios. Também não se pode diagnosticar um menino ou menina com transtorno de conduta caso ele seja agressivo por raiva ou para reagir a alguma coisa que o esteja desafiando.

O transtorno de conduta é caracterizado pela repetição – e não por atos isolados – e, em geral, vem acompanhado de hiperatividade e déficits graves de atenção.

Embora difícil, o tratamento in­di­ca­do a essas crianças e adolescentes, em geral, é a psicoterapia acompanhada, dependendo do caso, de medicamentos tranquilizantes para reduzir a agressividade e a impulsividade, ou ainda estimulantes. “A escola e a família também precisam trabalhar juntas antes que seja tarde. Na psicoterapia, procuramos fazer com que essa criança mude sua forma de pensar e perceba o quanto ela mesma sai prejudicada com esse comportamento. Dessa forma, é possível que ela não transgrida, só para salvar a própria pele”, explica Francisco Assumpção Júnior.

Luz no fim do túnel

Ao contrário do que acontece com os adultos, existe uma chance de uma criança com transtorno de conduta mudar seu padrão de comportamento e não se tornar um psicopata. É claro que, quando se trata de adolescentes, a dificuldade de reabilitação aumenta.

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Mas existem casos curiosos que in­trigam a comunidade científica. Em 1993, os meninos ingleses Jon Venables e Robert Thompson, de 10 anos, sequestraram e mataram com pancadas o pequeno James Bulger, de apenas 2 anos. Foram presos e julgados como adultos. Após 8 anos na cadeia, receberam o laudo psiquiátrico de que não ofereciam mais perigo à sociedade. Estão soltos, com novas identidades. Nunca mais houve nenhum registro de reincidência desse comportamento.

Mary Bell, a menina de que falamos, também foi presa e tratada por 12 anos. Em 1980 foi solta e continuou a ser monitorada. Casou-se, teve uma filha, e hoje parece levar uma vida normal, uma vez que nunca saiu de vigilância. “Se havia algo de errado comigo quando eu era criança, hoje não há mais. Passaram um raio X dentro da minha cabeça e puderam ver que, se existia alguma coisa quebrada, ela agora se arrumou”, diz Mary.

 

 


No rastro da maldade
Transtorno de conduta é um padrão de comportamento antissocial em meninos e meninas com mais de 6 anos e menos de 18. Ocorre se acontecerem 3 ou mais dos itens abaixo no último ano e um ou mais no último semestre

• Mata aula frequentemente (começa antes dos 15 anos).

• Passa a noite fora várias vezes contra a ordem dos pais (começa antes dos 13).

• Foge da casa dos pais pelo menos duas vezes.

• Persegue, atormenta, ameaça ou intimida os outros frequentemente.

• Inicia lutas corporais.

• Usa armas como pau, pedra, caco de vidro, faca e revólver.

• É cruel com pessoas ou com animais a ponto de feri-los fisicamente.

• Rouba ou assalta, confrontando diretamente a vítima.

• Força alguém à atividade sexual.

• Inicia um incêndio com a intenção clara de provocar sérios danos.

• Destrói a propriedade alheia deliberadamente.

• Arromba ou invade a casa ou o carro de alguém.

• Mente e engana pessoas por ganhos materiais ou para fugir de obrigações.

 

 

 

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