Onde o crime venceu
Não é só na zona oeste do Rio: máfias montam seu próprio "sistema" em vários países, se valendo de crimes bárbaros e controlando regiões inteiras. Nesses lugares a polícia deixou de existir. E a população vive apavorada
Texto Guilherme Felitti
Somália
Formalmente, a Somália não tem um governo central desde 1991. Com a queda da União Soviética, o governo socialista de Siad Barre foi derrubado por uma insurgência popular liderada pelo grupo paramilitar Congresso da Somália Unida. O noroeste do país declarou independência unilateral e formou a Somalilândia – um país com governo, hospitais, escolas e moeda própria, mas não reconhecido por país algum do mundo. E o que restou de Somália propriamente dita foi um retalho tribal.
Fora da capital, Mogadiscio, cada clã se armou e instaurou a própria área de influência. As Nações Unidas falharam em uma missão de paz que durou apenas dois anos. Agora o governo transitório estabelecido em 2004 tem de enfrentar a gradativa dominação da Somália pela milícia União dos Tribunais Islâmicos, que controla Mogadiscio.
Estima-se que centenas de milhares de somalis morreram desde 1991 – só entre 2007 e 2009 foram 18 mil civis mortos, segundo o centro de estudos somalis Elman Peace Center. A anarquia também transformou a Somália em um centro mundial de pirataria – não a de filmes e produtos falsificados, mas aquela à moda antiga. Piratas tomam barcos, se refugiam no país sem governo, roubam a carga e cobram resgate pela tripulação.
Serra Leoa
Um dos mais brutais conflitos africanos, a Guerra Civil de Serra Leoa começou em 1991, matou dezenas de milhares de civis e mutilou tantos outros nos 11 anos em que rebeldes da Frente Revolucionária Unida, liderados por Foday Sankoh, tentaram tomar o país. Nascido como resposta a um governo corrupto, o movimento rebelde tomou o controle das minas de diamante, o recurso mais precioso do país africano, para financiar armas e munição. A partir do leste, a Frente avançou pelo país em direção à capital, Freetown. Ela promoveu carnificinas em povoados pelo país com a ajuda de um exército de crianças, raptadas dos pais e treinadas para arrancar mãos e pés de civis (crianças, inclusive).
Com a ajuda do Exército britânico e das Nações Unidas, a guerra civil chegou ao fim em 2002 com a assinatura de um tratado de paz, um ano antes de Foday morrer na prisão enquanto aguardava o julgamento por crimes contra a humanidade. Mesmo assim, a ONU admite que Serra Leoa ainda tem uma democracia extremamente frágil, corroída pela alta corrupção, pela violência e pelo baixíssimo Índice de Desenvolvimento Humano – em 2009, Serra Leoa era o antipenúltimo entre 182 países.
El Salvador
O pequeno país na América Central tem 6,2 milhões de habitantes e uma das mais altas taxas de assassinato no mundo. O motivo é a guerra de gangues que toma as ruas da capital, San Salvador, e cidades menores, como La Libertad e Santa Ana.
As duas principais gangues são a Mara 18 e a Mara Salvatrucha, ambas nascidas em Los Angeles e popularizadas na América Central depois que seus líderes foram deportados pelos EUA nas décadas de 1980 e 1990. A guerra de gangues foi a principal responsável pelos mais de 11,7 mil assassinatos no país registrados pelo Observatório Centroamericano sobre Violência entre 2007 e fevereiro de 2010.
Captada pelo documentário La Vida Loca, a violência apareceu não apenas na tela, com o assassinato registrado de 3 membros da Mara 18, mas também na vida real: o diretor do filme, Christian Poveda, foi assassinado um ano depois das filmagens.
Em setembro, as duas gangues deram uma nova demonstração de força: para tentar barrar uma lei que torna crime a filiação a gangues, a Mara 18 e a Mara Salvatrucha pararam El Salvador ao ameaçar atacar ônibus e trens por todo o país.
Colômbia/Panamá
O Exército colombiano, com ajuda americana, enfraqueceu consideravelmente as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Mas isso fez também com que a guerrilha se embrenhasse na selva que cobre parte da fronteira entre a Colômbia e o Panamá. Hoje, elas dominam a região. A situação é vantajosa para as Farc pela desestruturação do Exército panamenho desde que os EUA invadiram o país, em 1989. Sob a justificativa de garantir estabilidade política suficiente para que, 10 anos depois, o país assumisse o gerenciamento do canal do Panamá, como acordado no tratado Torrijos-Carter, os EUA derrubaram o ditador Manuel Noriega, sue antigo aliado, e dissolveram o Exército nacional. Na região de Darién, guerrilheiros conseguem cultivar, processar e distribuir drogas para toda a América Latina, principalmente para a Colômbia, por meio dos rios panamenhos que atravessam a fronteira. A ação não está restrita apenas à selva densa: relatos de moradores de Darién dão conta que guerrilheiros limitam seus movimentos e forçam pescadores a traficarem drogas em seus barcos. As Farc controlam amplos territórios e mantêm ao menos 21 policiais e militares como reféns.
Brasil (interior do Pará)
O Pará está envolvido há décadas em uma guerra não oficial. O confronto entre madeireiros que tomaram posse ilegal de milhões de hectares e movimentos sociais e organizações não governamentais que defendem a reforma agrária e o fim do desmate ilegal quase sempre termina em morte. Em 2005, o assassinato da missionária americana Dorothy Stang projetou o conflito internacionalmente, mostrando como pistoleiros a mando dos donos da terra ameaçam e matam líderes sindicais e religiosos ou famílias que se recusam a abandonar suas propriedades. Dados da Comissão Pastoral da Terra, entidade da qual Dorothy fazia parte, ilustram que a missionária é uma entre tantas vítimas da violência: de 1971 a 2004, foram assassinados 772 camponeses, e, só em 2009, o Pará foi responsável por um quinto dos conflitos de terra em todo o Brasil. A violência de posseiros e fazendeiros, aliada à corrupção e à baixa atuação do governo, fazem do Pará o líder em desmatamento na região: em agosto deste ano, 68% do desmatamento na floresta aconteceu no estado, segundo o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia.