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O portal de drogas da Deep Web

A ascensão e a queda do Silk Road, que recebia em bitcoin, chegou a movimentar mais de US$ 1 bilhão - e desmoronou pela vaidade de seu fundador

Por Ricardo Lacerda
Atualizado em 27 mar 2023, 17h32 - Publicado em 17 Maio 2018, 13h03

Em junho de 2013, agentes do escritório de cibercrimes do FBI, em Nova York, investigavam a venda de drogas na internet quando perceberam algo anormal em um dos computadores. Era o endereço de IP do servidor do Silk Road, um gigantesco mercado ilícito na Deep Web, encontrado depois que um usuário alertara, num fórum, que o número estava vazando. O servidor oculto remetia ao Thor Data Center, em Reykjavik, na Islândia. Depois de cruzarem o oceano, os investigadores retornaram trazendo em mãos seis meses de logs (registros) do sistema. O conteúdo era explosivo: permitia visualizar todos os computadores que se conectaram ao servidor naquele período. Em uma criteriosa análise, o FBI descobriu que um canal específico era usado para uma conexão criptografada. Nela, os administradores iniciavam o login. Para surpresa geral, uma dessas conexões vinha de um café em San Francisco, na Califórnia.

Dali operava o suposto administrador do e-commerce de abrangência global que já havia movimentado US$ 1,2 bilhão. Jovem, nascido em uma família bem estruturada, pós-graduado e seduzido por ideais libertários, Ross Ulbricht era uma figura cultuada na Deep Web. Lá, era conhecido como DPR, acrônimo para Dread Pirate Roberts. O apelido remete a um personagem mítico do filme A Princesa Prometida, de 1987 – um espadachim à la Zorro cujo nome era herdado de geração em geração. A página que ele administrava havia angariado uma legião de admiradores logo após seu lançamento, em janeiro de 2011. Primeiro, por conta do sucesso das transações, que chegava a 99%. Segundo, porque tinha ares moralistas, proibindo negócios envolvendo fraudes, bens roubados e ameaças à integridade física das pessoas.

Apesar de ter sido desativado pelo FBI, o site é considerado até hoje o mais emblemático canal de compra e venda de drogas que já existiu no submundo da internet. De maneira estruturada, o Silk Road permitia que traficantes e usuários negociassem livremente produtos como heroína, ópio, cocaína, maconha, metanfetamina e LSD. Além disso, os fóruns traziam amplos debates, com dicas sobre uso, misturas e melhores composições para cada tipo de droga. O anonimato dos negociadores era garantido por dois mecanismos: a rede TOR, que assegurava a navegação criptografada e livre de rastros, e o bitcoin, que criou uma rede de pagamentos anônima.  

Quando os agentes do FBI descobriram a localização física de DPR, o administrador do Silk Road, o site já havia passado da marca de 1 milhão de usuários cadastrados. Naquele momento, as autoridades policiais estavam em alerta máximo, procurando infinitas maneiras de fechar o maior cartel online do planeta. A busca, no entanto, havia começado muito antes. E o caminho para desvendar quem era a pessoa escondida sob DPR foi uma tarefa longa, tortuosa e nada trivial.

idealismo oportuno

Ross Ulbricht cresceu em Austin, no Texas, nos anos 1990. Filho de um casal de classe média alta que ganhava a vida investindo em imóveis na Costa Rica, ele não se diferenciava muito de qualquer rapaz de 20 e poucos anos. Formado em física, namorava, dirigia um Volvo antigo, gostava de computadores, surfava e fumava maconha de vez em quando. Em 2009, antes mesmo de terminar o mestrado em ciência e engenharia de materiais, se desencantou com a carreira acadêmica. Passou a estudar, por conta própria, economia, filosofia oriental e drogas psicodélicas. Ulbricht enxergava na tributação imposta pelo governo uma espécie de monopólio – e, como todo monopólio, nocivo.

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Em 2010, ele escreveu em sua página de LinkedIn: “Quero utilizar a teoria econômica como meio de abolir a coerção e agressão na humanidade. Para esse fim, estou criando uma simulação econômica para dar às pessoas uma experiência em primeira mão do que seria viver em um mundo sem o uso sistêmico de força”. Para libertários como ele, o uso de drogas é uma escolha estritamente pessoal. Ao combinar TOR e bitcoin, Ulbricht criaria sua própria versão da Rota da Seda em pleno século 21. Em vez de ligar o Extremo Oriente à Europa, como fazia a maior rede comercial do Mundo Antigo, o Silk Road era um gigantesco mercado online, cuja logística de distribuição explorava brechas nos sistemas de correio de dezenas de países.

A primeira venda foi feita pelo próprio fundador: 10 kg de cogumelo. Com uma interface inspirada em gigantes como Amazon e eBay, o Silk Road ganhou credibilidade. Havia perfis, listagens, fóruns e avaliações das transações. Em seu Guia do Vendedor, a página ensinava a enganar sensores de polícia e cães farejadores, além de dar dicas de como selar pacotes a vácuo. No primeiro ano, a renda média estimada de Ulbricht, contabilizada a partir de comissões sobre as vendas de usuários, era de US$ 25 mil mensais – sempre em bitcoin.

A princesa e o pirata

Seis meses depois do lançamento, o Silk Road saiu das profundezas da web para ganhar popularidade com uma reportagem publicada pelo site americano Gawker. Intitulada “O site underground onde você pode comprar qualquer droga imaginável”, a matéria trazia entrevistas com clientes satisfeitos com a pontualidade, a praticidade e a qualidade dos produtos. A comercialização era feita sobretudo por vendedores dos Estados Unidos e do Canadá. Haxixe e heroína afegãos, maconha congolesa, cocaína colombiana: as prateleiras virtuais apresentavam uma farmacopeia de fazer inveja a Pablo Escobar. E tudo com descrição digna de literatura científica. Em seu auge, quando foi fechada, a página listava 13.802 anúncios.

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Depois da reportagem, o tráfego do Silk Road cresceu tanto que Ulbricht precisou de suporte técnico para mantê-lo no ar. Com uma comunidade de admiradores espalhada mundo afora, arregimentar colaboradores não foi difícil. Pessoas com codinomes como indigo, libertas e batman73 se tornaram “funcionários” do Silk Road. Nenhum deles se conhecia pessoalmente; tampouco sabiam suas identidades. Ainda que falassem com o administrador, ninguém tinha ideia de quem ele realmente era.

No começo de 2012, Ross Ulbricht ainda se identificava em fóruns, conversas e postagens do Silk Road assinando apenas como “administrador”. Até o dia 5 de fevereiro, quando perguntou aos membros da comunidade o que achavam do pseudônimo DPR.

Fama e anonimato

“O fórum do Silk Road era uma comunidade melhor do que qualquer outra que eu havia visto na vida real, com muitas vertentes de excelente discussão política e filosófica”, afirma um usuário não identificado em entrevista ao cineasta Alex Winters para o documentário Deep Web, de 2015. “Sim, havia transações ilegais, mas era uma verdadeira comunidade de pessoas com muito em comum”, completa.

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Àquela altura, o Silk Road já era alvo de várias investigações, sendo a mais forte uma força-tarefa liderada pelo Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS). Baseada em Baltimore, Maryland, a operação Marco Polo contava com homens do FBI e da agência de controle de drogas americana (DEA). Na esfera política, os discursos do senador Charles Schumer, do Partido Democrata, inflamavam a caçada contra o narcotráfico virtual. Prender DPR e fechar o Silk Road era uma questão de ordem pública.

As investigações, no entanto, travavam no intrincado sistema de anonimato e criptografia que protege quem navega pela rede TOR. Encontrar a pessoa que respondia pela sigla DPR, ou mesmo desvendar sua identidade, eram as tarefas sobre as quais as equipes de investigações se debruçavam. Andy Greenberg, editor sênior da revista Wired, frequentou o Silk Road e negociou ao longo de oito meses uma entrevista com DPR, publicada em agosto de 2013.

O repórter acredita que um dos motivos que pode ter levado Ross Ulbricht a topar a conversa foi o lançamento do Atlantis, um concorrente do Silk Road que investia pesado em marketing na internet convencional. Na entrevista, DPR afirmava não ter fundado o Silk Road – fato que teria cabido ao seu antecessor – e que ela era administrada por um grupo. Mas, na opinião do jornalista, que também aparece no documentário Deep Web (disponível na Netflix), o Silk Road só funcionava porque as pessoas confiavam plenamente em DPR – ou seja, em Ross Ulbricht. “Ele podia ter fechado o site e roubado milhões em bitcoin, mas não o fez”, afirma. 

Encarnando o personagem

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A derrocada do Silk Road é digna de cinema. Não à toa, os irmãos Joel e Ethan Cohen, autores de clássicos como Fargo e O Grande Lebowski, compraram os direitos da história para transformá-la em filme. Na trama, o investigador Carl Force se destaca como peça-chave de um thriller que não acaba com a condenação de Ross Ulbricht, em maio de 2015. O motivo: cinco meses depois, o próprio Force acabaria sentenciado a seis anos e meio de prisão por tentar vender ao acusado informações sobre a investigação – além de usar o cargo que ocupava para desviar bitcoins e lavar o dinheiro em sua conta pessoal.

A relação entre o policial e o pirata começou via TORChat. Infiltrado no Silk Road, em abril de 2012 ele pediu a Ulbricht que desse seu preço pelo site. A resposta: US$ 1 bilhão. Encarnando a figura de um chefão do cartel dominicano, o policial usava o pseudônimo Nob para navegar no Silk Road e dialogar com DPR. Aos poucos, os dois estabeleceram uma relação de confiança mútua. As conversas, que invadiam a madrugada, duraram mais de um ano.

Àquela altura, Ulbricht não era uma figura desconhecida das autoridades. Em 2011, nos primórdios da página, ele perguntara em um fórum da Deep Web se alguém conhecia o Silk Road – deixando à disposição seu endereço de Gmail. Quando o FBI identificou os acessos do administrador a partir de um café em San Francisco, logo ficou claro que Ross Ulbricht poderia ter relação com tudo aquilo, já que ele morava a poucas quadras dali, frequentava o café e – agora monitorado – acessava a internet nos mesmos momentos em que DPR aparecia logado. A polícia tinha certeza de que havia encontrado o chefão do Silk Road. Mas era preciso pegá-lo com a boca na botija, com a página de administrador aberta e logado como DPR. Caso contrário, as provas poderiam se perder em meio à criptografia. No dia 1º de outubro de 2013, Ross Ulbricht foi seguido até se acomodar numa mesa próxima da parede na biblioteca pública de San Francisco. Quando o agente do FBI que navegava disfarçado no Silk Road deu o sinal de que DPR estava conectado, um casal de policiais simulou uma briga em sua frente. Num momento de desatenção, outro agente tomou o laptop ainda aberto e logado como DPR no painel de administração do Silk Road.

Em 2015, aos 31 anos, Ross Ulbricht foi condenado por tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e invasão de computadores. Acabou sentenciado à prisão perpétua. Até hoje ele nega ser a figura por trás da sigla DPR e alega ser vítima de uma armação.

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