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E se todo mundo virar vegano?

Se o consumo de produtos animais virar tabu, o ambiente agradece. Mas os rebanhos, abandonados após milênios domesticados, seriam extintos. Acompanhe um pai e um filho por uma antiga região pecuária - onde surgem novas questões familiares.

Por Emiliano Urbim
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 16 set 2014, 22h00

 

Pedalavam.

Nada ao redor dos dois, pai e filho, a não ser suas sombras no asfalto. Era o caminho que sempre faziam para tirar fotos de natureza: uma estrada vazia na fronteira do Brasil com o Uruguai, reta infinita cortando a planície oceânica. Até que o pai, que ia mais à frente, dobrou à direita, desviando para uma trilha de chão batido. O filho se surpreendeu. Mas o seguiu, e parou ao lado dele no alto de uma colina. Não sabia dizer o quê, mas havia algo estranho com seu pai. Calado, o cinquentão enxuto tirou seu capacete e lançou à paisagem um olhar de filósofo. E veio uma voz de filósofo.

“Filho, chegou a hora de termos uma conversa difícil. Eu sempre te dei liberdade, não dei?”

O rapaz acenou concordando.

“Sempre fui um defensor da liberdade. Mas não apenas da sua. De todos os seres vivos.”

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“Sei, pai. E daí?”

“Sabia que toda essa área ao nosso redor já esteve repleta de bois e vacas?”

Sem dar chance de resposta, o pai encadeou memórias: as viagens de carro com a família pelo pampa, vendo aquelas coxilhas cheias de bovinos. Os churrascos com amigos, as feijoadas aos sábados, o peru de Natal. Outro mundo.

“Até que surgiu uma ten-dên-cia”, ironizou o filho.

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“Uma nova consciência”, rebateu o pai. “Cientistas, intelectuais, políticos. Todos começaram a se dar conta do absurdo que era comer carne. Fui um líder dessa causa. Agora, imagine como me sinto ao saber que meu próprio filho anda comendo queijo.”

O rapaz tentou responder, mas o pai prosseguiu com o sermão. Lembrou-se dos protestos para acabar com aviários, matadouros, frigoríficos, pesqueiros.

“Olhando para trás, é óbvio que matar animais foi tão absurdo quanto a escravidão. Ou impedir mulheres de votar. Ou segregar pessoas por raça ou religião. Não entendo como ainda pode existir gente carnívora.”

“Pai, você está exagerando. Não virei carnívoro. Não precisa matar uma vaca para extrair o leite e fazer queijo. Além disso, foram só algumas vezes. Posso parar quando quiser.”

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“Mas começa assim. Daqui a pouco, você se vicia em coisas mais fortes. Um ovo frito. Quando vê, já está no peito de frango. Em pouco tempo, está vendendo sua bicicleta para comprar picanha desses traficantes de carne. Você está dando força para algo que foi muito difícil de combater.”

Irritado, o pai voltou com a aula de história. A pecuária tinha sido uma das principais atividades econômicas, com um lobby poderoso. Mas a mudança veio da sociedade. Ano após ano, cada vez mais gente foi deixando de comer carne. Beber leite também se tornou malvisto, e até ovos viraram alimentos proibidos. Produtos de origem animal se tornaram tabu. Casacos de pele, blusões de lã e travesseiros de pena eram peças de museu.

“Vestir uma jaqueta de couro é como se enrolar em um cadáver, concorda?”

“Sua geração é muito extremista.”

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“Extremista? Quando leio que as florestas retomam o espaço dos pastos, que os peixes estão voltando aos mares, quando eu vejo essa paisagem vazia, sem animais criados apenas para morrer, sinto que estou deixando um mundo melhor para a sua geração.”

“Podemos voltar agora? Aproveita e me deixa na clínica de reabilitação.”

“Chega de ironia, garoto. Quero te mostrar um lugar.”

Com um sinal do queixo, ele fez com que o filho montasse na bicicleta e o seguisse pela estradinha pampa adentro. Depois de uns 15 minutos, pararam ao lado de uma cerca. O pai tocou o ombro do filho e usou um tom conciliador.

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“A partir daqui, começa um santuário onde vivem em liberdade alguns dos últimos remanescentes daqueles rebanhos gigantescos.”

Após milênios de domesticação, os animais abandonados foram incapazes de sobreviver na natureza. Pragas e predadores acabaram com quase todos – 99,9% dos 1,5 bilhão de bovinos pereceram, numa das maiores extinções em massa da história. O pai tirou da mochila sua câmera fotográfica. Em silêncio, posicionou a máquina e aguardou. Até que chamou o rapaz para olhar no visor. Uma mancha branca, desfocada. Com um ajuste, ela surgiu. Uma das últimas vacas do pampa.

“Não é um animal lindo?”

O filho afastou a câmera do rosto e enxugou os olhos.

“Desculpa, pai. De verdade.”
“Tudo bem”, respondeu o pai, abrindo outro bolso da mochila. Em sinal de trégua, acendeu um baseado e ofereceu ao filho. Fumaram juntos admirando a paisagem.

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