Como o governo se dá bem
O Brasil é um dos países que mais arrancam impostos dos pobres e da classe média. Como? Sobretaxando bens de consumo e incluindo salários cada vez menores no teto do imposto de renda. Entenda
Edição: Alexandre Versignassi
O Brasil tem um PIB do tipo “Pague 3, Leve 2”: de tudo que o País produz, o governo toma 36%. Muito? Depende. É bem mais que a média latino-americana, de 22,2%, mas igualzinho à média da OCDE – clube de 34 países ricos, democráticos e de livre mercado. E bem menos do que a recordista Dinamarca, que arrecada 48% de seu PIB.
Se não são os maiores do mundo, os impostos brasileiros estão entre os mais injustos. Nossa arrecadação é uma espécie de Robin Hood ao contrário, pois cobra mais de pobres e da classe média e menos de ricos. E faz isso de forma marota, em impostos ocultos. Expliquemos.
Há dois tipos de impostos: os diretos e os indiretos. Os primeiros são aqueles que incidem diretamente sobre o que ganhamos e o que possuímos – caso do imposto de renda, do IPVA, do IPTU. O lado bom dele é que quem paga mais é quem ganha mais. Por isso, são chamados impostos “progressivos”. O lado ruim – ao menos para o governo – é que o contribuinte sabe perfeitamente quanto paga quando recebe os boletos ou faz a declaração anual. E ninguém gosta de ver a sua renda ser levada embora.
Já os impostos indiretos são aqueles escondidos no preço das coisas que você consome. Caso do ICMS, do ISS, do IPI… “Quando você paga uma conta, não sabe o que é o custo da mercadoria, o que é lucro e o que é imposto. Assim é mais fácil arrecadar”, diz a economista Melina Rocha, da FGV-RJ. Um em cada quatro brasileiros não sabe que há impostos embutidos nas suas compras, segundo uma pesquisa da Fecomércio do Rio. Não faz a menor ideia, por exemplo, de que 38,53% do preço da calça jeans e 46,12% da fatura de TV por assinatura são impostos. Em suma, é como se o governo surrupiasse discretamente sua carteira, já que a ignorância ajuda a TV de led com preço inflado a se transformar em mais imposto para o Estado.
Não é normal que um país cobre tanto imposto furtivo. Dos 36% do PIB que a tributação brasileira come, 18,8% são de impostos sobre mercadorias e serviços – justamente os impostos invisíveis. Isso é mais do que em qualquer país da OCDE. Até a Dinamarca, que cobra impostos com uma dureza feudal, enfia menos a faca: 15,3%.
Bom, com os impostos indiretos, o governo pode tributar 100% das pessoas sem que elas tenham consciência disso. Um negocião. Só tem um problema: impostos indiretos derrubam vendas, cortam lucros e pesam mais exatamente sobre quem tem menos dinheiro. Por isso, inclusive, os impostos indiretos são conhecidos como “regressivos”. É que, quanto menos uma família ganha, maior será a parte de sua renda gasta com consumo.
Uma empregada doméstica e um porteiro casados e com dois filhos provavelmente gastarão quase todo o salário com moradia, alimentação, roupa, transporte e saúde. A maior parte da renda, então, será tributada com impostos indiretos. Já um executivo ou um empresário com os bolsos recheados consome só uma fatia de sua renda e investe o resto. Se ele consumir 20%, os impostos indiretos não vão incidir sobre os outros 80%.
Brasileiros, todos sabemos, são exímios sacoleiros, treinados nessa arte desde os tempos do videocassete paraguaio. Uma das razões do boom recente da sacolagem era o real supervalorizado – essa ficou no passado. Outra permanece firme. Nos EUA, os impostos indiretos comem apenas 4,4% do PIB, contra 18,8% no Brasil.
Esses tributos baixos, porém, não fazem dos EUA um paraíso fiscal. Pelo contrário. A diferença é que, lá, os impostos caem pesado não sobre consumo, mas sobre renda e patrimônio. Enquanto os impostos diretos representam apenas 7,8% do PIB no Brasil, nos EUA são 14,6%. Ou seja: pobre, que não tem patrimônio, paga menos. Rico, mais.
Até quando morre, o americano endinheirado paga: 40% sobre sua herança, contra 8% no Brasil. A “taxa da morte” – como é apelidada por detratores – é tão grande que bilionários como Bill Gates, George Soros e Warren Buffet abrem fundações filantrópicas e doam para universidades, museus e projetos de governança e desenvolvimento em países em desenvolvimento. De outra forma, eles teriam que deixar o Estado decidir o destino de quase metade dos bilhões deles quando não estivessem mais entre nós.
A diferença entre EUA e Brasil fica ainda maior quando se comparam as faixas de renda sobre as quais o imposto incide. Nos EUA, elas começam em 10% e vão aumentando gradativamente até chegar a 39,6%, para que ganhe mais de US$ 413 mil por ano (US$ 34 mil por mês). Assim, ricaços pagam muito mais do que a classe média.
Já no Brasil, o teto é muito menor: apenas 27,5%, e já vale para quem ganha a partir de R$ 4.463,81. Ou seja, uma família de classe C (R$ 3.152 a R$ 7.880) pode atingir a mesma faixa de imposto de renda de um Jorge Paulo Lemann.
Mais injusto, impossível, certo? Não. Sempre há espaço para mais nas sutilezas da tributação brasileira. A maior das malandragens da Receita Federal está num detalhe que geralmente passa despercebido. Todo ano, o nível geral dos preços aumenta. É a inflação. Alta ou baixa, ela nunca deixa de existir – seja no Brasil, seja em praticamente qualquer outro país.
Para não perder o poder de compra, trabalhadores negociam aumentos de salário todo ano. Teoricamente, as faixas da tabela do imposto de renda deveriam acompanhar esses reajustes. É que R$ 4,4 mil de hoje valem menos que 4,4 mil de ontem, então deixa de ser justo que esse valor estabeleça o limite entre quem paga o teto do imposto e quem não paga. A Receita até faz esses reajustes. Mas sempre com um truque: acerta a tabela numa proporção muito menor do que a inflação. Assim, aquele que antes era pobre demais para pagar 27,5% de imposto pode passar a contribuir no teto sem ter aumentado sua renda real. E o governo ganha mais.
O Dieese calcula que, se corrigíssemos a tabela de 1996 pela inflação, a faixa dos 27,5% deveria começar só nos R$ 7.332,02, contra os atuais R$ 4.463,81, que, por sua vez, deveria estar na faixa dos 15%.
É isso. E mesmo assim o nosso governo está de pires na mão, sem condições de fechar as próprias contas. A grande solução que encontram? Pois é: tascar mais um imposto, ressuscitando a CPMF em 2016. Vai funcionar? Ninguém sabe. Certeza mesmo, só uma: todos ficaremos um pouco mais pobres.
Leia mais:
Como os bancos se dão bem
Como o comércio se dá bem