Quem já teve dengue pode dar falso positivo para covid-19 no teste de farmácia?
O mais provável é que não: o único estudo sobre o assunto analisou apenas 13 amostras de sangue e não passou por revisão. Ou seja: não dá para confiar.
Um estudo liderado por pesquisadores do Conselho de Pesquisa Científica e Industrial (CSIR), na Índia, indicou que os testes rápidos, de farmácia, podem dar falso positivo para covid-19 em pessoas que já tiveram dengue. A doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypt registra 390 milhões de casos e 25 mil mortes em 129 países todos os anos. Ou seja: o número de infectados e curados é altíssimo, o que supostamente causaria uma grave distorção na contagem de vítimas do coronavírus.
Felizmente, não há com que se preocupar. Em primeiro lugar, porque o estudo – que você pode acessar aqui – está em estágio de pre print, ou seja: é um texto que veio direto das mãos dos autores. Ele ainda não foi publicado em um periódico especializado, com alguma credibilidade. Antes de ser publicado – caso alguém opte por publicá-lo –, ele será submetido a um processo conhecido como revisão por pares, em que outros pesquisadores da mesma área passam um pente fino no método e nas conclusões para garantir que está tudo certo.
A prática de divulgação dos pre prints tem defensores por facilitar o diálogo entre cientistas – principalmente em situações de emergência como a pandemia, em que o acesso aos resultados de estudos fresquinhos pode mudar o rumo do combate à covid-19 (o paywall de editoras especializadas como a Elsevier é muito mais caro que a assinatura de um jornal ou revista comuns, e os estudos demoram um bocado para entrar no ar).
Mas o hábito tem seus defeitos, é claro. Como os artigos entram no ar sem revisão, conclusões baseadas em erros, ma-fé ou mera preguiça podem cair nas mãos de jornalistas e divulgadores científicos e se espalhar em forma de fake news antes de passar pelo melhor filtro possível, que é o olhar clínico de outros pesquisadores da mesma área. Na dúvida, é mais recomendável esperar a publicação oficial do que dar uma espiada do manuscrito – e então alardear como certeza algo que não está confirmado.
“Os pre prints que trazem alguma potencial mudança nos tratamentos, eu entendo”, diz Maurício Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. “Agora, um pre print que não diz nada que seja urgente, que apareça sem revisão e críticas, normalmente leva ao erro. Se torna uma peça de propaganda. Houve um grande número de manchetes nos últimos meses derivadas de pre prints com conclusões equivocadas.”
De fato, o estudo que associa dengue e covid-19 está repleto de fraquezas. A principal delas é o tamanho da amostra. Os testes foram realizados com apenas 13 coletas de sangue – um número muito inferior ao necessário para que as conclusões tenham qualquer significado estatístico sólido. Desses 13 testes realizados, 5 confundiram dengue com coronavírus.
Ou seja: por enquanto, então, estamos diante de “um pre print incipiente, preliminar”, diz a microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência. “Eles não controlaram muitas variáveis.” Porém, caso algum estudo posterior e mais criterioso revelasse uma relação entre anticorpos contra a dengue e falsos positivos, seria o caso de se preocupar com a contagem oficial.
O problema é o seguinte: no mundo ideal, um caso de covid-19 só deveria entrar na conta do Ministério da Saúde depois de comprovado pelo exame laboratorial PCR, que é bem preciso. O PCR detecta a presença do vírus no corpo do paciente por meio de seu material genético (mesmo que o vírus já esteja “rendido” pelos anticorpos). Os testes de farmácia, por sua vez, detectam apenas os anticorpos que nosso sistema imunológico produz para combater o vírus, e não o vírus em si.
Mesmo assim, 15% dos casos de coronavírus no estado de São Paulo – de acordo com o próprio governo – foram confirmados por meio dos anticorpos. Não são apenas os testes de farmácia que analisam a presença de anticorpos, é bom deixar claro. Existem versões laboratoriais desses exames, que são bem mais confiáveis (você pode entendê-las melhor neste texto). Porém, na hora de gerar dados oficiais, a solução é ficar apenas com o PCR. Só ele é capaz de cravar o diagnóstico – misturar testes com graus diferentes de confiabilidade gera uma confusão difícil de desfazer.
Entre as entidades que já se posicionaram contra o uso dos testes de farmácia estão a Associação Brasileira de Biomedicina (ABBM), Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed), Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC), Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas (ABCF) e Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML).