Por que a trilha sonora do Super Mario Bros. é coisa de gênio
E o que a música dos primeiros videogames pode te ensinar sobre criatividade
Eu sei que não é legal reclamar de barriga cheia, mas ter opções demais é desesperador. Quem come em restaurante por quilo sabe que é difícil montar o prato quando cada decisão que você toma tem quatro ou cinco alternativas que soam e cheiram igualmente boas. Às vezes, é mais fácil só pedir arroz, feijão e bife.
Isso também vale para o design e a arte. Limitação criativa é uma ideia tão importante que mereceu até um artigo muito modesto na Wikipedia. Quando eu fiz um curso de tipografia há alguns anos, meu primeiro exercício foi montar um cartaz para uma peça de teatro usando só a fonte Helvética, tamanho 12, em uma folha de papel A4 branca. Com recursos tão limitados, você passa mais tempo procurando soluções e menos tempo pensando na morte da bezerra – a receita perfeita para ter sacadas boas.
Se você é um nerd de mais de 30 anos – ou um nerd mais novo que gosta de tecnologia pré-histórica –, então seu gosto musical foi moldado por uma limitação criativa típica da década de 1980. O nome dela é chip. Quando o japonês Koji Kondo compôs a trilha do Super Mario Bros., em 1985, a música precisava rodar no lendário NES – esse console aqui, com cartucho (do tipo que você assopra) e controle retangular. Não é brincadeira: o hardware da época só dava conta de reproduzir três notas ao mesmo tempo. Três canais de som. Um quarto canal podia tocar ruído branco. Um barulho aleatório, que não transmite sensação de altura e nessa situação servia de percussão.
(Quem manja do assunto vai perceber que eu omiti a existência do quinto canal, mas esse servia para samples, e eu não quero complicar o texto. Esse vídeo aqui explica bem para quem curte detalhes).
Se você não toca nenhum instrumento, é difícil ter uma noção do quanto isso é pouco. Qualquer iniciante, quando toca o primeiro acorde no violão, está tocando seis notas ao mesmo tempo. Um pianista, em teoria, pode tocar dez notas ao mesmo tempo – uma para cada dedo. Quem toca sanfona pode acionar três notas numa tacada só usando os botões da mão esquerda.
É óbvio que você não precisa de tudo isso para compor uma ótima peça – Muitos trabalhos de Bach, por exemplo, tem só duas vozes. Duas melodias sobrepostas: uma tocada com a mão esquerda, outra com a direita. Para dar um exemplo extremo, qualquer peça solo para flauta tem uma melodia só, pelo motivo muito simples de que flautas não tocam mais de uma nota simultaneamente.
Mas acontece que flautas e pianos são instrumentos musicais de verdade. Eles tem expressão e sutileza. Cada nota que você toca no piano carrega junto um mar de harmônicos que agrada o seu ouvido, e gera um gráfico de onda extremamente complexo. Os sons fornecidos pelo NES, por outro lado, são… bem, toscos. Os dois primeiros canais, que em geral eram responsáveis pela melodia, só podiam reproduzir ondas quadradas. Uma onda quadrada é quadrada mesmo. Dá uma olhada no GIF (que veio deste ótimo texto sobre o assunto):
Ela é assim porque é produzida pela corrente mais simples possível. Liga a energia, desliga a energia, muito rápido. O mais próximo de uma escolha que o compositor tinha era mudar a largura do quadrado (ou seja, mudar o tempo que a energia passava ligada em cada ciclo). Ele podia escolher entre quadrados de 12,5%, 25% e 50% do comprimento da onda. Essas alterações mudavam sutilmente o timbre, deixando-o mais cheio ou mais oco. O terceiro canal, que em geral era usado para as notas mais graves da música, usava ondas triangulares, que soam menos estridentes e fazem as vezes de baixo. E o canal de ruído branco, bem… ele produzia ruído, e ruído não tem comprimento de onda definido.
Moral da história: Koji Kondo compôs uma das peças mais reconhecidas e grudentas da história da cultura popular bit por bit, usando tecnologia equivalente à de um tecladinho de brinquedo da Barbie – um gênero que ganhou o apelido de “chiptunes”. Os chiptunes beberam de fontes como o synthpop – Kraftwerk, Depeche Mode e Eurythmics –, e inspiraram a música dos anos 2000. Kesha, Snoop Dogg e Eminem tem músicas “8 bit”, que não existiriam sem Mário e seus contemporâneos Zelda e Donkey Kong.
Nas mãos certas, até ondas quadradas podem ser revolucionárias.
P.S. Tem um documentário sensacional sobre música de videogame, divido em episódios de meia hora e disponível no YouTube. Vale a pena dar uma chance.