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Crianças criadas em cativeiro na Uganda sentem falta da guerra

Para os filhos de mulheres sequestradas por terroristas, o conflito era melhor do que o preconceito que eles enfrentam em tempos de paz.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2024, 15h17 - Publicado em 11 abr 2017, 17h40

Para os filhos de mulheres sequestradas por terroristas, o conflito era melhor do que o preconceito que eles enfrentam em tempos de paz.

Em Uganda, filhos de mães sequestradas e estupradas por membros do grupo cristão fundamentalista Exército de Resistência do Senhor (LRA, na sigla em inglês) afirmam que preferem viver em guerra do que em paz.

Essa inversão assustadora tem raízes profundas. Na última década, a violência em Uganda diminuiu e muitos prisioneiros foram libertados – entre eles, os nascidos de estupros durante o conflito. Mas a paz não trouxe alívio: essas crianças dizem preferir a vida em cativeiro, com seus sequestradores. No lugar dela, veio a privação material, o preconceito e a marginalização.

Essa revelação é resultado de uma pesquisa que uniu os esforços de Myriam Denov, da Universidade McGill, no Canadá – cientista social especialista na participação de crianças em conflitos armados –, e Atim Angela Lakor, do coletivo Watye Ki Gen, que recebe e apoia mulheres que foram vítimas de violência sexual durante o conflito. Lakor intermediou o contato da canadense com os filhos de mulheres estupradas no período de insurgência.

Os 60 voluntários mirins tinham entre 12 e 19 anos no momento da entrevista. Todos nasceram em cativeiro após casamentos forçados entre suas mães e membros da cúpula do grupo de guerrilha. A LRA busca transformar Uganda em uma espécie de teocracia baseada nos dez mandamentos e no culto de Joseph Kony, seu líder. Desde 1987, ano de sua criação, a LRA – sediada no norte do país, na fronteira com o Sudão do Sul – é responsável pelo sequestro, estupro e assassinato de dezenas de milhares de civis.

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“O fato de que crianças e jovens consideram seu período em cativeiro – quando violência, fome, privação e terror estavam no auge – como melhor que a vida em tempos de paz é desconcertante”, afirmou Denov à SUPER. “Isso demonstra o quanto elas estão conscientes sua própria marginalização no pós-guerra.”

Segundo as próprias crianças, os pais da seita cristã assumiam grande responsabilidade sobre a criação e proteção dos filhos de casamentos forçados, e os bebês oriundos dessas relações eram vistos como símbolo de ascenção social. “Essa parece ser uma característica exclusiva da LRA”, conta a pesquisadora. “As mães afirmaram que crianças eram muito valorizadas pela facção, e consideradas a próxima geração de guerreiros.” Por outro lado, após a libertação, as famílias das mulheres sequestradas não recebem bem seus filhos – acreditam que são “rebeldes” de nascença, e se tornarão tão violentos e cruéis como foram seus pais.

“O jeito como éramos tratados por nossos pais era melhor do que é hoje. Nós não éramos insultados como hoje somos em casa”, contou uma das crianças às pesquisadoras. As falas transcritas aqui ou foram fornecidas por Denov ou estão disponíveis no artigo científico. “Tínhamos mãe e pai, e também tínhamos roupas para vestir. Nossas roupas, hoje, não são tão legais. Aqui, não conseguimos nem comer em paz sem que nossa avó reclame sobre como nos alimentar se tornou um fardo.”

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É bom reforçar que a vida de refém não era, se pensarmos com critérios objetivos, realmente melhor que a liberdade no pós-guerra. Na época da guerra a maior parte das crianças ainda era pequena demais para entender a relação entre seus pais. Mesmo assim, muitas já queriam saber porque suas mães eram surradas e violentadas com frequência. “Eu perguntei para ela quando nós ainda estávamos no mato: ‘mãe, essa é a nossa casa?’ E ela respondeu, ‘não, não é a nossa casa’. Eu perguntei isso porque a via ser espancada várias vezes. E aí eu queria saber: ‘mas nós não temos uma casa? Quem são essas pessoas?'”

Os relatos de violência são chocantes. “A vida no mato era insuportável”, afirmou uma criança às pesquisadoras. “Os rebeldes e o governo estavam sempre lutando. Às vezes só tinha água e as gente dormia de estômago vazio, às vezes nós bebíamos urina. (…) Eu levei tiros de soldados do governo, e fiquei com fome por uma semana. Minha mãe me disse que eu ia morrer”.

Por isso, a conclusão dos pesquisadores é que a percepção dos entrevistados é, em grande parte, subjetiva. O preconceito que eles sofrem agora e a dificuldade de pagar as contas no final do mês parecem falar mais alto do que as traumáticas experiências de violência do passado, que o tempo já começa a atenuar.

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Em um país de economia fraca e dependente da agricultura, não ter uma pequena propriedade para herdar do pai ou padrasto pode ser o ponto final na vida de um jovem, que não terá com que trabalhar ou para onde ir.

Para combater o preconceito com os filhos de fundamentalistas, o caminho é a conscientização. Mas o desafio é maior do que parece. Várias das crianças e adolescentes com que Myriam conversou já haviam participado de um programa de entrevistas em uma rádio local para contar como é a vida em cativeiro e o preconceito que enfrentam ao tentar voltar à vida civil em tempos pacíficos. “Eles acreditam que educar a população é essencial, tanto sobre o que eles são – pessoas boas, trabalhadoras e gentis – quanto sobre o que eles não são: rebeldes perigosos”, explica a pesquisadora. Para as crianças, criar leis que combatam a discriminação só darão certo se acompanhadas desse tipo de medida educativa.

Como lição, fica o óbvio: o fim de um conflito armado por si só não basta para a recuperação de um país. A reinserção das vítimas em uma sociedade pacífica depende de campanhas de conscientização , acompanhamento psicológico e incentivo econômico – necessidades distantes da realidade da África Subsaariana.

“Esses jovens vivem com memórias de violência e abuso. No pós-guerra, porém, eles estão preocupados com o aqui e agora”, conclui a pesquisadora. “Eles querem apoio financeiro e programas sociais duradouros para si mesmos e suas famílias. Eles querem ter dinheiro para pagar a escola, e querem ser respeitados e tratados com dignidade – e nesse momento, essa é a maior preocupação.”

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