O novo nome do Minhocão e as outras ditaduras da história do Brasil
A origem sangrenta do nome "Florianópolis"
No começo da década, quando um paulistano recebia algum amigo de fora, era raro incluir no roteiro turístico o Elevado Costa e Silva, a via expressa que mudou drasticamente a paisagem do entorno desde que foi inaugurada, em 1970, e que, por isso, motiva polêmicas entre urbanistas (sempre houve quem quisesse derrubá-lo ou até enchê-lo de árvores). Mas, de uns anos para cá, quando virou polo agregador de esportistas de fim de semana, blocos de Carnaval, ocupações urbanas, admiradores de catuaba e jardins verticais, o Elevado se tornou um lugar bem mais interessante em São Paulo.
Outra hipótese difícil de se imaginar naqueles tempos de Brasil potência era que o nome do Elevado mudaria. Porque a polêmica da obra não era questão só de concreto. Muita gente torcia o nariz por ela homenagear Artur da Costa e Silva, presidente do Brasil de 1967 a 1969. Hoje, não mais. Essa semana, a prefeitura de São Paulo sancionou a lei que retira o nome do promulgador do AI-5 e o troca pelo do presidente deposto pelo golpe de 1964. O Elevado Costa Silva agora é Elevado Presidente João Goulart. A medida faz parte de um projeto do governo da cidade que pretende mudar o nome de dezenas de logradouros batizados em honra de nomes ligados à ditadura militar.
Placas, mapas e documentos precisarão se atualizar, mas não a boca do povo. Porque, na prática, o anelídio sempre venceu a repressão. O nome daquilo foi e continua sendo o mesmo: Minhocão.
Certo, o Minhocão mudar de nome oficial não interfere tanto no cotidiano das pessoas que o usam para transporte, lazer ou apenas xingamento. Mas e em casos maiores? Não um logradouro, mas uma cidade inteira? E se o nome de uma capital fosse um incômodo para um grupo de pessoas por mais de 100 anos?
Foi o que aconteceu com Florianópolis.
Primeiramente, o Brasil não teve só um golpe. Em seus nem 200 anos de história de soberania, houve vários. A Proclamação da República, em 1889, foi um golpe de Estado que só se consolidou com outro golpe, ainda mais explícito. Em 1891, o vice, Marechal Floriano Peixoto, assumiu a presidência após a renúncia de Deodoro da Fonseca, apesar de a Constituição da época prever novas eleições se o presidente renunciasse com menos de dois anos de mandato. O mau e velho golpe na cara dura.
Floriano entrou para a história como Marechal de Ferro. Título que significa tanto “governo forte e centralizador” quanto “tiro, porrada e bomba em quem não concordar comigo”. A consolidação da república no Brasil não foi um processo pacífico e centralizado. O clima de ódio era tremendo, com fuzilamentos, prisões e exílios no país. Floriano assumiu esse papel de ditador que esmagou revoltosos para impor sua política. Demitiu governadores, rebaixou militares, censurou jornalistas, intimidou juízes. Uma elite saiu de cena, outra entrou no lugar, e o Brasil recém-republicano se tornou um país mais amordaçado que o da monarquia dos últimos anos de Pedro II.
A tensão no ar era tremenda. A ponto de, em 1893, Júlio de Castilhos vencer uma eleição fraudulenta para o cargo de presidente (antigo governador) do Rio Grande do Sul e as forças de oposição, lideradas por Silveira Martins e Gumercindo Saraiva, pegarem em armas. Uma guerra contra os apoiadores de Castilhos, que tinha Floriano ao seu lado, começou.
No mesmo ano, no Rio de Janeiro, o almirante Custódio José de Melo, ex-ministro da Marinha, se apoiou na simpatia de monarquistas e dos partidários de Deodoro para exigir que Floriano renunciasse – o que não ocorreu. Pois bem. A esquadra de Custódio bombardeou a capital federal. Depois, uma força-tarefa rumou para o Sul para se juntar a Martins e Saraiva. O evento na capital federal ficou conhecido como Revolta da Armada. O do Sul, Revolução Federalista.
A revolução se espalhou pelos três estados sulistas. Desterro, capital de Santa Catarina, transformou-se na sede dessa república. Um governo provisório foi instalado e se declarou independente enquanto Floriano não deixasse o poder. A ilha tinha posição estratégica, um porto protegido e ficava próxima dos conflitos na região. Além disso, o governo local era contrário a Floriano. Foi para lá que o encouraçado Aquidaban, melhor embarcação da Marinha brasileira, se dirigiu, escapando do fogo das tropas do governo na Baía de Guanabara.
A intenção de unir a Armada e os federalistas, porém, não deu muito certo. Eram positivistas, militaristas, monarquistas, republicanos que perderam o poder, federalistas que tinham pouco em comum além da oposição a Floriano Peixoto. Na falta de unidade ideológica, o conflito de interesses ganhou espaço. Era uma guerra perdida.
Em 16 de abril de 1894, o Aquidaban foi inutilizado. As tropas federais tomaram Desterro e o conflito (o terceiro da história mundial a usar torpedos) acabou. Em 19 de abril, o coronel Moreira César, braço direito de Floriano, chegou à cidade para o ajuste de contas.
Moreira César assumiu o governo militar de Santa Catarina e se ancorou no clima de vingança dos republicanos locais para caçar os vencidos. Saques, tortura, estupros e incêndios se seguiram. Uma violência brutal que se tornou característica da Revolução Federalista. No ano anterior, um jornal americano noticiou o seguinte massacre em uma fazenda de Rio Negro, a 20 quilômetros de Bagé:
“Contei duas centenas de cadáveres de homens degolados e duas mulheres mortas a tiros. Alguns cadáveres apodrecem, juntamente com cavalos destripados, sob o sol abrasador. Outros são comidos por bandos de cães e corvos. Vi alguns crânios dispersos pela terra. Todos os cadáveres, ou o que resta deles, jazem completamente nus (…) Um vento seco levanta a poeira, mas não consegue dissipar o odor gordo e mole de carniça que flutua em toda parte, impregnando as pessoas e as coisas. Tudo tresanda a morte e podridão, provocando uma náusea desesperadora.”
Ou seja, Moreira César ganharia o apelido de corta-cabeças, mas sua crueldade não reinava sozinha, como o relato do jornalista Ambrose Bierce, citado no livro 1889, de Laurentino Gomes, deixa bem claro. Ambos os lados em luta praticaram degolas no Rio Grande do Sul e também no Paraná.
Mas o golpe final na revolução veio da Assembleia Provincial, que aproveitou um incômodo que existia com o nome da cidade e decidiu mudá-lo de vez. Várias denominações surgiram na pauta, mas a que venceu foi “Florianópolis”.
A troca de “Desterro” para “Florianópolis” não foi imposição direta de Floriano nem de Moreira César, mas uma decisão da elite política local, que pode ter sido motivada por mera bajulação, medo, necessidade de acalmar o clima de vendeta ou tudo isso misturado. Mas, por sadismo ou não, a capital daquela autodeclarada república rebelde foi rebatizada em homenagem ao ditador em cujo nome uma série de massacres foi cometida – dentro de um dos conflitos mais sanguinários da história brasileira, que deixou cerca de 10 mil mortos.
Moreira César morreria em 1897, derrotado em Canudos. Ele batizou um distrito de sua Pindamonhangaba natal, no Vale do Paraíba paulista. O alagoano Floriano Peixoto ainda virou outra cidade, nos arredores de Erechim (RS), e também deu nome a um distrito de Barra Mansa (onde ele morreu, em 1895) próximo a Resende, no Vale do Paraíba fluminense. Quanto à capital de Santa Catarina, ainda hoje há quem defenda a mudança de nome.
Rebatismos como o do Minhocão nos fazem pensar. Medidas do tipo sempre envolvem interesses políticos, econômicos e sociais e refletem um período da história de uma cidade ou de um país. Ninguém vira placa na esquina à toa.
Na próxima vez, melhor dar nome de invertebrados para tudo.