Ronald Fisher: o racista que fundou a biologia e a estatística modernas
Ele foi um dos maiores defensores do horror da eugenia, mas sua obra é uma pedra fundamental da ciência do século 20. Entenda esse legado ambíguo.
Nos idos de 1900, a hipótese da seleção natural de Darwin e as descobertas de Mendel sobre genética pareciam contraditórias e impossíveis de se conciliar.
Darwin descobriu que um traço benéfico se espalha por uma população porque os seres vivos que possuem esse traço são capazes de sobreviver por mais tempo e se reproduzir com mais eficiência.
Enquanto isso, Mendel percebeu que existem traços dominantes e recessivos, e que os recessivos podem se manifestar apenas quando os dominantes não estão lá.
Há dois problemas aí. O primeiro: se as características são binárias – ou a ovelha é branca, ou a ovelha é preta –, então como explicar que certos traços evoluem gradualmente? (É óbvio que o pescoço da girafa não cresceu todo de uma vez, e sim um pouquinho a cada geração.)
O segundo: o que fazer se um traço recessivo é o melhor para a sobrevivência dos seres vivos? Como ele poderia vencer a prevalência dos traços dominantes e se espalhar?
Já que Darwin e Mendel não se encontraram em vida, foi necessário um montão de cupidos para uní-los na morte. Vários biólogos do começo do século 20 trabalharam em experimentos e equações que permitiram conciliar o trabalho dos dois e chegar à versão atual da teoria da evolução, conhecida como síntese moderna. Ronald Aylmer Fisher (conhecido como R.A. Fisher) foi um deles.
A vida e os preconceitos de Fisher
Ele nasceu em Londres em 1890. Seu pai, rico, era sócio de uma corretora que leiloava obras de arte – e vivia das gordas comissões resultantes.
O exótico nome do meio tem um “y” por superstição da mãe: o único filho batizado sem a letra morreu ao nascer. Fisher tinha uma doença degenerativa congênita que afeta os olhos; aos poucos, tornou-se quase cego. Assim, foi recusado no serviço militar: recebeu nota A1 em todas as avaliações de aptidão, menos na de visão, que lhe rendeu um humilhante C5.
É curioso que uma pessoa extremamente inteligente com problemas hereditários fosse favorável à higienização genética, mas Fisher foi entusiasta da eugenia – uma mancha que preservou em seu currículo com orgulho mesmo após a 2ª Guerra Mundial.
Em 1950, ele se opôs abertamente a uma declaração da Unesco contra o racismo (intitulada “A questão da raça”), ratificada por cientistas peso-pesado para botar rédeas na ciência após o horror do Nazismo. A biografia de Fisher permanece manchada por esse e outros episódios.
Por outro lado, é importante entender que ele não estava sozinho nessa: grande parte dos biólogos do entreguerras era favorável à eugenia em algum grau, e ela era considerada um consenso científico.
A ideia era que seria possível melhorar o pool genético da humanidade incentivando a reprodução seres humanos supostamente superiores (leia-se: pessoas brancas europeias ricas sem problemas congênitos).
Enquanto, os governos faziam a esterilização forçada de pobres, alcoólatras e pessoas com deficiências físicas ou mentais – bem como, em muitos casos, de pessoas consideradas de raças inferiores. Entenda melhor esse capítulo sombrio da ciência nesta reportagem.
Nerd até o caroço
É impossível separar a história da eugenia da genialidade de Fisher. Em seu esforço para analisar populações de seres vivos de uma perspectiva matemática, ele acabou se tornando o personagem mais importante da história da estatística.
Hoje, seria impossível rodar um instituto como o IBGE ou uma empresa de pesquisa de opinião pública como o Datafolha sem usar as mais de vinte contribuições de Fisher à área: hipótese nula, teste exato de Fisher, inferência fiducial, correlação intraclasse etc.
Fisher era tão bom em ter ideias geniais quanto era ruim em expressá-las. William Gasset, um estatístico, resumiu bem sua experiência com os artigos científicos de seu colega: “quando eu chego em ‘é evidente que…’ eu já sei que vou precisar ralar por duas horas só para entender por quê tal coisa é evidente.”
De fato, Fisher superestimava a inteligência alheia com frequência. Certo dia, um de seus alunos reclamou com Alan Owen, também professor do departamento de genética de Cambridge, de uma questão dificílima que havia encontrado em uma prova.
Para surpresa do aluno, Owen disse que também achou a questão absurda, e quando perguntou a Fisher que espécie de resposta ele esperava que seus pupilos dessem, ele voltou dias depois com três páginas de álgebra rabiscadas em caligrafia bem pequena.
A contribuição de Fisher à biologia
Em um artigo de 1918, Fisher dá um passo central para resolver o dilema entre Darwin e genética propondo que uma única característica pode ser determinada por mais de um gene simultaneamente, e que isso gera gradientes sutis.
Expliquemos com um exemplo hipotético: se a altura depender da influência de três genes – cada um deles selecionado entre as duas opções disponíveis, uma fornecida pelo pai, uma pela mãe –, a prole contará com um total 27 possibilidades de altura. Suba para sete genes e teremos 343 desdobramentos combinatórios plausíveis.
Ou seja: mesmo que todas as pessoas do mundo fossem filhas só de Adão e Eva, tal casal ainda forneceria variação suficiente a seus filhos, de maneira que eles formariam uma curva contínua em um gráfico de altura, sem saltos bruscos.
Com esse twist matemático, diminuiu a distância entre Mendel e Darwin. Se uma característica é produto de muitos genes ao invés de um único, uma mutação em qualquer um dos genes envolvidos pode gerar mudanças pequenas na característica em vez de uma transformação drástica.
Hoje sabemos que traços físicos e comportamentais determinados por dois alelos, um recessivo e um dominante, são exceção, não regra. O mundo não funciona como nas aulas de biologia do ensino médio. Um mesmo gene pode atuar no fígado, no coração e no cérebro, e em cada órgão a proteína que ele produz participará de uma cadeia de reações bioquímicas única, com desdobramentos e objetivos diferentes.
Genes são como palavras, que podem ser reaproveitadas em dezenas de frases, e adquirir nuances e significados de acordo com o contexto. No livro The Ancestor’s Tale, Richard Dawkins usa uma metáfora imbatível para a atuação dos genes: as subrotinas de programação.
Imagine um software como o Photoshop. Ele é altamente especializado em sua função – que é manipular fotografias e ilustrações. Mas é possível desmontá-lo em componentes menores que, por si só, não próprios de um programa particular – como os menus drop down, as barras de rolagem ou as janelas que você pode minimizar e arrastar pela tela.
As linhas de código responsáveis por cada uma dessas tarefas-padrão são as mesmas usadas nos outros programas da Adobe, como o Illustrator, o InDesign etc. E é isso que explica, em grande parte, a semelhança e compatibilidade entre eles.
Nós sem dúvida temos genes específicos de nossa espécie – da mesma maneira que o Photoshop tem funções que não aparecem em nenhum outro software. Mas muitos dos nossos genes são subrotinas que também servem para construir camundongos, musaranhos e ornitorrincos.
Tanto seres vivos quando programas de computador apelam para um mesmo conjunto subrotinas pré-determinadas, que são acionadas em sequências e momentos diferentes para realizar tarefas diferentes. E é por isso que não faz sentido falar em um gene para quem trabalha em estaleiros: é a ativação orquestrada dos genes que faz de nós quem nós somos, muito mais do que os genes em si.
Quando o site Edge perguntou a Dawkins qual era o maior biólogo da história (depois de Darwin, é óbvio), ele deu o nome de Fisher. “Ele não foi só o mais original e construtivo dos arquitetos da síntese neodarwiniana, mas também foi o pai da estatística moderna (…) Ele deu a teóricos da biologia e medicina suas ferramentas mais importantes, assim como uma versão moderna do teorema central da biologia.”
Ronald Fisher simboliza, ao mesmo tempo, o melhor e o pior que a ciência pôde nos oferecer no século 20: as ideias que ele defendia mataram muita gente, mas seus insights explicaram a natureza a nossa volta e criaram uma parte importante do mundo como o conhecemos.
Qual é a maneira correta de lidar com um legado tão ambíguo? A verdade é que nem as próprias universidades e centros de pequisa sabem. Cabe a intituições centenárias como Oxford ou Cambridge repensar a maneira como honram esses heróis, sob a pressão necessária de estudantes e professores conscientes.
A mea culpa no presente, porém, não muda o passado. A ciência é cumulativa e é impossível fazer novas descobertas sem se apoiar nos ombros de pesquisadores que vieram antes – ainda que derrubemos suas estátuas.
Se os biológos e estatísticos de hoje não conseguem evitar Fisher, que pelo menos eles possam separar o personagem de sua obra – e usar essa obra para tornar o mundo um lugar melhor.