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Quanto pesa um quilo

A definição da unidade de massa mudou em 2019. Entenda como realmente funciona o sistema que regula os pesos e medidas.

Por Guilherme Eler
Atualizado em 21 set 2020, 14h16 - Publicado em 23 out 2018, 16h24

O quilograma já não vale mais um quilo. E isso ficou evidente ainda em 1992. Foi quando funcionários do Escritório Internacional de Pesos e Medidas (BIPM) concluíram a penúltima série de medições daquele que é considerado o modelo oficial de quilograma: um pedaço de platina de 3,9 centímetros, que está trancafiado em um cofre nos subúrbios de Paris desde o século 19.

Uma dúzia de tomates, o meteoro de Chicxulub, você e tudo mais que tenha átomos o bastante para ser pesado só possuem uma massa própria em quilogramas por causa dele. O Protótipo Internacional do Quilograma (IPK) ou Le Grand K, como gostam de chamar os franceses, é a referência máxima para se estimar a massa de tudo que existe.

Medir um objeto em quilogramas nada mais é que compará-lo com essa amostra oficial. É como se, frente a uma balança capaz de pesar qualquer coisa, existissem infinitas réplicas originais do quilo. Para calcular a massa de um carro, por exemplo, bastaria equilibrar mil IPKs em um dos pratos. Voilá. A balança imóvel indica que o possante pesa uma tonelada.

Há, porém, um detalhe incômodo nisso: o quilograma francês ficou consideravelmente mais leve nos últimos anos.

A confecção de uma entidade física para definir o quilo remete à Revolução Francesa. Além de revirar as relações políticas na Europa, a mãe das revoluções emprestou seus ideais iluministas para inspirar a padronização universal das medidas. Em 1799, a França foi pioneira na adoção de um sistema assim. Entre outras definições, ele determinava o quilo como a massa de um decímetro cúbico de água líquida em sua densidade máxima, que corresponde à temperatura de 4°C. Mais tarde, essa relação seria incorporada também em outras partes do mundo.

Na 1ª Conferência Geral de Pesos e Medidas, em 1889, representantes de dezenas de países foram convencidos a substituir essa referência por outra, equivalente, só que mais precisa. Daí em diante, o papel de quilo oficial recaiu sobre um cilindro metálico do tamanho de uma bola de golfe. Feito de uma liga 90% platina e 10% irídio, era mais resistente à oxidação e deformação por variações de temperatura que amostras anteriores. Nascia, assim, o quilograma legítimo, que reina soberano desde então.

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(Guilherme Henrique/Superinteressante)

Desde que se tornou “O” quilograma, o precioso Le Grand K leva uma vida reclusa, em uma prisão de vidro guardada por três chaves. O isolamento serve para prevenir que algum desavisado estrague ou dê um sumiço na amostra.

É por isso que, de seu esconderijo subterrâneo na cidade francesa de Sèvres, onde está a sede do BIPM, o quilo não sai nem sob decreto presidencial. Ou melhor, quase não sai. De tempos em tempos, o cilindro metálico passa por uma bateria de calibragens e higienização, que investiga se a amostra permanece valendo o mesmo desde quando foi feita, em 1880. Todo o processo é muito sensível e, por isso, performado por funcionários altamente treinados.

“Apenas encostar com as mãos sem proteção já pode alterar significativamente a massa do protótipo”, diz Rodrigo da Costa Félix, chefe do Laboratório de Ultrassom do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Metrologia (SBM). “A exatidão esperada para o quilograma é de 50 ppb (partes por bilhão), ou seja, cerca de 50 milionésimos de grama. Uma fina camada de gordura já tem essa massa.”

Em uma dessas medições, conduzidas entre 1988 e 1992, a discrepância de 50 microgramas se acusou pela primeira vez. Ao ser comparado a suas seis cópias mais fiéis, que também estão guardadas na sede do BIPM, detectou-se que o quilograma havia emagrecido esse total nos últimos cem anos. O único objeto no mundo que não pode variar de forma alguma estava com uma massa 0,00005% menor – e contando.

O porquê do quilo oficial ter evaporado parte de sua massa é incerto até hoje. As teses mais aceitas especulam sobre problemas na conservação: mesmo guardada sob três cúpulas de vidro e o tempo todo sob temperatura controlada, teria perdido átomos para o ar.

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Tudo fica ainda mais nebuloso se olharmos para a última vez que o objeto foi calibrado, nos idos de 2014. Entre as pesagens de 1992 e 2014 a variação no IPK foi de apenas 10 microgramas, contra aqueles 50 entre 1988 e 1992. Para o Escritório Internacional de Pesos e Medidas, o fato da variação não ter sido proporcional nos dois períodos é mais um da lista de mistérios envolvendo o quilograma.

Mas, afinal, que diferença poderia fazer uma alteração da ordem de microgramas? A rigor, é como se você resolvesse passar na farmácia para enfrentar a balança e ela não acusasse o grãozinho de areia que ficou preso nos sapatos.

A verdade é que a ciência é completamente avessa a imprecisões do tipo – e costuma usar balanças bem mais precisas que as que você encontra na farmácia. Para setores como a pesquisa nas áreas farmacêutica e de eletrônicos, que trabalham na casa dos nanogramas (10-9 g), a falta de precisão pode trazer problemas.

É tão importante ter rigor nas medições e unidades de medida que há um ramo específico da ciência para cuidar disso: a metrologia. E metrologistas de todo o mundo, unidos, resolveram não mais assistir ao quilo original perder massa de braços cruzados.

A 26ª Conferência Geral de Pesos e Medidas, que acontece entre 13 e 16 de novembro de 2018, deve oficializar uma definição de quilograma que começou a ser pensada em 2005. Após as conferências de 2011 e 2014 pavimentarem o caminho, amparadas por medições cada vez mais precisas, foi possível cravar uma data para a mudança. A partir de 20 de maio de 2019, o Dia Mundial da Metrologia, a unidade de massa deverá ser calculada a partir da Constante de Planck (falaremos mais sobre ela adiante, guenta aí).

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Dessa forma, o quilograma oficial terá o mesmo destino do metro. Antes de ser definido, em 1983, como a distância que a velocidade da luz percorre no vácuo em 1/299,792,458 de segundo, valor que é constante e pode ser medido em qualquer laboratório minimamente equipado, a unidade de medida para distâncias era uma barra de metal feita de platina e irídio guardada em Paris.

O objeto em questão era ideia da Convenção do Metro, em 1875, evento que envolveu 17 países do mundo – incluindo o Brasil de D. Pedro 2º. Para criar o objeto que definia o primeiro metro, cientistas consideraram 10 milionésimos da distância exata entre o Polo Norte e a Linha do Equador, medida anos antes por astrônomos franceses.

Ter um referencial físico para o metro trazia tantos problemas quanto você possa imaginar. Para que os cidadãos de Paris não importunassem a sede do BIPM sempre que quisessem cortar um pedaço de tecido ou aferir o crescimento do filho, a solução foi instalar metros públicos em áreas movimentadas. Dezesseis placas de mármore fixadas em paredes, e construídas para ter exatamente um metro, eram acessíveis a qualquer parisiense em pontos estratégicos da capital francesa no final do século 18. A última placa que restou permanece no mesmo lugar até hoje.

Algo parecido aconteceu com a unidade fundamental de tempo, o segundo. Ele surgiu com a civilização suméria há pelo menos 3.500 anos (como fruto da divisão do dia em 24 horas, da hora em 60 minuto e do minutos em 60 segundos), mas foi reinterpretado no século 19. Em sua primeira formulação moderna, o segundo equivalia à 31,556,925.9747ª parte de um dia do ano 1900.

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O grande problema de uma definição que se orienta pela duração dos dias é que a rotação da Terra está perdendo velocidade. Desde sempre. Há 1,4 bilhão de anos, por exemplo, o dia tinha 18 horas. A perda na velocidade de rotação fez com que ela chegasse às atuais 24 horas. E a frenagem rotacional segue firme: a cada século, um dia fica 1,7 milésimo de segundo mais longo. Ter a unidade básica de segundo baseada no ano de 1900, então, significa olhar para ponteiros já defasados em quase 2 milésimos de segundo. Muita coisa em termos científicos.

Desde o final da década de 1960, no entanto, a unidade é calculada com a precisão de um relógio atômico: o tempo relativo a um segundo representa, grosso modo, 9.192.631.770 vibrações de um átomo de césio (sim, isso é plenamente mensurável).

Anos notáveis da metrologia

1799 – A França se torna o primeiro país a criar um sistema universal de medidas.

1875 – 17 países, incluindo o Brasil, assinam a Convenção do Metro. Barra de metal define unidade que mensura distâncias.

1889 – Acontece a 1ª Conferência Geral de Pesos e Medidas, que define o IPK como quilograma oficial.

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1960 – Metro, segundo, quilograma, mol, kelvin e ampère: são definidas as unidades fundamentais do SI.

2018 – Quilograma, mol, kelvin e ampère são redefinidos. É a maior mudança do SI desde sua criação.

Para 2018, quatro das sete unidades fundamentais do Sistema Internacional de Unidades (SI) passarão a operar de forma parecida, baseadas no valor fixo de constantes da natureza. Além do quilograma, que deixará de ser a única unidade do SI associada a um objeto físico, representantes de 57 países aprovarão a redefinição do ampère, (corrente elétrica) do mol (quantidade de substância) e do kelvin (temperatura). Completam a lista de unidades fundamentais o segundo (tempo), a candela (intensidade de luz) e o metro (distância), que não devem sofrer mudanças.

Elas são chamadas de unidades básicas porque, quando combinadas, dão origem a qualquer outra unidade prevista no SI. O quilo atual, por exemplo, serve para definir outras 20, caso da candela, do ampère e do mol, três que aparecem entre as fundamentais. No SI, há mais 17 unidades que seguem a mesma relação. O newton, por exemplo, é tido como a força necessária para a acelerar um quilograma a uma taxa de um metro por segundo a cada segundo. Uma força em newtons, por sua vez, serve de base para definir o pascal, que mede pressão, e por aí vai.

Como era e como vai ficar

Agora calculado pela Constante de Planck, o quilograma não vai mais influenciar o mol – que dependerá da Constante de Avogadro. O ampère se definirá pelo total de elétrons em certo ponto de um fio a cada segundo. Já o kelvin, pela Constante de Boltzmann, que relaciona temperatura à energia das moléculas.

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(Guilherme Henrique/Superinteressante)

Uma nova definição tornará o quilograma mais estável. Isso porque constantes físicas são universais e, como o próprio nome adianta, “constantes”. Sendo assim, não se alteram nunca, independentemente do que aconteça. Mesmo que algum dia o IPK se desintegre, o quilo continuará sendo o mesmo, não importa se medido aqui ou na Galáxia de Andrômeda. Amanhã ou daqui a um bilhão de anos.

A mudança deve resolver, assim, o problema da reprodutibilidade do quilo. “Eu posso definir o quilo como eu quiser. Posso dizer que ele equivale a 1 cm3 de matéria estelar que está lá em Andrômeda. Pronto, defini. Agora, quem irá até lá para buscar e comparar?”, explica Vanderlei Bagnato, diretor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP). Cientistas que não têm acesso à réplica de quilo ideal (em suma, todos os cientistas do planeta) poderão a partir de agora calculá-lo por conta própria. Tudo graças a um equipamento preciso, chamado balança de Kibble – ou balança de Watt.

A Constante de Planck, que determinará o quilo a partir de 2019, foi definida após medições em balanças do tipo, e é tida como o número mágico 6,62607004 × 10-34 m2 kg/s. Em português: essa grandeza representa a menor quantidade possível de energia que pode existir na natureza de acordo com as leis da física – uma descoberta que o alemão Max Planck, pai da física quântica, fez no ano de 1900.

Bom, energia e massa são duas faces da mesma moeda (“massa” é só uma quantidade brutal de energia concentrada, conforme Einstein descobriu). O quilo, então, passará a ser um múltiplo (gigantesco) da menor quantidade de energia possível – nossa amiga Constante de Planck.

Em outubro de 2018, o Inmetro aprovou o projeto para dar início à construção da primeira balança de Watt brasileira. “O alvo será uma balança com incerteza de cinco casas, ou seja, resolução de até 10 microgramas ao pesar algumas centenas de gramas”, explica Costa Félix. Enquanto não se adequam, os países têm um período de dez anos para seguirem se baseando em suas cópias oficiais. Quarenta países do mundo têm pelo menos uma dessas para chamar de sua.

Espera-se que a novidade seja incorporada de forma natural. E que quem não seja cientista nem se dê conta da troca, claro. “Diferente do que ocorreu na histórica Revolta do Quebra-Quilos entre 1872 e 1877, no nordeste brasileiro, desta vez, certamente não haverá confusão”, brinca Nelson Lage da Costa, pesquisador do Grupo de Pesquisa em História das Ciências e das Técnicas no Brasil da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

O episódio faz referência a uma insurreição popular contra mudanças no padrão de medidas do Brasil Colônia. Por ordem de D. Pedro 2º, o governante mais ligado em tecnologia que já tivemos, o País havia incorporado o Sistema Internacional. Revoltados pela obrigação de usar o sistema criado na França e esquecer medidas como a braça, a légua, a onça e o quintal, populares literalmente partiam para cima dos pesos e vasilhas de medição alugados pelos fiscais do Império. Para controlar os revoltados, foi preciso acionar as forças militares.

Por via das dúvidas, o melhor é manter a cópia número 66 do IPK, que desde 1983 fica na sede do Inmetro em Duque de Caxias (RJ). Como peça de museu, afinal, ela irá durar para sempre.

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