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O último grande traficante do Rio

Conheça a saga de Antônio Francisco Bonfim Lopes, o último líder do tráfico carioca antes da chegada das Unidades de Polícia Pacificadora, em dezembro de 2011

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h00 - Publicado em 27 jun 2016, 21h30

Um Corolla preto com três homens a bordo deixou a favela da Rocinha às pressas na noite de 10 de novembro de 2011. Logo na saída da comunidade, encravada entre São Conrado e Gávea, a 6 km do Leblon (bairro com o IPTU mais caro do Brasil), uma viatura policial abordou o carro. Um dos homens se apresentou como cônsul honorário da República Democrática do Congo (posição que o próprio governo congolês depois negou existir no Rio), outro como advogado e o terceiro, como funcionário do consulado do país africano. O suposto cônsul salvou o grupo todo: alegou imunidade diplomática e se negou a abrir o carro. Escaparam. 

Mas não chegariam muito longe dali. Seis quilômetros depois, na Lagoa Rodrigo de Freitas, próximo ao Clube Naval Piraquê, a desculpa não colou. Uma nova viatura abordou o trio. Como última cartada, um dos homens teria oferecido para os policiais R$ 30 mil para o veículo não ser revistado. A polícia, então, ordenou a abertura do porta-malas, onde encontraram um homem franzino, com 50 mil euros e R$ 55 mil. Era Nem, o último grande traficante da Rocinha.  

Aquela foi a última noite dele. Seu reinado como dono do morro mais lucrativo do Rio de Janeiro acabou ali. Só restou Antônio Francisco Bonfim Lopes, nome de batismo do homem cujo império no maior mercado de drogas da zona sul do Rio acelerou a instalação da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) na Rocinha, dois dias depois.

Subindo morro

Filho da teresopolense dona Irene e do cearense Gerardo, Antônio era o caçula da família (daí o apelido: Nem, de Neném). Nascido em 1976 na Rocinha – onde o cheiro de esgoto é constante e o emaranhado de fios de gatos de eletricidade torna difícil ver o céu – ele cresceu em um ambiente de privações típico das favelas brasileiras: “A comida era feijão e arroz, ou arroz e feijão”, lembrou Nem em entrevista a Misha Glenny, autor do livro O Dono do Morro, recém-publicado pela Cia. das Letras – a primeira edição foi lançada em 2015, em inglês, com o nome Nemesis: One man and the battle.

O maior desafio de Glenny, entretanto, era compreender como alguém que estudou até o primário, entrou para o tráfico tarde e não tinha personalidade forte ganhou tanto poder. Foram dez encontros entre março de 2013 e fevereiro de 2015 com Nem, sendo alguns marcados por momentos monossilábicos de “sim” ou “não”. “Mas como eu começava minhas entrevistas com questões detalhadas sobre sua infância, ele estava propenso a confiar um pouco mais em mim. Ao longo de sua vida, Nem foi entrevistado por dezenas de policiais, jornalistas e advogados, mas não creio que tenham perguntado sobre, por exemplo, a relação com sua mãe ou seu pai, que revelam muito sobre sua personalidade”, observa.

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Tal qual Walter White, do seriado Breaking Bad, foi a preocupação com a família que o levou ao tráfico. Reza a lenda que a doença rara de sua filha Eduarda, diagnosticada ainda bebê com histiocitose de células Langerhans (HCL, que atinge uma pessoa em 200 mil), o fez pedir para Lulu, chefão do tráfico no início dos anos 2000, R$ 20 mil para pagar o tratamento da doença sistêmica associada à proliferação de células malignas. Antônio entraria num caminho sem volta.

Dois anos depois, Nem já havia quitado a dívida. Mas era tarde para voltar atrás e abandonar o tráfico. Ele havia subido na ADA (Amigos dos Amigos), uma das maiores facções criminosas do Rio de Janeiro, e, então, comandava três bocas de fumo e 25 homens. 

Nem ganhou moral por ser organizado e não ter problemas com álcool e drogas. Mesmo quando Lulu morreu, em 2004, teve sangue frio para pedir a Bem-te-vi (chefe informal da parte baixa da Rocinha) que agisse com firmeza para manter a unidade entre as partes alta e baixa da favela. Mas, ao contrário de Nem, Bem-te-vi se perdia no alcoolismo. “O Bem-te-vi era extremamente alcoólatra, não conseguia ter o controle de tudo. Quem comandava mesmo já era o Nem”, lembra Marina Maggessi, ex-coordenadora de inteligência da Polícia Civil do Rio, por dois anos responsável pelas escutas dos grampos de Nem. “Se passasse das 20h e alguém precisasse do Bem-te-vi, ele falava: ‘Liga para o Nem’ porque ele já não tinha condições.”

Um ano depois, foi a vez de Bem-te-vi levar a pior em uma troca de tiros. Orlando Rodrigues, o Soul, assumiu o poder. Mas desapareceu no dia seguinte – acredita-se que Nem e um parceiro, o Joca, tenham feito uma chacina na favela. Assim, o controle do tráfico parou no colo de Nem. Na época, o entreposto era um dos negócios mais lucrativos: de acordo com a polícia, a comunidade era então controlada por um exército de 200 homens armados com rifles, responsáveis pela venda de 200 kg de cocaína boliviana por mês, o que rendia uma fortuna anual de R$ 100 milhões. Nem virou o lorde das drogas. 

A vida dele, então, mudou. Ergueu uma mansão de três andares no Laboriaux, bairro no topo da Rocinha, com piscina e vista para a orla, comprou ternos Armani, um estoque de uísque, champanhe e um macaco, o Chico-Bala – xodó que desapareceu e o levou a lançar uma recompensa de R$ 75 mil a quem o encontrasse. A ascensão no mundo do crime atraiu as autoridades, que ofereciam R$ 5 mil por informações sobre seu paradeiro. Ele sabia que ser pego ou morrer era então questão de tempo. 

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O império de Nem

Não era só a fortuna de Nem que chamava a atenção. Era a gestão eficiente dele. Com a demanda cada vez maior (o delivery para a zona sul não parava de crescer), ele decidiu investir. Fundou uma refinaria de cocaína, com capacidade para produzir meia tonelada da droga e abastecer 13 morros. Para o funcionamento do laboratório, Nem pagava R$ 40 para cada morador da comunidade comprar produtos de uso controlado que seriam utilizados. Quem trouxe a refinaria para a Rocinha foi Saulo, braço direito de Nem  
cuja família tinha conexões com Fernandinho Beira-Mar, chefe do Comando Vermelho ligado às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia.

Nem conseguiu, portanto, consolidar e impulsionar o principal mercado de drogas da zona sul carioca – que durante o seu reinado vendia de tudo, menos crack. Para manter isso, pagou um antigo membro do Bope para treinar os seus 15 seguranças pessoais, que passaram a utilizar uniformes semelhantes ao da tropa de elite ou da Polícia Civil. “Fizemos isso por causa dos helicópteros”, explicou Nem a Glenny. “Eles, às vezes, usam helicópteros para invadir a favela, e, se estivéssemos usando uniformes da polícia, não conseguiriam nos distinguir.”

Nem também conquistava os moradores da Rocinha, onde vivem mais de 100 mil pessoas. Distribuía 1,2 mil cestas básicas por mês, cuidava da segurança (a taxa de homicídio caiu dois terços, em comparação com seu antecessor) e matinha unida a comunidade: a alta, com barracos precários em vielas, e a baixa, com sobrados e prédios. 

“A Rocinha sob Nem teve uma das taxas de homicídios mais baixas do Rio. A favela era considerada mundo afora um lugar relativamente seguro e pacífico”, diz Glenny. O que é surpreendente, já que se trata do maior hub de distribuição de cocaína da cidade – estima-se que 60% da droga consumida no Rio seja distribuída a partir da favela da zona sul. “Ele era, de fato, presidente e primeiro-ministro da Rocinha. O Estado brasileiro e suas instituições desempenham um papel periférico no dia a dia da favela. Nem era mais importante.”

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Ainda assim, como toda facção criminosa, a gangue de Nem também derramou sangue. Só que eles apagavam muito bem seus rastros. De acordo com levantamento feito pelo jornal O Dia, a partir de registros em delegacias do Rio, o desaparecimento forçado era um dos principais mecanismos de Nem para exercer poder no território desde 2005. Segundo o jornal, um dos grupos dele foi apelidado de “Bonde do Picota”, pois tinha dentre suas funções matar, cortar, queimar e esconder os restos na mata.

Rogério de Moraes Rodrigues, um cabo do Corpo de Bombeiros, provavelmente parou nas mãos desse bonde. Ele saiu para trabalhar em 14 de abril de 2009 em Botafogo, saiu de lá com sua moto e teria seguido para o morro São Carlos, onde também trabalhava com mototáxi. De lá, teria pego uma corrida para a Rocinha, onde desapareceu. Em outro caso, Fábio Anselmo dos Santos, o Lucas do Gás, desapareceu depois de Nem receber uma gravação dele com um policial, dando informações sobre o tráfico.

 Muitas famílias se recusam a falar sobre o tema, enquanto outras sequer registraram os desaparecimentos.  A polícia, por sua vez, é acusada de não ter feito buscas a esses corpos nem mesmo ter realizado uma perícia na refinaria de drogas construída por Nem e Saulo, que explodiu em 2011 deixando mais de dez feridos.

“Ele é nosso!”

O clima andava tenso no final daquele ano, com a proximidade da implantação da UPP na Rocinha. Desde agosto de 2010, a polícia havia acelerado os planos de pacificação na favela. Culpa da turma de Nem. Naquele mês, dez homens invadiram o Hotel Intercontinental e fizeram mais de 30 reféns. A história virou um escândalo internacional e, por isso, as autoridades queriam dar uma resposta o quanto antes. 
Horas antes de o Corolla ser parado, a Polícia Federal teria infiltrado agentes à paisana e prendido em frente ao Jóquei, na Gávea, três policiais civis, um policial reformado e um ex-PM, que escoltavam traficantes em fuga da Rocinha. Por volta da meia-noite, um delegado de plantão saiu de sua sala inquieto após ser informado sobre o carro com o suposto cônsul. Correu para a Lagoa.

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A demora em abrir o porta-malas foi suficiente para equipes de TV e de outros meios chegarem ao local. Glenny lembra no livro que “quando ele emerge, está visivelmente desorientado” pela multidão, luzes e caos geral. “Depois de ter passado as últimas duas horas escondido no porta-malas, ele é subitamente exposto à total histeria, ao estilo brasileiro”. O troféu pela prisão ficou com José Mariano Beltrame, secretário de Segurança Pública do Rio, que agora tinha livre o caminho para a operação com mais de mil homens da PM e 40 da tropa de elite do Bope ocupar a Rocinha e instalar ali uma UPP. O triunfo com a – até então – vitrine da política de segurança pública do Rio colocava fim a uma era marcada pelo poder paralelo na favela, com vistas a eventos internacionais como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.
 
Sai Nem, entra Antônio

Foi a primeira vez que Nem parou na prisão. Réu primário, enfrentou desde aquela noite 17 processos criminais – já foi absolvido em nove deles e condenado em outros quatro. Até agora, acumulou mais de 48 anos de prisão. 

O dia D de Nem, no entanto, ainda está por vir. Acusado de envolvimento na morte de Andressa de Oliveira, 25 anos, e Luana Rodrigues de Sousa, 21 anos, em maio de 2011, ele deve enfrentar em  alguns meses o crivo do júri popular. Ele é suspeito de ser o mandante da morte das jovens, que trabalhavam como mulas e teriam sumido com uma carga de haxixe de R$ 25 mil. Sua defesa sabe que ali ele não será julgado pelo crime em si, mas por toda a sua trajetória. 

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 A expectativa, enquanto aguarda no Presídio Federal de Segurança Máxima de Porto Velho, sem ter acesso a livros, revistas ou cartas longas (a reportagem enviou duas páginas com perguntas que foram barradas pela penitenciária), é que a sociedade acredite que Nem não passa de uma caricatura jornalística. E que morreu no porta-malas daquele Corolla preto.

“Antes de conhecer Nem, alguém me disse que ele tinha dupla personalidade, que Antônio e Nem eram duas pessoas diferentes, e que sua mulher, Danúbia, seria apaixonada só por Nem”, conta Glenny. “Acredito que nos últimos anos sua mente andava atormentada por suas ações e, se existem dois personagens, então Antônio havia vencido e Nem, perdido.” 

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