A mensagem de perigo projetada para durar 10 mil anos
A saga dos arquitetos e designers que precisavam sinalizar um lixão nuclear para as civilizações do futuro – que não falarão nossas línguas, e talvez sequer sejam do nosso planeta.
Em 24 de julho de 1990, dezenas de cópias de uma carta misteriosa saíram da mesa de Richard Anderson – funcionário do SNL, um laboratório americano dedicado à pesquisa nuclear: “A WIPP (…) será o primeiro depósito de lixo nuclear desta nação. Alguma intrusão humana inadvertida, porém, pode resultar na liberação de radioatividade. Precisamos evitar essa intrusão por meio do desenvolvimento e implantação de um sistema de marcos. Os participantes desse estudo vão identificar a forma e o conteúdo das mensagens que serão colocadas nesses marcos. Se suas qualificações forem apropriadas para esse estudo, nós o encorajamos a se candidatar.”
Corta. A tal WIPP (Waste Isolation Pilot Plant, unidade piloto de isolamento de resíduos) fica no deserto do Novo México, a 400 quilômetros de Albuquerque. Vistas de fora, suas instalações são discretas: um prédio bege geométrico, uma porção de galpões menores e um estacionamento. As coisas começam a ficar interessantes a 650 metros de profundidade: o terreno esconde 20 quilômetros de túneis, com 4 metros de altura e 10 metros de largura cada um. Eles são ligados à superfície por meio de quatro poços e têm capacidade para armazenar 400 mil recipientes com roupas, luvas, ferramentas e outros objetos contaminados durante a fabricação de bombas nucleares.
Os túneis estão encravados em um estrato geológico repleto de sal que se se formou na época em que o sertão americano era mar, há 250 milhões de anos. Por volta de 2035, quando as instalações atingirem a capacidade máxima e os poços forem selados, as cavernas serão demolidas. O sal, que se fragmenta facilmente, preencherá os espaços livres, contendo a radiação. É o plano perfeito. Não fosse por um detalhe: ele precisa ser o plano perfeito por 10 mil anos. É isso que os elementos mais barras-pesadas da tabela periódica levam para decair a um patamar seguro de radioatividade. Até lá, ninguém pode acessar a rede de cavernas.
No top ten de sacanagens com o futuro, deixar um aterro de lixo nuclear de brinde para os seus tataranetos só não ganha do aquecimento global. Por isso, a agência de proteção ambiental dos EUA determinou que, após o fim das atividades da WIPP, os avisos de que o local é perigoso deverão permanecer eficazes até o ano 12035 d.C. É difícil ter uma noção real de quanto tempo são 10 mil anos – e do quanto é difícil bolar uma mensagem de perigo que dure tudo isso sem perder significado. Era hora de pedir ajuda aos universitários.
Videntes com PhD
Frederick Newmeyer, professor de linguística da Universidade da Colúmbia Britânica, hoje com 74 anos, foi um dos convidados para participar do projeto. “Eu estava cético desde o começo, mas feliz de ganhar US$ 10 mil para colaborar. Eu e meus colegas nos encontramos uma vez em Albuquerque, e de lá pegamos um avião para o sul do Estado, para conhecer o lugar e entrar nas cavernas de sal. Foi divertido.”
Além dele, outros 28 pesquisadores e intelectuais foram intimados a discutir o problema. Em outubro de 1990, 16 deles formaram o painel dos futuros (assim mesmo, no plural). O objetivo dos sujeitos era fazer um exercício de ficção científica sofisticado: tentar adivinhar qual seria a situação geopolítica do sul dos EUA nos próximos 10 mil anos. Será que o território em que hoje está a WIPP continuará sob controle americano? Será que o México o invadirá um dia? No longo prazo, será que a civilização vai avançar absurdamente– e o mundo vai virar um Blade Runner? Ou vamos viver no pós-apocalipse empoeirado de Mad Max?
É importante saber disso se você quer evitar que as pessoas do século 31 perfurem o solo sem querer. Em uma sociedade avançada como a de Admirável Mundo Novo, detectar os resíduos tóxicos e se livrar deles seria um desafio banal. Os arqueólogos dariam risada dos esforços de comunicação de seus ancestrais. Já num mundo empobrecido e decadente, a busca por recursos minerais – ou simplesmente água de lençóis freáticos – poderia levar um grupo de nômades que nem sabem o que é radiação a penetrar no depósito.
Essa conversa de bar financiada pelo governo rendeu uma pilha de relatórios sobre o futuro, que serviram de base para o trabalho de 13 acadêmicos de diversas áreas – arquitetura, linguística, arte etc. Eles foram divididos em duas equipes (chamadas simplesmente “A” e “B”), e ficaram com a tarefa de projetar o tal marco. De criar um monumento – com jeitão de ponto turístico mesmo – que informasse a humanidade do perigo do lixo nuclear por 10 mil anos.
Era um baita desafio. “Se os avisos fossem escritos em uma linguagem humana, eles se tornariam ilegíveis com o passar do tempo. Nós não conseguimos ler nem o inglês de 500 anos atrás [da época de Shakespeare]. O latim clássico ainda é ensinado, mas cada vez menos – e ele tem só 2 mil anos de idade”, diz Newmeyer, que era da equipe A.
Recado antipático
Tudo bem: já deu para entender que o futuro não vai falar inglês, nem nenhuma língua de hoje. Mas sugerir que o local simplesmente não fosse identificado não era uma opção. Foi aí que um arquiteto chamado Michael Brill, também da equipe A, começou a esboçar soluções não verbais. O primeiro passo era modificar a paisagem de maneira a deixar claro que ela foi alterada pelo ser humano com um objetivo específico. O segundo, modificá-la da maneira mais ameaçadora possível – para transmitir a ideia de que ninguém deveria estar ali.
Essas mensagens ocupariam uma área de 5 quilômetros quadrados diretamente acima do lixo enterrado, e poderiam assumir várias formas: uma floresta de espinhos de pedra gigantes e afiados (conforme ilustrado na abertura desta reportagem). Uma cidade fantasma de ruas estreitas e blocos de rocha irregular pintada de preto, como na pág. 38. Ou até uma superfície de granito lisa e escura, que absorveria o calor do deserto e tornaria o solo insuportavelmente quente. O importante era ser hostil. Esses avisos, no jargão da equipe, foram chamados de “mensagens de nível I e II”.
O explorador do futuro que se aventurasse para mais perto do lixão nuclear veria as mensagens de nível III e IV. As de nível III, distribuídas pela paisagem apocalíptica, seriam quiosques de granito protegidos por paredes de concreto. Nessas superfícies, entalhadas em baixo relevo, mensagens em várias línguas – como chinês, russo e francês – contariam só o essencial: por quem, por quê, como e quando aquele memorial foi construído. O objetivo é criar pedras de Rosetta artificiais. A pedra de Rosetta é um artefato arqueológico que contém um decreto governamental outorgado em 196 a.C. no Egito. O tirano Ptolomeu V mandou escrever a lei de três jeitos: em grego antigo, em hieróglifos e em demótico (um sistema de escrita egípcio mais simples). Como o grego era conhecido, foi possível decifrar os hieróglifos por comparação – e assim aprendemos a ler as inscrições nas pirâmides.
Os linguistas chamam esse princípio de “redundância”. Todo turista o aplica quando repete uma informação várias vezes, de jeitos diferentes, até o gringo entender. Quanto mais amostras de uma mensagem você tem em mãos, mais chances tem de decifrá-la.
Já as mensagens mais complexas, de nível IV, ficariam em uma câmara subterrânea. Além de pedras de Rosetta mais completas, com dados detalhados sobre a construção e a função da WIPP, ela conteria um mapa astronômico – para mostrar a data de construção do depósito usando a posição das estrelas como referência – e uma tabela periódica – para apontar quais elementos perigosos estão ali. A inspiração é pré–colombiana: o ponto de partida para decifrar o sistema de escrita maia foi justamente compreender seu calendário. Isso porque os astros se movem sempre igual: a astronomia une povos de crenças e épocas diferentes.
Será que uma rede de recados tão excêntrica vai dar certo? O jeito é viver para ver. Em 2004, o Departamento de Energia dos EUA finalmente publicou um plano de implementação dos marcos (que só começarão a ser construídos em 2035). Esse plano inclui muitos elementos propostos pela equipe de Brill – mas preferiu soluções mais discretas, com tótens no formato de obeliscos tradicionais, em vez de uma selva de espinhos. Os critérios básicos para redigir uma mensagem atemporal, porém, estarão lá: deixar claro que ela é produto de um ser inteligente, e não algo natural. Ser redundante. E usar conceitos científicos, que são universais.
Boa noite, alienígenas
Superar barreiras culturais com esses critérios é uma ideia antiga. Inclusive quando o destinatário, em vez de ser ser de outro lugar no tempo, é de outro lugar no espaço. O lendário matemático Carl Friedrich Gauss acreditava que existissem seres vivos inteligentes em Marte ou na Lua. Consta que, em 1818, ele bolou um método para se comunicar com os marcianos e selenitas – e informá-los de que existe vida inteligente na Terra. A ideia era desenhar imensas formas geométricas, ilustrativas do teorema de Pitágoras, na planície siberiana. Elas seriam grandes o suficiente para serem vistas pelos telescópios dos astrônomos alienígenas (que assim saberiam que dominamos a matemática).
Outra proposta do gênio alemão era criar um aparato de espelhos que concentrasse a luz solar e então a refletisse em uma única direção. Esse feixe seria apontado na direção de outros planetas e luas, cujas civilizações veriam o pontinho brilhante na superfície da Terra.
Décadas depois, durante a belle époque, Paris fervilhava com inventores e escritores de ficção científica. Alguns, como Camille Flammarion e Charlie Cros, pegaram a ideia dos espelhos de Gauss, juntaram com o recém-inventado código Morse e criaram o primeiro telefone cósmico da história. A ideia era simples: bloquear o feixe de luz refletido pelos espelhos em certo ritmo – de forma que o pontinho na superfície da Terra piscasse como uma lanterna aos olhos dos alienígenas. Isso preencheria o primeiro pré-requisito: deixar claro que a mensagem foi produzida artificialmente. Que é uma tentativa consciente de comunicação – ainda que de eficiência zero. Se você olhar a Terra a partir de um planeta distante, tudo o que você verá do nosso planeta é a sombra diminuta que ele faz no Sol.
Quando a humanidade finalmente decidiu montar um instrumento para se comunicar com eventuais alienígenas, acabou usando um princípio parecido com esse. Só que mais eficiente: em vez de enviar luz visível, mandamos ondas de rádio para o espaço – o mesmo tipo de onda que o seu celular envia e recebe; ou seja, ondas capazes de carregar informação por longas distâncias.
A primeira tentativa real de mandar mensagens para outras civilizações aconteceu em 16 de novembro de 1974, o dia da inauguração do telescópio de Arecibo, em Porto Rico. Ele não se parece em nada com um telescópio comum. Consiste em um disco côncavo gigante – com aparência de antena parabólica e diâmetro equivalente à altura da Torre Eiffel –, e fica deitado em uma cratera no meio da floresta tropical. Ele não é feito para captar luz visível, e sim para monitorar ondas de rádio emitidas por certos fenômenos cósmicos (por isso, ele é chamado de “radiotelescópio”).
Para comemorar o início das operações, porém, nada de observações passivas. Ficou combinado que seria mais divertido usar o gigante ao contrário, para enviar uma mensagem de rádio ao aglomerado de estrelas M13, a 25 mil anos-luz da Terra. Foi um tiro no escuro: a suposição de que haja vida inteligente naquela região da Via Láctea talvez seja considerada tão inocente daqui a 200 anos quanto hoje consideramos Gauss por achar que havia alienígenas em Marte. Não interessa: o experimento, muito mais do que uma tentativa efetiva de comunicação, era um teste. Um comitê liderado pelo astrônomo Frank Drake, da Universidade Cornell – e que incluia nomes como Carl Sagan – ficou responsável por bolar o recado interestelar.
Os pulsos que o radiotelescópio transmitiu para o espaço representavam uma sequência de código binário. Os “zeros” correspondiam a quadradinhos brancos; os “uns”, a quadradinhos pretos. Cada linha de código tinha 23 dígitos. Eram, ao todo, 73 linhas. Se os alienígenas que recebessem a mensagem fossem malandros o suficiente, eles distribuiriam o código em uma espécie de tapeçaria pixelada, com 23 quadradinhos de largura por 73 de altura. Esses dois números foram escolhidos por serem primos – uma propriedade que qualquer sociedade avançada reconheceria (tal como a astronomia, e todas as outras ciências exatas, a matemática também é universal; dois mais dois sempre dá quatro, seja na Terra, seja em Alpha Centauri).
Os desenhos que surgiriam nesse mosaico são um breve manual da vida na Terra. Algumas partes, como a do corpo humano, do telescópio e do DNA, são óbvias, fáceis de entender. Outras são mais complicadinhos – como aquele bloco que você vê centralizado no topo, logo no comecinho da mensagem.
Ele funciona assim: cada coluna representa o número de um elemento na tabela periódica escrito na forma de código binário. No caso, hidrogênio, carbono, nitrogênio, oxigênio e fósforo – os tijolos atômicos que formam os nossos genes. A partir desse ponto, em que os alienígenas já sabem de que átomos somos feitos, os blocos que vêm abaixo indicam (sempre em código binário) qual quantidade de cada um desses átomos vai em uma molécula de DNA. Em bom português: enviamos uma receita para fazer material genético terráqueo.
Será que alguém está mesmo do outro lado para recebê-la? Dada a vastidão do Universo, é extremamente provável que sim. A questão é outra: será que eles vão entender mesmo o que a gente quis dizer? Boa sorte para nós.