Texto Barbara Axt
João reza todos os dias a uma chaleira de porcelana que está no céu, em órbita entre a Terra e Marte. Ele só namora moças que também acreditam na Chaleira e nunca usa camisetas verdes, pois isso é uma grande ofensa à Toda-Poderosa.
Renato, vizinho de João, acredita que o mundo foi criado por um gigantesco monstro voador feito de espaguete. Todo mês se encontra com um grupo de espagueteiros para cantar músicas sobre como o Monstro é bacana. Um belo dia, depois do café-da-manhã (sem pão, pois sua religião proíbe comidas feitas com farinha), Renato veste uma camiseta verde e sai para trabalhar.
Ao encontrar com ele, João fica muito chateado com sua roupa. Renato fica meio sem graça, afinal ele não é um seguidor da Grande Chaleira, e sim do Monstro de Espaguete. Mas promete que vai usar sua camiseta verde menos vezes.
Parece loucura? É mais ou menos assim que o zoólogo Richard Dawkins vê o mundo, com pessoas seguindo religiões cegamente, obedecendo a regras sem sentido e acreditando em deuses e milagres sem ter evidência nenhuma.
Para expor esse ponto de vista o cientista inglês, professor de compreensão pública da ciência na Universidade de Oxford, publicou no final de 2006 Deus, um Delírio. O livro, que chega este mês às livrarias brasileiras, é um grande manifesto ateu – mas, ironicamente, acabou se tornando um presente de Natal bem popular em países de língua inglesa. Nele, Dawkins afirma que as religiões não são só coisas sem sentido, como monstros de espaguete voadores. Elas também são altamente prejudiciais à sociedade.
“Meu grande sonho é a completa destruição de todas as religiões do mundo”, dispara, com sua voz tranqüila, depois de dois minutos de entrevista. A Super conversou com o cientista em sua confortável casa de tijolinhos na cidade inglesa de Oxford onde, sentado no sofá e vestido como um perfeito inglês, de paletó, camisa social e colete de lã, ele completou o raciocínio: “Mas eu sei que isso é ambicioso demais. Na verdade, eu quero atingir as pessoas que estão em cima do muro. Pensando no assunto, talvez elas percebam que não são religiosas”.
Radical ateu
Dawkins é considerado um dos mais importantes intelectuais do mundo e um dos mais famosos divulgadores de assuntos científicos. Ele já publicou 8 livros, que venderam centenas de milhares de cópias e foram traduzidos em mais de 25 línguas, começando pelo best seller O Gene Egoísta, de 1976. O livro revolucionou a área de biologia evolutiva ao explicar a Teoria da Evolução de Darwin pelo ponto de vista dos genes. De acordo com sua perspectiva, a seleção natural não favorece os organismos mais adaptados à sobrevivência, mas, sim, os genes mais eficientes em se multiplicar. Depois que Darwin provou que os seres humanos não foram criados à imagem e semelhança de Deus – eles evoluíram a partir de animais mais simples –, Dawkins tirou os animais, as plantas e os seres vivos em geral do papel de protagonistas da evolução, afirmando que nós não passamos de máquinas de sobrevivência projetadas pelos genes. Agora volta sua bateria para Deus.
A maior parte das religiões afirma que estamos sendo acompanhados de perto por um ser superior e que isso dá sentido à nossa vida. Uma imagem tão confortante quanto sem sentido, na opinião de Dawkins. “Existe um propósito na nossa existência, que é a propagação do DNA. Pode não parecer muito nobre, porque não é o tipo de objetivo que as pessoas procuram”, explicou em uma entrevista à BBC.
Criado em um lar anglicano, Dawkins descobriu que era ateu aos 17 anos, quando se convenceu de que a Teoria da Evolução de Darwin explicava o mundo muito melhor do que qualquer religião. Mas, só agora, aos 65 anos, decidiu se dedicar de corpo e alma (ops!) a uma cruzada pela ciência e contra o obscurantismo. Seu objetivo é combater o poder crescente das religiões como forças absolutas e inquestionáveis – cita como exemplos o fundamentalismo islâmico e o que ele chama de talibã cristão nos EUA. “Supostamente os EUA são um Estado desvinculado de religião, mas George W. Bush está levando o país na direção de uma teocracia, dizendo que fala com Deus e que Deus lhe disse para invadir o Iraque”, afirma. Para combater esse tipo de atitude, criou a Fundação Richard Dawkins para a Razão e a Ciência, que “tem como objetivo defender a ciência contra os ataques da ignorância organizada”, definição que inclui tanto os defensores do ensino de criacionismo quanto as pseudociências (astrologia, homeopatia, ufologia etc.). A fundação pretende financiar pesquisas sobre a psicologia das crenças, apoiar a educação científica e ajudar a divulgação de idéias racionais.
Ele é o primeiro a reconhecer que suas opiniões são polêmicas. “Se você colocar meu nome no Google, vai encontrar um equilíbrio: há coisas muito negativas escritas por gente religiosa e coisas muito positivas escritas por gente não religiosa”, se diverte. Ocorre que até entre os ateus existe gente que discorda de suas idéias, como o físico brasileiro Marcelo Gleiser. “Acho que o Dawkins escreveu um livro provocativo para polarizar ainda mais as tensões entre ciência e religião, o que é inútil”, reclama. “As pessoas se sentem ameaçadas pela ciência, achando que ela vai ‘matar’ os deuses. É essa distorção que os cientistas devem combater, e não a fé. A ciência não quer roubar Deus de ninguém”, diz Marcelo.
Bem, não é bem isso que Richard Dawkins pensa. Ele discorda radicalmente da posição liberal de ateus como o paleontólogo Stephen Jay Gould, que afirmava que religião e ciência são assuntos que não se misturam e podem coexistir em paz, cada um ocupando partes diferentes da vida (e da mente) humana. Para Dawkins, isso não passa de duplipensamento, a técnica descrita por George Orwell no livro 1984: acreditar em duas coisas conflitantes ao mesmo tempo. No caso, o Gênesis e a Teoria do Big-Bang.
Em sua opinião, essa posição conciliadora mais atrapalha do que ajuda. Quem não se opõe abertamente às religiões ajuda, com sua omissão, a fortalecer o poder que elas já têm. Ainda assim ele nega que seja um radical: “As pessoas acham isso porque já se acostumaram a falar de religião sempre pisando em ovos”, argumenta. “É possível questionar e discordar de alguém sobre economia, esporte ou qualquer outro assunto. Quando se trata de religião, é proibido falar qualquer coisa.”
Em termos: as religiões vêm, sim, sendo questionadas em vários livros sobre ateísmo lançados recentemente. Dawkins faz parte desse movimento, ao lado de pensadores como os americanos Daniel Dennett (autor de Quebrando o Encanto) e Sam Harris (autor de O Fim da Fé). Em sua casa é possível ver várias dessas obras, que são citadas em Deus, um Delírio, pelas estantes, em cima das mesas e até mesmo no banheiro.
Movimento dos sem-deus
O cientista compara a situação dos ateus hoje em dia com a dos homossexuais nos anos 50. Para mostrar o preconceito contra as pessoas sem religião, ele cita uma pesquisa feita pelo Instituto Gallup em 1999. Segundo o levantamento, 95% dos americanos votariam em uma mulher para presidente, 92% em um negro ou judeu e 79% em um homossexual. Mas apenas 49% colocariam um ateu na Casa Branca. “Enquanto o número de judeus nos EUA é muito menor do que o de ateus, eles são muito mais poderosos, pois foram capazes de se organizar e criar lobbies políticos para defender seus interesses”, diz Dawkins. “Os ateus americanos, que são entre 20 milhões e 30 milhões, não fazem isso.”
Na verdade, é difícil até mesmo perceber que a quantidade é tão grande, porque muitos deles evitam manifestar publicamente sua ausência de crenças. “Muita gente veio me agradecer por ter escrito o que elas não tinham coragem de dizer”, se anima Dawkins. “Apesar de não ter escrito o livro pensando nessa conseqüência, agora eu acho que talvez a melhor coisa que ele pode fazer pelas pessoas é encorajá-las a sair do armário.”
Ao que parece, a porta do armário foi arrombada: uma pesquisa feita em 2006 pela companhia Harris Interactive mostra que menos da metade dos ingleses, dos alemães e dos espanhóis crêem em Deus ou em algum tipo de ser supremo. Na França, são apenas 27% da população. No Brasil os números ainda são bem diferentes, mas dá para perceber que alguma coisa está ocorrendo (apesar de o questionário do IBGE não incluir a opção “ateu”). No censo de 1991, o número de pessoas que disse não ter religião foi de 4,7%. Já em 2000 esse percentual foi de 7,4%.
Para Richard Dawkins, a pior coisa das religiões é a idéia de fé. A simples idéia de acreditar em algo que não pode ser provado é capaz de tirá-lo do sério – o que significa, para um britânico tão educado, levantar uma das sobrancelhas. “Fé é algo em que você acredita sem evidência. Pior: quanto mais absurdo o artigo de fé, mais virtuoso é o fato de se acreditar nele.” Dawkins crê que a aceitação de dogmas pode levar a sérios problemas. “Disputas entre crenças incompatíveis não podem ser resolvidas com argumentos racionais”, disse à revista online americana Salon. “Cientistas discordam entre si usando fatos e evidências para decidir quem está certo. Mas é impossível argumentar racionalmente se você simplesmente sabe que o seu livro sagrado contém a verdade absoluta dita por Deus, e a pessoa do outro lado pensa a mesma coisa sobre o próprio livro. Não surpreende que, ao longo da história, fanáticos religiosos tenham lançado mão de torturas, execuções, cruzadas, jihads e guerras santas.”
O teólogo e químico Alistair McGrath, que também é professor em Oxford, está lançando um livro em resposta a Deus, um Delírio, com o título de The Dawkins Delusion (“O Delírio de Dawkins”, sem tradução para o português). McGrath, um ex-ateu que se tornou religioso, acha que o colega apresenta as religiões de uma forma injusta. “Dawkins defende seus argumentos representando o cristianismo da pior maneira possível.” E provoca: “Concordo com Dawkins que é muito perigoso acreditar em alguma coisa sem investigar por conta própria. Mas acho que essa atitude de checar por si mesmo deve ser usada tanto para as religiões quanto para o próprio ateísmo”. Ainda que um consenso não esteja à vista, os dois têm opiniões muito parecidas em assuntos fundamentais: ambos apóiam a separação entre Estado e religião e são contra o ensino de criacionismo nas escolas, entre outras coisas.
“Acredito que é possível ter uma atitude crítica em relação às religiões. Eu costumo perguntar a alguns amigos muçulmanos onde no Alcorão está escrito que a violência, especialmente o terrorismo, é encorajada. E ninguém me responde, porque não existem esses trechos que legitimam a violência”, observa McGrath. “É essencial questionar o porquê das coisas, afinal a capacidade de fazer perguntas é muito importante para tornar o mundo um lugar mais seguro.” Uma opinião que não poderia gerar nenhuma reclamação do próprio Dawkins.
O plano assassino
Quando perguntado como poderíamos acabar com as religiões do mundo, a resposta de Richard Dawkins é bem clara: dando uma boa educação a todo mundo. Ele explica que o número de pessoas praticantes de religiões entre os mais educados é menor do que entre os menos educados. E cita uma pesquisa publicada pela revista Nature, mostrando que, entre os cientistas da Academia de Ciências dos EUA, mais de 90% são ateus ou agnósticos e apenas 7% acreditam em Deus.
“É importante ensinar que pensar é uma coisa boa, virtuosa. Todas as crianças deveriam ser estimuladas a pensar. E elas também não deveriam seguir automaticamente a religião de seus pais”, afirma. Ele acredita que as crianças deveriam crescer conhecendo um pouco de cada religião, inclusive sabendo que é possível não escolher nenhuma. E depois de crescidas escolherem que caminho tomar. “Não se deve atribuir automaticamente a religião dos pais a uma criança. Expressões como ‘criança católica’ ou ‘criança muçulmana’ deveriam nos dar arrepios. Ninguém fala em crianças marxistas ou neoliberais, por que com as religiões deveria ser diferente?”
Ou seja, o cruzado antideus é na verdade um defensor do conhecimento e da liberdade de escolha – além de um inveterado polemista. Radicalismos à parte, seu discurso prega que uma dose de bom senso melhoraria muito a situação. O ponto nevrálgico da causa de Dawkins é a adoção de uma separação real entre Estado e religião – isso significa a exclusão dos dogmas e pressões de religiosos na implementação de leis que regulam assuntos como aborto e homossexualismo, por exemplo.
Mas, no final das contas, se todo mundo tivesse acesso à educação, não se deixasse levar por fundamentalismos religiosos nem se metesse na maneira como os outros vivem sua própria vida, talvez não fizesse mais a mínima diferença se uma pessoa acredita em Maomé, numa chaleira sagrada, num monstro de espaguete ou em nada.
ATEÍSMO PARA PRINCIPIANTES
Como boa parte do pensamento ocidental, o ateísmo tem suas raízes na Grécia antiga. Mais exatamente nos filósofos materialistas, que só acreditavam na existência daquilo que pudesse ser percebido pelos sentidos (visão, olfato, tato etc.). O primeiro ateu célebre da história foi o filósofo Epicuro, que afirmou não acreditar na existência de Deus nem na vida após a morte. Séculos depois, suas idéias foram difundidas em Roma pelo poeta Lucrécio. A discussão morreu depois da queda do Império Romano, já que na Idade Média questionar a existência de Deus era suficiente para levar uma pessoa para a fogueira. O assunto voltou a público lá pelo século 16, quando surgiu o conceito de deísmo – a crença em um Deus, mas não em uma religião. Foi a deixa para que as pessoas começassem a questionar as religiões. Textos da Antiguidade Clássica foram resgatados e alguns filósofos, como Thomas Hobbes, foram preparando o terreno para o crescimento do ateísmo como o conhecemos hoje.
Esse novo pensamento possibilitou o surgimento dos Estados laicos (em que governo e religião são separados), como o francês. No final do século 19, havia uma crença disseminada de que um dia a ciência explicaria tudo no mundo e ninguém mais precisaria de religião. O filósofo alemão Nietzsche disse “Deus está morto”. Hoje já sabemos que matar Deus não é tão fácil e que as verdades científicas não fazem necessariamente as pessoas deixar de lado suas idéias religiosas. Apesar disso, o que não falta é gente tentando juntar ciência e religião “na marra”, como os defensores do design inteligente, que nada mais é do que o velho criacionismo vestido de ciência.
Para saber mais
Deus, um Delírio
Richard Dawkins, Companhia das Letras, 2007.
Quebrando o Encanto
Daniel Dennett, Globo, 2006.
O Fim da Fé
Sam Harris, Tinta da China, Portugal, 2007.