Nelly e Erick: mutações no corona ganham apelidos para facilitar identificação
Chamar as variantes de “britânica” ou “brasileira” estigmatiza os países e é impreciso, já que cepas diferentes podem carregar a mesma mutação. Por isso, a nova tendência é batizar as mutações em si.
Novas cepas do coronavírus vêm ganhando atenção desde o final de 2020, quando o governo britânico estimou que uma nova variante identificada no país seria até 70% mais contagiosa que as outras. Hoje, ela já é encontrada em mais de 46 países, incluindo o Brasil.
Oficialmente, essa variante se chama B.1.1.7, mas ela se consagrou como a “mutação britânica”. No Brasil, pesquisadores anunciaram o primeiro caso de reinfecção pela “variante sul-africana” esta semana. E uma cepa sequenciada no Japão em visitantes que voltavam do Amazonas se tornou a “variante de Manaus”. (Fora do Brasil, ela é a “variante brasileira”.)
Em depoimento no dia 13 de janeiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou para a estigmatização dos países e regiões em que se detectaram essas variantes pela primeira vez. Um editorial do periódico Nature chamou atenção para o mesmo problema.
A identificação de novas cepas não deve ser vista de forma negativa – na verdade, ela é essencial para monitorar a circulação e evolução do vírus. A questão é outra: como batizá-las sem que os nomes atribuam culpa a um outro país?
Alguns pesquisadores propõem que, em vezes de chamar a atenção para as cepas, a comunidade científica dê apelidos para as mutações mais importantes sofridas pelo vírus.
Para entender essa proposta, o primeiro passo é diferenciar cepa de mutação. Embora esses dois termos estejam sendo usados de maneira intercambiável pela mídia, na verdade há uma diferença sutil entre eles.
Do mesmo jeito que três serralheiros podem usar a mesma serra, ou que três guitarristas podem comprar a mesma guitarra, três cepas diferentes do coronavírus podem ser mais letais que a média por causa da mesma mutação. Sim, são cepas diferentes, que vieram de lugares diferentes. Mas a mutação tem o mesmo efeito e ocorre na mesma região do genoma.
As mutações mais perigosas são as que acontecem no trecho de RNA que codifica a proteína spike, usada pelo coronavírus para se ligar às células humanas e infectá-las.
As variantes detectadas na África do Sul, Brasil e Reino Unido, por exemplo, contém uma mesma mutação na proteína spike: a N501Y, capaz de aumentar a transmissão do vírus. Os cientistas britânicos vêm chamando essa mutação de Nelly.
A mutação E484K também afeta a proteína spike e possivelmente a capacidade do vírus de driblar os anticorpos. Ela está presente nas variantes identificadas em Manaus e África do Sul, e ganhou o apelido de Erick entre os cientistas.
Ou seja: podemos falar que um coronavírus carrega a mutação Erick e a mutação Nelly. Isso chama a atenção para o mais importante: as capacidades extraordinárias dessas variedades. E tira os holofotes do local de origem.
Desde 2015, a OMS estabelece diretrizes para não nomear doenças com referência ao local onde ocorreu o primeiro surto. O coronavírus Mers-cov, parente do atual Sars-cov-2, havia sido nomeado em 2012 com a sigla em inglês para “síndrome respiratória do Oriente Médio”. Já o nome do zika vírus faz referência a uma floresta de Uganda, onde o patógeno foi descoberto.
Falta de padronização
As variantes do Sars-cov-2 possuem diferentes nomes científicos, o que dificulta a interpretação e divulgação de informações tanto pela mídia quanto pelo público leigo.
Por exemplo: a variante identificada no sul do Reino Unido, que possui a mutação Nelly, pode ser chamada de VoC 202012/01 (sigla para “variante de preocupação”), de N501.V1 (em referência à mutação preocupante) e de B.1.1.7 (que indica a posição da cepa na árvore genealógica do vírus).
Já a variante identificada inicialmente na África do Sul é chamada de N501Y.V2 (por ter sido identificada após a N501.V1) ou B.1.351. A encontrada no Brasil é N501Y.V3 (por ser a terceira com a mutação) ou B.1.1.28. Não é à toa que as pessoas preferem identificá-las pelo país de origem.
Uma estratégia para “desnacionalizar” o vírus seria criar nomes mais acessíveis às variantes, como é feito com os furacões (Katrina, Sandy, Irma…), e como aconteceu com as mutações Nelly e Erick.
Sequenciamento genômico
Os países que realizam um alto número de sequenciamentos genéticos do vírus tendem a identificar mais cepas – algo que é estimulado pela OMS. Sequenciar significa recolher amostras de um paciente que testou positivo para a covid-19, isolar o vírus, e olhar o material genético dele letra por letra.
A sequência de letras não é igual em todos os Sars-cov-2. É normal que o vírus sofra mutações ao longo do tempo. Quanto mais ele se reproduz, mais mutações ele sofre. A maioria delas é inofensiva, mas às vezes calha de uma mutação acontecer no local certo, e ela acaba alterando a estrutura e características do vírus – por exemplo, tornando-o mais contagioso.
A mutação N501Y (ou Nelly) representa uma alteração no aminoácido asparagina (N) pela tirosina (Y) na posição 501 do genoma. Já a mutação E484K (Erick) troca o glutamato (E) por lisina (K) na letra de número 484.
O Reino Unido realiza o sequenciamento de 5% a 10% dos casos confirmados de covid-19. A Islândia sequenciou todos os quase 6 mil casos do país, e encontrou 464 variantes do vírus. Já foram realizados mais de 400 mil sequenciamentos pelo mundo, todos disponíveis no banco de dados internacional Gisaid.
O Brasil sequenciou apenas 0,024% dos casos confirmados no país, sendo a maioria deles na região sudeste. A desigualdade na vigilância genômica torna difícil, por exemplo, estimar quando a variante B.1.1.28 começou a circular em Manaus e prever novos surtos.