Loja nos EUA que vendia fósseis do Ceará diz que ‘aguarda autoridades do Brasil irem buscá-los’
FBI e Ministério Público Federal investigam a Indiana 9 Fossils, que tinha em seu catálogo centenas de objetos da Chapada do Araripe – alguns custavam mais de R$ 20 mil. O comércio de fósseis brasileiros, porém, é ilegal desde 1942. Entenda os detalhes do caso.
No começo de 2023, o paleontólogo Juan Cisneros, da Universidade Federal do Piauí, fez uma denúncia nas redes sociais: a Indiana 9 Fossils, uma loja dos EUA, comercializava fósseis brasileiros – o que é ilegal. Na época, a Super detalhou a história (você pode conferi-la aqui).
A venda de fósseis tornou-se crime no Brasil em 1942. Levantou-se, então, a possibilidade de que o site americano teria adquirido peças que chegaram por lá antes dessa data. Mas é uma chance remota, por alguns motivos.
Os fósseis da loja vêm de rochas calcárias da Chapada do Araripe, uma região entre os estados do Ceará, Pernambuco e Piauí – que, segundo Cisneros, só passou a ter mineração de calcário em grande quantidade na década de 1970.
Além disso, a legislação brasileira obriga que fósseis comercializados antes de 1942 estejam sempre acompanhados de suas respectivas papeladas jurídicas que atestem a sua procedência – algo que a loja não possui.
A Indiana 9 é uma das maiores lojas do mundo desse ramo. Em seu site, os fósseis brasileiros já não estão mais à venda. No lugar, há um texto do dono do negócio, Merv Feick, em que ele afirma que não sabia que a venda de fósseis brasileiros era ilegal, e que os tirou de venda porque, recentemente, recebeu “uma visita surpresa de autoridades que queriam falar comigo sobre a grande quantidade de [fósseis de] insetos brasileiros que tinha em posse.” Feick também afirma que nunca teve a papelada de autorização dos fósseis, que não sabia ser necessária.
Quando a história ganhou alguma atenção, ainda no começo de 2023, diversas denúncias foram feitas ao Ministério Público Federal (MPF), que deu início a uma investigação. A devolução das peças, porém, depende também da justiça americana, que analisa o caso – pesquisadores brasileiros envolvidos nessa história disseram à Super que o FBI está atrás dos compradores do site.
Vamos entender em detalhes o caso dos fósseis do Ceará.
Comércio de libélulas
As denúncias feitas ao Ministério Público em 2023 logo passaram para a Secretaria de Cooperação Internacional do órgão. “Foi aí que eu me animei mais, porque vi que as autoridades daqui começaram a se comunicar com as autoridades dos EUA”, diz Cisneros.
A partir daí, o FBI (Departamento Federal de Investigação dos EUA) passou a investigar as casas de colecionadores dos EUA. O órgão enviou imagens de fósseis encontrados para que pesquisadores brasileiros os analisassem. O responsável pelo laudo que atestou a origem daqueles objetos foi Daniel Lima, do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, localizado em Santana de Cariri, no Ceará.
Lima conta que os fósseis da Chapada do Araripe são bem característicos, facilmente reconhecíveis pela tonalidade da rocha de calcário laminado e pela presença de restos de algas e plantas.
“A gente já conhece mais ou menos quais são os fósseis mais procurados”, diz Lima. “As libélulas são o Santo Graal dos colecionadores. Todo mundo quer. E nessa investigação aí tem libélulas de cinco mil dólares sendo vendidas”, diz Lima.
A Indiana 9 chegava a cobrar, em dólares, algo próximo a R.390 pelo fóssil de uma pequena libélula. Segundo Cisneros e outros pesquisadores que se debruçam em casos do tipo, as peças provavelmente foram obtidas de trabalhadores da mineração de calcário na Chapada do Araripe, que são sondados por membros de quadrilhas de tráfico internacional.
“A única maneira em que eles podem ter tido acesso a esses fósseis é comprando de alguém que os achou”, diz Cisneros. “E eles não pagaram um valor grande, podem ter pago 50 reais por ‘esse bicho aí’, ‘por essa barata’, que agora está sendo vendida por três mil dólares lá fora. E a gente sabe disso porque não é uma coisa nova. É um fenômeno que já acontece há muitos anos – e os trabalhadores [da mineração] não recebem quase nada.”
Feick se defende, e diz não ter nenhum envolvimento com a retirada dos fósseis do Brasil – que, segundo ele, foram adquiridos em regime consignado de um revendedor alemão.
“Perguntei ao revendedor se os fósseis eram legais e ele disse que sim, que havia tirado todos eles do Brasil legalmente e que tinha a documentação na Alemanha para provar isso”, conta Feick, dono da Indiana 9. O revendedor alemão teria levado as peças daqui para a Europa e, depois, para os EUA – e não teria tido nenhum problema com alfândegas. “Acreditávamos, então, que não havia nada de errado em vendê-las”, conta o americano.
Para a Super, Feick afirmou que “os fósseis estão encaixotados e aguardando que o governo brasileiro solicite oficialmente que eles sejam recolhidos pelas autoridades e que sejam tomadas providências para a repatriação.”
Investigação americana
Segundo Allysson Pontes Pinheiro, diretor do Museu Plácido Nuvens, a busca em casas de colecionadores, conduzida pelo FBI, pode revelar fósseis raros e especiais, que circulam de forma ainda mais clandestina no mercado de fósseis.
“Esse processo me deixa muito curioso com o que vai acontecer, e esperançoso que a gente possa retomar peças únicas.”, diz Pinheiro. “Pode ser que apareça alguma coisa realmente especial, que a sociedade brasileira ou a ciência do mundo ainda não conhece.”
Segundo Pinheiro e Lima, o caso está tramitando no âmbito da justiça norte-americana, e as peças só devem voltar para o Brasil após o julgamento final, se assim for decidido. Por enquanto, os colecionadores que possuem fósseis ficam impedidos de fazer qualquer coisa com eles: como objetos de investigação, ficam sob tutela desses donos e só podem ser apreendidos após decisão judicial.
Tratar de fósseis em casos envolvendo mais de um país é algo delicado, porque cada nação tem as suas próprias regras em relação a esses materiais.
As leis de fósseis pelo mundo
O presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP), Hermínio de Araújo Júnior, explica que a legislação internacional sobre fósseis é complexa. Em alguns países, a venda é totalmente liberada; em outros, depende do tipo de fóssil.
A prática também pode ser completamente proibida, caso de países como Brasil, Argentina e México. Mas, mesmo nesses casos, existem exceções, como a comentamos no início deste texto: caso os fósseis brasileiros tenham sido retirados legalmente antes de 1942 e estejam acompanhados da documentação da época, a comercialização pode acontecer.
Foi isso que travou, por exemplo, a disputa pelo fóssil do dinossauro brasileiro Ubirajara, que estava em um museu alemão e foi repatriado no ano passado, por exemplo. Os alemães alegavam que tinham retirado o espécime legalmente antes de 1942, mas não conseguiram apresentar a papelada devida.
Internacionalmente, o que regula esse tipo de conflito é uma convenção internacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) criada em 1970. “Os países que assinam dizem que vão respeitar os marcos legais existentes naqueles países que também assinaram”, diz Araújo Júnior.
O Brasil é signatário do acordo desde 1973; os EUA, desde 1983. É por isso que os dois países estão colaborando no caso dos fósseis do Ceará.
O que pode acontecer agora
No ano passado, 998 fósseis brasileiros que estavam ilegalmente na França retornaram ao país. Hoje, eles estão sendo estudados no Museu Plácido Nuvens, que é vinculado à Universidade Regional do Cariri (URCA).
Caso os fósseis da Indiana 9 Fossils sejam repatriados, Araújo Júnior, da SBP, explica que eles devem retornar para a região de onde foram retirados. “Faz todo sentido que, quando um material que é do Araripe sai do Araripe, ele volte para lá. Até porque é muito importante que este material – que faz parte da identidade cultural das pessoas que vivem ali – tenha uma utilidade, ou um serviço para aquelas pessoas. Que ele possa gerar um engrandecimento cultural, social, fomentar o turismo naquela região.”
Mas, afinal: quando a repatriação deve acontecer? No caso dos fósseis que estavam na França, o processo durou 11 anos, já que a empresa que contrabandeava os objetos brasileiros recorreu até as últimas instâncias nos tribunais internacionais.
A investigação atual, porém, pode ser mais rápida. Feick diz, no site, que está disposto a colaborar com as autoridades e a devolver os espécimes.
“O processo está em andamento, e a gente tem segurança que esses fósseis voltarão ao Brasil em algum momento”, afirma Pinheiro.
Para esta reportagem, a Super procurou o Ministério das Relações Exteriores, que afirmou que ainda não foi provocado a colaborar no processo, e que a participação do Itamaraty (como o órgão também é conhecido) nas negociações desse tipo geralmente são durante as etapas finais.
O Ministério Público Federal e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação também foram contatados. Mas não responderam a tempo da publicação do texto.