Como funciona a lavagem cerebral
Ela é usada por militares, políticos, religiosos e gente querendo sua grana. Saiba como ela funciona — e aprenda a blindar sua mente
Em 1974, Patty Hearst, herdeira de um dos maiores conglomerados de empresas jornalísticas dos EUA, morava na Califórnia, cursava faculdade e preparava seu casamento. Até que, numa bela noite, a patricinha foi sequestrada por um grupo paramilitar esquerdista chamado Exército Simbionês de Libertação. Dois meses depois, reapareceu, armada com um rifle e uniformizada, assaltando um banco ao lado do bando. Durante um ano e meio participou de várias ações, roubando lojas e fugindo da polícia.
Ninguém entendeu nada: o que transformou aquela garota rica de 19 anos em uma guerrilheira urbana? Quando finalmente foi capturada pela polícia, Patty explicou: tinha sido submetida a uma lavagem cerebral. Foram 57 dias trancada em um armário, sofrendo maus-tratos físicos e psicológicos. Teve gente que duvidou da explicação, achando que se tratava de desculpa esfarrapada. Mas, por outro lado, o que justificaria uma mudança tão radical?
Apesar de não existir consenso sobre até que ponto é possível substituir convicções e comportamentos, não faltam estudos sobre o processo de lavagem cerebral. O termo passou a ser usado no Ocidente durante a Guerra da Coreia (1950-53), para descrever o comportamento de soldados americanos que, após um período capturados, voltavam defendendo os ideais comunistas dos inimigos China e Coreia do Norte. Aparentemente, não era teatro. Os soldados tinham, de fato, “virado a casaca”.
Muitos daqueles prisioneiros haviam sofrido torturas físicas que tornaram suas mentes vulneráveis; com outros, o processo foi menos óbvio e mais sutil, envolvendo a vítima sem que ela se desse conta. Seja qual for a estratégia, é essencial o elemento-surpresa.
Isso porque somos programados para reagir imediatamente a estímulos intensos. Quando um ladrão pula na sua frente ou um carro vai em sua direção, o cérebro não perde tempo com análises. O caso nem passa pelo córtex pré-frontal, responsável pelo raciocínio complexo; vai direto para áreas cerebrais mais primitivas, que decidem rapidamente o que fazer. Ou seja: quem quiser provocar novas crenças e comportamentos em alguém precisa criar situações que exijam reações automáticas, pois nelas o processo consciente é desativado.
Não é força, é jeito
Existem duas maneiras de deixar o sujeito estressado, frágil, cansado e, consequentemente, mais aberto a novas ideias. A primeira é a lavagem cerebral forçada, em que isso é alcançado com tortura, privação de sono e jejum. O segundo método, mais comum, é o induzido, em que a vítima é envolvida em um “intensivão”.
Pessoas que se dizem manipuladas por igrejas e cultos religiosos descrevem um programa intenso de atividades, palestras, celebrações e tarefas como distribuir panfletos, limpar o chão, fazer comida. Imersa nessa rotina, que geralmente prevê poucas horas de sono, a vítima fica tão cansada que literalmente não tem tempo para pensar sobre o que está acontecendo.
É a mesma técnica, por exemplo, daquele vendedor tagarela que o deixa confuso e faz com que você compre uma coisa de que não precisa, só para se livrar do incômodo. Em alguns casos, antes de iniciar o processo a pessoa já está fragilizada por alguma outra situação.
“O fim de um relacionamento, um divórcio, a morte de um ente querido, até se formar na escola ou mudar de emprego pode tornar uma pessoa vulnerável, uma vez que tira o indivíduo de seu equilíbrio”, explica o psicólogo americano Steve Hassan. Ele passou 5 anos como membro de culto conhecido como “Igreja da Unificação”, composto pelos seguidores do reverendo Moon — também conhecidos como moonies. A seita ficou famosa justamente por seus métodos de recrutamento e acusações de lavagem cerebral.
“Eu tinha me separado de uma garota e, pouco tempo depois, fui abordado por três mulheres. Elas não falaram que eram de uma religião, que acreditavam que o reverendo Moon era o Messias, nada disso. Só falaram que faziam parte de um grupo de amigos espalhado pelo mundo e me convidaram para ir a um jantar grátis”, explica Hassan.
“A partir daí, foi um processo gradual. Ir lá e conhecer os amigos delas foi um passo. Voltar e jantar, outro passo. Ir a uma palestra, voltar no dia seguinte, mais um passo. Durante esse tempo, eles perguntavam várias coisas bem detalhadas sobre mim, e eu dava, voluntariamente, informações muito pessoais, sem perceber que estava entregando as ferramentas para que me manipulassem.” Hoje, Hassan faz palestras de conscientização e presta consultoria a pessoas em situação similar à por que ele passou.
Ele chama a atenção para o fato de que, quando esse processo começa, a vítima não fica sabendo para onde está sendo levada nem quais crenças e comportamentos vai adotar no final. Mas, para que essas novas convicções sejam estabelecidas, entra em ação a segunda arma usada para tirar o córtex pré-frontal do caminho: emoções fortes.
Emoção embutida
“Quando algo provoca uma reação emocional, o cérebro se mobiliza para lidar com ela, destinando poucos recursos a reflexões”, explica Kathleen Taylor, neurologista da Universidade Oxford, em seu livro Brainswashing — The Science of Thought Control (“Lavagem Cerebral — A Ciência do Controle Mental”, sem tradução para o português). É exatamente nessa hora que a emoção pode ser ligada a uma ideia.
Durante a Guerra Fria, por exemplo, tanto capitalistas quanto comunistas se valiam de uma paranoia intensa e generalizada para vender conceitos vagos, difíceis tanto de definir quanto de contestar — “liberdade,” “Estado,” “inimigo”. São ideias fortes, amplas o suficiente para você associar às emoções que quiser e que forem mais convenientes à manipulação.
Por isso se diz que a ideia é “engatada” à sensação: sempre que aquele assunto vier à tona, a sensação vem a reboque, num processo conhecido como reflexo condicionado. É o que acontece em um culto daqueles bem intensos, em que a pessoa dança, canta, grita, inunda o corpo de endorfina. Inconscientemente, a sensação de bem-estar passa a ser associada àquela religião.
Outro exemplo: um prisioneiro de guerra, depois de enfrentar tortura e jejum, é levado para tomar banho quente e fazer uma refeição enquanto escuta alguém descrevendo as maravilhas da doutrina comunista. Com a repetição do método, ele inconscientemente passará a associar comunismo a bem-estar. Se você se lembrou do filme Laranja Mecânica (1971), clássico do diretor Stanley Kubrick, acertou na mosca.
Na história, o personagem principal é um adolescente ultraviolento que se diverte torturando e estuprando por aí. Após ser preso, ele se oferece para um tratamento experimental que promete torná-lo um ser totalmente desprovido de violência.
O tratamento consiste em submetê-lo a sensações físicas desagradáveis e a imagens violentas ao mesmo tempo, forçando seu inconsciente a associar as duas coisas. No final, o personagem passa a sofrer insuportavelmente toda vez que vê tortura ou estupro. (O irônico efeito colateral é que ele também fica condicionado a vomitar quando ouve a 9ª Sinfonia de Beethoven, trilha sonora usada nos filmes da prisão.)
Esse processo não pode ser considerado lavagem cerebral, pois não muda as convicções do indivíduo. Mas é um exemplo extremo de como podemos ser condicionados a fazer relações inconscientes entre sensações e ideias.
Sob controle
Conquistada, a vítima se torna cada vez mais envolvida e dependente. O psiquiatra americano Robert P. Lifton, professor de universidades como Harvard e Yale, analisou esse processo, que ele chama de “reforma do pensamento”, e descreveu suas principais características (ver quadro “lavagem em 8 passos”, mais abaixo). Todas buscam criar um antagonismo claro: um mundo dividido entre “nós” e “eles”.
Segundo Hassan, a pessoa envolvida com esse tipo de grupo se vê aos poucos dominada por medos paralisantes que chegam ao ponto de impedir que ela questione a situação. “Os cultos de controle da mente passam a seus membros a sensação de que, se eles saírem do grupo, coisas terríveis vão acontecer. Para quem está observando de fora, parece que essas pessoas estão felizes. Acontece que, na verdade, elas são orientadas a sorrir o tempo todo. Não é uma experiência positiva perder seu livre-arbítrio, apagar sua identidade, viver com medo e com culpa.”
Vítimas de controle da mente aprendem a reprimir pensamentos “errados”, como dúvidas ou críticas ao grupo, e por isso é difícil que elas questionem sua situação. Quando lida com pessoas nesse estado, Steve Hassan costuma agir de forma indireta, perguntando, por exemplo, opiniões a respeito de outro grupo. Ele mesmo só saiu da Igreja da Unificação porque sofreu um acidente e teve que ser internado em um hospital. Seus pais aproveitaram a chance para fazer com que ele (contra sua vontade) conversasse com ex-membros do culto. “Aos poucos fui entendendo que tinha sido enganado”, lembra.
Se a história de Hassan parece muito fora da sua realidade, há um exemplo mais próximo de como é possível modificar uma pessoa a ponto de fazê-la agir contra seus instintos e convicções. Kathleen Taylor cita um sistema capaz de “transformar cidadãos — ensinados desde a infância que matar é errado — em agentes capazes de matar”: as Forças Armadas.
O processo de formação militar segue quase à risca as etapas descritas no modelo de Lifton, empregando rotina exaustiva, pressão psicológica, regras e punições rígidas e, claro, a definição de um inimigo. Isso chega ao extremo no treinamento de terroristas islâmicos, à la Al Qaeda, em que os ensinamentos militar e religioso se combinam para formar indivíduos dispostos a dar a vida em nome de uma causa.
Mas não são apenas grupos militares e religiosos que usam essas técnicas. Para o psicólogo, embora o controle da mente seja geralmente realizado por grupos, ele também pode acontecer de forma individual. Ele compara relacionamentos amorosos abusivos, em que a pessoa, influenciada pelo parceiro, passa a ter atitudes incompatíveis com as anteriores. “Esses relacionamentos podem incluir drogas, agressões físicas e isolamento da família e dos amigos. Às vezes, o apaixonado simplesmente desaparece sem dar notícias”, diz Hassan.
Mente blindada
Para a escritora Kathleen Taylor, a principal arma para evitar manipulações é, basicamente, “parar e pensar nas coisas”. Sem se deixar levar pela afobação, fica mais fácil resistir tanto ao discurso nacionalista de um político quanto ao papo emocional de um pregador religioso.
Segundo Denise Winn, autora do livro The Manipulated Mind (“A Mente Manipulada”, sem versão brasileira), um olhar bem-humorado sobre as coisas é útil para escapar da associação emocional exagerada, peça-chave da lavagem cerebral. “O humor ajuda você a ter perspectiva e sacar quem não tem. Desconfie de líderes, vendedores e experts que não conseguem rir de si próprios”, diz a jornalista.
Outro ponto importante é não subestimar a influência que o meio e a autoridade podem ter sobre nós, já medidos em experimentos clássicos de psicologia social. A necessidade de ser aceito em um grupo leva muitas vezes ao “efeito rebanho”, identificado na década de 1950 pelo psicólogo americano Solomon Asch e muito antes por quem inventou a expressão “maria-vai-com-as-outras”.
Asch fazia uma experiência bem simples: reunia um grupo de pessoas e mostrava a elas um cartão com uma série de linhas de comprimentos bem diferentes. Depois, fazia perguntas óbvias, como pedir que identificassem qual a linha mais longa. Todas as pessoas na sala, menos uma, tinham sido orientadas a escolher a mesma resposta — claramente errada. Surpreendentemente, 1 em cada 3 vítimas da “pegadinha” concordava com o grupo, mesmo sabendo que estava escolhendo a opção incorreta.
Em 1963, o psicólogo Stanley Milgram conduziu um experimento para medir autoridade. Universitários eram instruídos a aplicar choques elétricos cada vez mais fortes em um “voluntário” (na verdade um ator) toda vez que ele errasse a resposta a uma pergunta. O estudante era orientado por um pesquisador (outro ator), que dizia para que ele continuasse, independentemente do “sofrimento” da suposta cobaia — que, claro, estava apenas fingindo levar choques.
Quantas pessoas chegariam ao ponto de aplicar os choques poderosos, correndo o risco de matar o “voluntário”? Cerca de 1 ou 2%, imaginou Milgram. Resultado: dois terços dos estudantes levaram a experiência até o fim, obedecendo às ordens do “pesquisador” — a figura de autoridade prevista no esquema de lavagem cerebral de Lifton. O compromisso (a concordância em participar do experimento) aumentava gradualmente (choques cada vez mais fortes), envolvendo a vítima cada vez mais na situação, e tornando a saída (desistir e mandar o pesquisador para o inferno) cada vez mais difícil.
Outro fator que Kathleen Taylor cita em seu livro é que, quanto mais associações, ideias, opiniões, informações, experiências uma pessoa tiver, menos manipulável ela se torna. Desenvolver a criatividade, pensar sobre a vida, questionar o que é escutado e lido, aprender coisas novas, estudar as relações entre assuntos aparentemente não relacionados, tudo isso deixa o cérebro mais resistente a manipulações. Isso não significa apenas resistir a casos extremos de controle da mente mas também enxergar com senso crítico ao horário eleitoral, às conversas de bar e às mensagens publicitárias.
Claro, isso não significa que você precisa ter um pé atrás com toda opinião que for diferente da sua. Ser persuadido e mudar de ideia não tem problema nenhum. “Nossa vida social está construída sobre o controle psicológico que as pessoas têm sobre as outras. A todo momento influências externas fazem com que mudemos nossa atitude, dos aspectos mais banais aos mais sérios”, exemplifica o professor Cesar Ades, pesquisador do assunto na Universidade Católica de Goiânia. “Uma conversa com alguém que admiramos ou que tem autoridade sobre nós pode mudar de verdade nossas crenças.”
O importante é saber que nossa mente não está pronta e acabada, mas permanentemente em obras. Entender que somos influenciáveis e que nossa identidade é mutante nos torna mais espertos para avaliar uma tentativa de persuasão — com o córtex pré-frontal, por favor.