Ivonete D. Lucírio
Já se pode escolher o sexo dos bebês e selecionar embriões sem distúrbios graves. Daqui a algum tempo será viável até alterar as suas características genéticas. Para o bem ou para o mal, a humanidade está se tornando capaz de decidir como serão os novos habitantes do planeta.
Daqui para a frente a vontade de ter um menino ou uma menina não é mais um mero desejo. É uma ordem. Em setembro, a clínica americana Genetics & IVF Institute anunciou ter conseguido separar os espermatozóides com o cromossomo X – que geram garotas – dos que carregam o Y e fazem nascer rapazes. Uma fecundação artificial foi feita apenas com os espermatozóides X. Aí, dos quatorze casais que haviam pedido bebês do sexo feminino, treze conseguiram. Agora a Genetics promete, em alguns meses, tornar o método acessível a todo papai e toda mamãe ansiosos por burlar a seleção natural. Inclusive famílias brasileiras. Embora a empresa não divulgue quanto vai cobrar pela satisfação paterna, sabe-se que, nos testes realizados, cada par de pais desembolsou 2 500 dólares.
Isso é bom para a humanidade? “As novidades chegam tão depressa que não temos tempo de digeri-las”, disse à SUPER o biólogo americano Lee Silver, da Universidade de Princeton. Um dos mais respeitados microbiologistas do mundo, ele é autor de um livro importante sobre o assunto, Remaking Eden (algo como “refazendo o Éden”, ainda não traduzido para o português), no qual analisa como os novos conhecimentos da Biologia “poderão transformar a família americana”. Silver explica que a escolha do sexo é apenas o começo, pois, não demora muito, os médicos vão aprender a mexer diretamente nos genes dos embriões e, assim, alterar os seus traços hereditários. Os pais vão poder decidir se querem que seus filhos nasçam mais resistentes a infecções, mais bonitos ou mais inteligentes. “Esse tipo de manipulação genética estará disponível dentro de uns vinte anos”, avalia outro craque da microbiologia, o americano Gregory Stock, da Universidade da Califórnia. Nas próximas páginas você vai entender o que já está sendo feito, o que vai ser possível fazer e os profundos dilemas éticos envolvidos nessas descobertas.
O truque das cores
Por meio de uma técnica chamada FISH é possível colorir os espermatozóides e diferenciar os que vão gerar menino ou menina. Nesta imagem, que é uma simulação do exame, os espermatozóides foram coloridos no computador
Pra valer
Esta é a imagem verdadeira, obtida durante a experiência feita este ano pelo Genetics & IVF Institute. As “bolotas” que apresentam o brilho cor-de-rosa são espermatozóides contendo o cromossomo X e, por isso, vão gerar um feto do sexo feminino
Para escolher o sexo, basta filtrar o sêmen
Em 1993, a clínica americana Genetics & IVF Institute começou a recrutar casais que queriam escolher o sexo do seu bebê. Todos os inscritos estavam na faixa dos 30 anos e tinham interesse em ter uma menina. Dos catorze que fizeram o teste, só um não conseguiu o que queria, nascendo um garoto. Já se sabia, desde o início, que havia essa possibilidade de falha, pois a eficiência da técnica não é de 100%. A clínica americana chegou bem perto disso, com 92,9% de sucesso.
A margem de erro existe porque a separação dos espermatozóides depende de uma diferença muito sutil entre eles: dentro dos que carregam o cromossomo X, há 2,8% mais de DNA, em comparação com os que carregam o Y. É por trabalhar com uma disparidade tão pequena que a técnica nem sempre acerta. E a falha teria sido ainda maior se, em vez de meninas, a Genetics tentasse escolher meninos, pois é mais difícil separar os espermatozóides que têm uma quantidade muito reduzida de DNA do que aqueles que têm excesso.
Vacas e cavalos foram os pioneiros
A técnica de separação dos espermatozóides já é conhecida há alguns anos. Ela foi criada por cientistas do Ministério de Agricultura americano para fazer a seleção de sexo em sêmen de bois e cavalos. Nesses animais, a quantidade de DNA varia mais do espermatozóide X para o Y do que nos humanos. Portanto, a separação é mais fácil. Os cientistas da clínica americana conseguiram aperfeiçoar essa técnica. Mas, por motivos comerciais, eles não revelam qual foi a alteração que levou à possibilidade de separar espermatozóides humanos com eficiência.
Dentro de alguns meses, depois de ajustes na técnica, os futuros papais interessados, em qualquer canto do mundo, terão acesso ao serviço. “Basta contatar um médico que tenha convênio com o Genetics & IVF Institute”, diz Suzanne Seitz, assessora de imprensa da empresa. O esperma terá de ser congelado e enviado, por um simples malote, para Fairfax, no Estado da Virgínia. Feita a filtragem, ele toma o caminho de volta. O pacote conterá um filho virtual de sexo pré-definido que dará origem a uma criança de verdade.
Diferença está na luz
A clínica americana seleciona espermatozóides com ajuda de um raio laser.
1. Banho cintilante
O primeiro passo é colocar o sêmen num tubo de ensaio com uma substância fluorescente que faz o DNA do espermatozóide brilhar. Quanto mais DNA, maior o brilho.
2. Agulha adentro
O brilho é captado por uma máquina chamada citômetro de fluxo. Tudo preparado, os espermatozóides são sugados um a um por uma agulha.
3. O X brilha mais
Como o espermatozóide com cromossomo X, que gera menina, tem cerca de 2,8% a mais de DNA, reluz com intensidade maior ao passar por um facho de laser.
4. Os selecionados
Na última etapa, um dispositivo chamado sorter desvia os cromossomos X para um segundo tubo de ensaio.
5. Só para garantir
Um novo teste serve para mostrar se a separação funcionou. Alguns dos espermatozóides selecionados recebem outra dose de corante, que se encaixa cromossomo X. Se eles emitirem cor rosa, a separação foi eficiente.
Da seleção artificial à alteração genética
Não é apenas o sexo que já pode ser pré-definido. O desejo de evitar o nascimento de crianças com males incuráveis levou à criação de outras duas técnicas de escolha. Por meio da primeira, é possível enxergar os cromossomos dentro das células de um embrião. Com isso, verifica-se a presença de algum defeito causador de doença grave, como a síndrome de Down, que provoca retardamento mental (veja no infográfico à esquerda). “O exame dos cromossomos também é usado para contornar males como a hemofilia”, acrescenta o médico Eduardo Motta, do Huntington Centro de Medicina Reprodutiva, em São Paulo.
A doença pode ser detectada nos genes maternos e afeta apenas os filhos homens. Aí, basta observar os cromossomos do embrião, dois dias depois da fecundação, para saber o sexo do futuro bebê. Se ficar claro que vai nascer menina, não há problema. Senão, o embrião é descartado. Aliás, só em casos terapêuticos a legislação brasileira autoriza a seleção de embriões.
A segunda técnica consiste em examinar não os próprios cromossomos, mas a molécula de DNA que está dentro deles. Pode-se ver, dessa maneira, se há incorreções genéticas que levam a diversas enfermidades, como a fibrose cística e a adenoleucodistrofia (veja à direita). Se houver, corta-se o mal pela raiz. “Optamos por implantar embriões saudáveis e descartamos os que apresentam problemas”, diz o médico Thomaz Gollop, do Instituto de Medicina Fetal e Genética Humana, em São Paulo. Até agora, os médicos conseguem apenas enxergar as características dos embriões, mas estão aprendendo a modificá-las, mexendo diretamente nos genes. “Assim, vai ser possível intervir e corrigir os defeitos”, anima-se o geneticista Marcos Aurélio Sampaio, da Clínica Origem, em Belo Horizonte (MG).
Um gatilho contra o câncer
É a terapia genética aplicada aos que vão nascer. Ela poderá eliminar doenças de diversos tipos. O biologista molecular John Campbell, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, imagina que seria possível poupar um futuro cidadão de ter câncer quando ele ainda estiver no estágio de um ovo – que é um óvulo já fertilizado. A solução seria introduzir nesse ovo um gene capaz de interromper o crescimento de qualquer tumor. O gene ficaria desligado até o câncer se manifestar, e só então seria ativado por uma substância-gatilho a ser tomada na ocasião.
A hipótese impressiona pelo benefício que traria, mas também pela complicação que acarreta. É que, ao introduzir um gene num ovo, ele passaria a agir não apenas no bebê gerado por esse ovo, mas também nos filhos dessa criança e nos filhos desses filhos. Em outras palavras, estaria dado o primeiro passo para criar uma geração de seres alterados geneticamente. Tudo bem, Campbell está pensando numa cura. Mas e se o objetivo fosse criar uma geração mais bonita, mais inteligente ou meramente mais adequada a certos padrões de comportamento?
Embriões cintilantes
Um exame avalia a saúde das primeiras células do futuro organismo.
1. Um exemplo
Dois dias depois da fertilização, extraem-se células para analisar alguns dos cromossomos em seu núcleo.
2. Embrião colorido
Sob a ação de corantes, os cromossomos emitem luz visível ao microscópio (detalhe). O brilho mostra se aparecem aos pares. Do contrário, há anormalidade.
3. A escolha
Os três cromossomos 21, neste caso, indicam síndrome de Down. Os cromossomos X e Y, que definem o sexo, também podem ser vistos.
O que dá para evitar
O exame genético de embriões já pode antecipar centenas de doenças. Veja as principais.
Distrofia de Duchenne: degeneração dos músculos.
Fibrose cística: o pulmão e o pâncreas funcionam mal.
Talassemia: anemia e atraso no crescimento.
Adenoleucodistrofia: perda da visão e da coordenação muscular.
Síndrome de Patau: cabeça grande, lábio leporino e número anormal de dedos.
Síndrome de Turner: mulheres com estatura baixa, pescoço curto e inférteis.
Síndrome de Down: deficiência mental.
Síndrome de Edwards: musculatura tensionada, dificuldade em abrir a mão e a boca.
Coréia de Huntington: perda precoce de memória e da coordenação motora.
Um olhar mais próximo
Por este teste é possível ver se os genes estão em boas condições.
1. Só uma célula
Retira-se uma célula de um embrião de dois dias. Do seu núcleo, extrai-se todo o DNA.
2. Gene conhecido
Verifica-se se há algum gene com defeito conhecido, isto é, sabidamente causador de alguma doença. Esse gene, então, vai ser examinado.
3. Tamanho GG
Por ser muito pequeno, o gene não poderia ser visto. Antes, precisa ser copiado por meio de proteínas. São feitas até 10 000 cópias.
4. Corrida maluca
O gene é colocado numa gelatina junto com um pedaço de DNA sadio, que recebe uma força eletromagnética, capaz de mover as duas amostras. Se percorrerem o mesmo espaço no mesmo tempo é porque o DNA do embrião é normal.
Só embrião saudável tem direito de nascer?
Até que ponto um homem ou uma mulher devem intervir nas características dos seus filhos e filhas? Para o geneticista Oswaldo Frota Pessoa, da Universidade de São Paulo, não há limite. “Não vejo nada de errado na idéia de produzir indivíduos mais bonitos e mais saudáveis”, afirma ele. “Todo mundo quer ter filhos maravilhosos e esse será o futuro.” Em teoria, a questão parece simples. Mas, na prática, a legislação brasileira proíbe qualquer intervenção sobre o patrimônio genético sem fins terapêuticos. Imagine que você queira mexer nos genes de seu filho para torná-lo mais bonito, como disse Frota Pessoa. Não pode. Pela lei, só estão autorizadas as alterações nos genes humanos destinadas a eliminar defeitos que causem problemas à saúde.
Acontece que a lei, nesse caso, reflete a profunda preocupação que causa, em muitos setores da sociedade, o uso indiscriminado dos novos conhecimentos científicos. “Há quem considere imoral descartar embriões para evitar o nascimento de crianças doentes, da mesma forma como se acredita ser imoral fazer um aborto”, diz Tristram Engelhardt, do Centro de Ética Médica do Baylor College of Medicine, no Texas, Estados Unidos.
Igreja é contra dispensar embriões doentes
É uma objeção que a Igreja Católica assina embaixo. “O fato de escolher o sexo ou a condição de saúde de uma criança significa deixar de aceitá-la incondicionalmente como pessoa”, diz o padre Márcio Fabri, diretor do Instituto Alfonsianum de Ética. O seu ponto de vista se baseia nos ensinamentos da encíclica Sobre o Valor e a Inviolabilidade da Vida Humana, divulgada em março de 1995 pelo papa João Paulo II. Mas a Igreja Católica não é refratária a qualquer tipo de intervenção. A mesma encíclica aceita que se manipulem os genes do embrião para evitar um mal. Em compensação, não admite nem a fertilização de proveta nem que algum embrião, mesmo se fecundado por meios naturais, seja eliminado para que outro nasça perfeito. “Tal atitude seria vergonhosa e profundamente repreensível porque presume medir o valor da vida humana”, diz a encíclica.
Diante das várias maneiras de ver a questão, Marco Segre, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, parece procurar uma forma de conciliação. “Nenhuma tecnologia, em si mesma, é ética ou antiética”, argumenta ele. “Tudo depende do uso que dermos a ela. E, enquanto visarmos o bem-estar da humanidade, estaremos no caminho certo”.
Para saber mais
Remaking Eden, Lee Silver, Avon, Nova York (USA), 1998
Fundamentos da Bioética, H. Tristram Engelhardt Jr., Edições Loyola, São Paulo, 1998
Na Internet: https://www.givf.com/microsort.html
Fonte de controvérsias
Principais argumentos contra e a favor da seleção de espermatozóides, da seleção de embriões e da manipulação genética.
Escolha do sexo das crianças
CONTRA
Pode ocorrer um desequilíbrio entre homens e mulheres, aumentando demais o número de uns ou de outros.
A FAVOR
Se a população de um dos gêneros começar a diminuir, ele passará a ser mais valorizado, voltando-se ao equilíbrio.
Seleção de embriões saudáveis
CONTRA
O sucesso da durabilidade da raça humana está na diversidade de suas características, inclusive doenças.
As crianças pobres, a longo prazo, serão menos saudáveis porque seus pais não poderão pagar pela técnica, que é cara.
A FAVOR
Pouca gente opta por essa técnica (apenas 0,5% nos Estados Unidos) e, por isso, ela não vai afetar a diversidade.
As crianças com maior poder aquisitivo têm acesso aos melhores planos de saúde e ninguém contesta esse direito.
Manipulação dos genes dos embriões
CONTRA
Há o risco de alguém tentar criar uma “raça superior”, com características que se acreditam ser melhores do que outras da espécie humana.
Sabe-se pouco sobre a modificação dos genes. Por isso, ela pode trazer conseqüências imprevisíveis para a humanidade.
A FAVOR
É uma possibilidade bastante remota, já que todas as pesquisas de hoje se voltam para questões de saúde.
Antes que a engenharia genética passe a ser usada em humanos, serão realizados exaustivos testes em animais.