Declinações: a propriedade linguística peculiar que o português perdeu
Em latim, as palavras mudam de forma conforme a função delas na frase. E isso acontece em muitas outras línguas até hoje.
Este é o terceiro texto da série “A vida secreta das palavras”, que está na edição de outubro de 2024 da Super. Leia aqui a segunda parte, e fique de olho nos próximos capítulos.
Uma piadinha favorita dos jornalistas é que “cachorro mordeu homem” não é manchete, mas “homem mordeu cachorro” merece capa.
Em português, a ordem em que as palavras aparecem na frase nos diz qual é a função delas. Sabemos que homem levou a dentada na primeira frase porque a palavra “homem” vem depois do verbo “morder” (seu professor de português diria que o homem é o objeto da ação). Já na segunda frase, o homem aparece antes do verbo, o que o torna o autor da mordida – o sujeito.
Dá para imaginar um jeito diferente de organizar a língua. E se usássemos algumas letrinhas para indicar quem faz o quê? Suponha que você precise adicionar um “a” ao sujeito da ação e um “b” ao objeto para identificá-los. A frase fica “homema mordeu cachorrob” quando é o homem que morde. E “cachorroa mordeu homemb” quando é o cachorro que morde.
O interessante dessas letrinhas é que elas permitem embaralhar a frase sem nenhum prejuízo para o significado. Você pode dizer “cachorrob mordeu homema” e o homem ainda será o autor da mordida, mesmo que “homem” apareça depois do verbo.
A função sintática (ou seja, se uma coisa é sujeito ou objeto, se ela morde ou é mordida) deixa de depender da posição da palavra, e passa a ser indicada pela letrinha. É uma etiqueta, essencialmente.
Parece estranho, mas é assim que o latim e o grego funcionavam. E é assim que muitas línguas funcionam até hoje, do alemão ao quéchua falado nos Andes. Essas terminações diferentes se chamam declinações.
Na vida real, elas são bem mais complicadas do que uma simples distinção entre sujeito e objeto. Existe o nominativo (para sujeitos), o acusativo (para objetos diretos), o dativo (para objetos indiretos) e até o genitivo (para indicar que alguém é dono de alguma coisa). O húngaro tem 18 casos diferentes, o finlandês tem 15.
Os falantes nativos, é claro, absorvem essas regras intuitivamente. Prova disso é que você já absorveu uma sem perceber.
Como a gramática do português atual não declina substantivos, a declinação mais conhecida entre nós provavelmente é o genitivo em inglês, que consiste simplesmente em adicionar um “s” ao final da palavra para dizer que ela é dona de alguma coisa: Pedro’s house é a casa de Pedro, enquanto McDonald’s é o restaurante de uma pessoa chamada McDonald.
Nem todo estabelecimento, é claro, sacou a lógica. O lendário nome Krep’s Suíço – que dá as caras em mais de vinte cidades brasileiras – diz que o crepe é dono do suíço, e não que o suíço é dono do crepe. Em Palhoça (SC) existe o Krep’s Suiço, Churros + Câmbio. Já Maringa (PR) abriga o Krep’s Suísso Pastelaria. Por sua vez, Bertioga (SP) é lar do Churros Krep’s Suisso.
De maneira muito simplificada, os linguistas chamam de “analíticas” as línguas em que você precisa adicionar uma palavra nova à frase toda vez que quer adicionar uma ideia nova. Por outro lado, as línguas que vão adicionando terminações e outros penduricalhos às palavras são chamadas de “sintéticas”. O Krep’s, quem diria, é assaz sintético.