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Comer com todos os sentidos

Saiba como os sentidos influenciam a percepção da comida.

Por Priscila Lambert
Atualizado em 25 nov 2016, 16h54 - Publicado em 31 Maio 2003, 22h00

As sensações de uma feijoada ou de uma torta estão longe de se limitar ao que a língua percebe. A degustação envolve um mecanismo sensorial complexo, resultante da interação entre gosto, aroma, aparência, consistência e temperatura da comida

O paladar é, obviamente, um sentido muito exercitado no ato de comer. Por muitas décadas, os livros de ciência registravam a existência de apenas quatro gostos básicos: doce, salgado, amargo e azedo. Um quinto gosto, o umami, identificado por cientistas japoneses há um século, passou a ser universalmente aceito recentemente, após pesquisas encontrarem, na língua humana, receptores específicos para esta substância. O umami define o gosto dos glutamatos – o glutamato monossódico, conhecido comercialmente por aji-no-moto, é o mais famoso deles.

Alguns pesquisadores defendem a existência de inúmeros outros gostos – como o alcaçuz (composto pelo ácido glicirrízico) – diferentes dos gostos catalogados. Mas as pesquisas realizadas com essas substâncias ainda não foram consistentes a ponto de sensibilizar a comunidade científica internacional.

As pesquisas sobre fisiologia do gosto começaram a avançar somente a partir do final dos anos 90. Até então, cientistas acreditavam que a língua estava dividida em regiões específicas para cada gosto – o doce era detectado por células receptoras situadas na ponta da língua, o salgado nas laterais anteriores, o ácido nas laterais posteriores e o amargo no fundo da língua. Estudos recentes comprovam, no entanto, que as papilas gustativas (grupo de células sensíveis que possuem receptores para o sabor) estão espalhadas por toda a língua e têm, em seu interior, receptores para todos os gostos. Ou seja: podemos sentir os cinco gostos em qualquer região da língua que tenha papilas gustativas. Também há papilas na faringe e no palato, embora em concentrações muito inferiores do que na língua.

Quando colocamos comida na boca e mastigamos, misturamos o alimento com a saliva, que começa a dissolvê-lo. As papilas gustativas, em contato com as moléculas dessas substâncias, enviam, por meio de neurônios, os estímulos até o cérebro, que interpretará as sensações causadas pelos diferentes gostos.

Um alimento só tem gosto se for composto de moléculas solúveis na água, de forma que se difunda por meio da saliva até as papilas gustativas. Para ser saboroso, o alimento deve ainda ser composto de partículas voláteis (que evaporam), para que espalhem o aroma por nossas vias olfativas. O chuchu praticamente não tem gosto porque é pobre em compostos voláteis (quase não tem cheiro) e muito rico em água, que não tem partículas solúveis em sua composição.

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A importância do aroma

O olfato é o principal responsável pela sensação que temos ao apreciar um alimento. Para confirmar, faça um teste. Tape o nariz e experimente colocar qualquer alimento na boca. Você sentirá apenas o gosto do alimento – com o nariz entupido, só é possível detectar se é doce, salgado, ácido, azedo ou umami. Mas não se pode dizer se é cítrico, herbal, frutal, floral, nem definir qual é o alimento.

O poder do olfato sobre o paladar se explica em parteE pelo fato de termos cerca de um milhão de terminações nervosas no nariz, contra cerca de 100 000 na boca. De acordo com especialistas, um ser humano treinado pode distinguir aproximadamente 10 000 odores diferentes e até 20 níveis de intensidade de cada um.

Tá quente, tá frio

Há vários motivos que tornam uma feijoada intragável se servida fria ou um café intolerável se gelado. O principal deles é o fato de que a temperatura elevada possibilita a maior liberação de moléculas aromáticas. A falta daquela fumacinha na feijoada dificulta o estímulo do apetite e torna o sabor incompleto, pela ausência do aroma. No caso do café, como o perfume diminui, acabamos atentando mais para o seu gosto amargo.

A temperatura pode também modificar a composição química dos alimentos, o que causa alteração em seu sabor. Por isso os gastrônomos preparam o cozimento com precaução. “Um aquecimento exagerado e os aromas abandonam o prato ou são degradados em moléculas eventualmente acres ou amargas”, afirma Hervé This em seu livro Um cientista na cozinha.

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De acordo com a farmacêutica bioquímica Helena Maria Cardello, pós-doutoranda em Engenharia de Alimentos na área de análise sensorial da Universidade de Campinas (Unicamp), os alimentos e as bebidas servidas em temperaturas muito baixas reduzem a irrigação do sangue na língua, fazendo com que tenhamos a percepção do gosto reduzida, como se nossas papilas gustativas estivessem anestesiadas.

Cores e sabores

O paladar é diretamente sugestionado pela cor. As cores vibrantes (vermelho, laranja, amarelo) despertam e estimulam nosso paladar. Já cores como azul, verde, marrom e preto são consideradas menos estimulantes. Conforme explica a psicóloga Ana Cristina Menezes, professora na área de gastronomia, os alimentos de cores quentes são nossos preferidos porque essas cores “preenchem” psiquicamente nossas carências.

Para César Addes, etólogo (especialista em comportamento animal) do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), a percepção da cor está relacionada ao uso que o homem faz dela. De acordo com ele, as cores existem na natureza para atrair a atenção dos animais. “As frutas, com suas cores chamativas, quentes, pedem para serem colhidas, porque assim nós disseminamos suas sementes e propagamos sua espécie”, diz ele. Addes afirma que o homem, por ser racional, tem a capacidade de subverter essa ordem, sofisticando seu gosto ao aprovar experiências novas com alimentos nem tão atrativos – a feijoada, uma mistureba quase preta, serve mais uma vez como exemplo.

A influência da cor sobre o nosso paladar é tão forte que pode acabar confundindo o gosto dos alimentos. Foi o que ocorreu certa vez na cozinha experimental do Hospital das Clínicas de São Paulo. Segundo a nutricionista-chefe, Andréa Jorge, o departamento desenvolveu uma mistura composta de uma proteína de soja, tornada marrom com a inclusão de pasta de ameixa e caramelo. Em uma degustação, muitos disseram que a pasta era chocolate. “Isso acontece porque temos uma memória sensorial que é evocada antes que os outros sentidos. O aspecto pode enganar o gosto”, afirma. A indústria de alimentos já entendeu esse recado: a margarina, por exemplo, é tingida de amarelo para parecer manteiga.

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O fator “croc”

Se a textura de um alimento não agrada, de nada vale seu gosto. As bolachas devem ser quebradiças, as carnes devem ser macias, a cenoura crua deve ser suficientemente dura para fazer barulho ao mastigarmos. É aí que entra a audição. Que importa o gosto de uma cream cracker se ela não fizer um “croc” ao ser mastigada? Quem se aventurará a tomar um espumante que não faça borbulhas que possamos ver e ouvir? Nossa memória sensorial nos ensinou que, se não estiverem com a textura padrão e se não fizerem ruídos, alguns alimentos estarão velhos, impróprios para consumo.

Educar o paladar?

Médicos e gastrônomos são unânimes ao afirmar que não é preciso nascer com olfato ou paladar privilegiados para se tornar um bom degustador. A receita é treinar. Por isso, nutricionistas aconselham que os pais ofereçam uma grande variedade de alimentos para bebês com mais de seis meses de idade. Assim, com o passar do tempo, eles provavelmente não terão problemas de rejeição a certos pratos.

Os estudiosos do assunto têm na ponta da língua uma explicação científica para a apuração do gosto. “No processo de aprendizagem do paladar ocorre a manutenção das vias mais ativas em detrimento das menos utilizadas. Se os receptores para os gostos são sempre estimulados, tendem a trabalhar com mais afinco”, diz Gerson Ballestre, professor de Neurofisiologia da Faculdade de Medicina da USP.

Isso explica por que crianças torcem o nariz para folhas amargas, café e pimenta e, em muitos casos, passam a gostar depois de adultos. Quando crescem, são levadas a provar outras vezes, até que a percepção mude. “Quanto mais comemos alimentos amargos, mais percebemos suas nuanças. A dica é explorar toda paleta de possibilidades do nosso paladar”, afirma o crítico gastronômico Josimar Melo.

Os bebês possuem cinco vezes mais papilas gustativas que os adultos. Mas as células são imaturas e não têm muita sensibilidade. Pesquisas apontam que a preferência pelo doce é inata – uma das explicações, segundo Helena Cardello, é o fato de os fetos se alimentarem de líquido amniótico, que é doce.

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