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Cocaína em rios europeus está deixando enguias doidonas – e muito doentes

A droga pode degenerar os músculos desses peixes – e acabar impedindo uma das migrações mais épicas do oceano Atlântico

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 12 mar 2024, 09h33 - Publicado em 28 jun 2018, 15h05

Quase tudo que o ser humano usa, de cotonetes a ácido sulfúrico, vai parar em um rio eventualmente. Drogas não são exceção. No trecho do rio Tâmisa que corta Londres, a concentração de benzoilecgonina (um resquício metabólico que sai na urina de quem consome cocaína) é de 17 bilionésimos de grama por litro de água. Uma análise feita no rio italiano Pó em 2005 revelou que ele dá vazão a 4 kg de cocaína diariamente – o trocadilho fica por conta do leitor.

Quem não gosta nada dessa história são os peixes. Mais especificamente, as enguias de uma espécie com nome científico engraçado: Anguilla anguillaUm artigo científico publicado na semana passada demonstrou que a cocaína, na concentração que é encontrada nos rios europeus, causa inchaço e disfunções nos músculos e torna esses animais hiperativos – o que poderia impedi-los de completar as loucas migrações que eles fazem para se reproduzir. 

As enguias testadas em laboratório foram colocadas em água com 20 bilionésimos de cocaína por litro – uma concentração residual condizente com a verificada em rios de verdade. Outras enguias, que serviram de referência, ficaram em água pura, sem contaminantes. Após 50 dias de exposição à droga, as narcóticas arriaram: exibiram sintomas similares aos de uma condição chamada rabdomiólise, em que as fibras musculares se desintegram. Outro problema é que, graças ao aumento da concentração de cortisol, o hormônio do stress, elas pararam de acumular reservas de gordura – que são essenciais para suportar viagens aquáticas longas. 

Nem 10 dias de rehab em água limpa ajudaram: os danos são praticamente irreversíveis. “Todos os tecidos afetados tem funções essenciais para a sobrevivência das enguias”, afirmou ao The Guardian Anna Capaldo, pequisadora da Universidade de Nápoles Federico II que liderou o estudo. “Guelras debilitadas podem reduzir a capacidade respiratória, um músculo avariado pode afetar a habilidade de nadar.”

É claro que qualquer peixe que esteja em risco por causa de contaminação é motivo de preocupação. Mas as enguias europeias são um caso especialmente delicado porque dependem da capacidade de nadar para fechar seu ciclo reprodutivo e perpetuar a espécie. Entenda abaixo:

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Enguias transatlânticas

Você já viu um filhote de pombo? Pois é, eu também não. Mas que eles existem, existem. Afinal, tudo que é vivo já foi bebê um dia. Por uns bons séculos, os pescadores dos rios europeus devem ter feito uma piada parecida com as enguias. Elas davam a impressão de já vir de fábrica adultas, esbanjando comprimento. Ovos de enguia? Enguias adolescentes? Ninguém nunca tinha visto (ou melhor, pescado).

Foi só em 1920 que um biólogo dinamarquês chamado Johannes Schmidt matou a charada. Os bebês de enguia europeia existiam – só não viviam na Europa. Na verdade, a dita cuja está mais para Pokémon do que para peixe: muda de forma e habitat várias vezes ao longo da vida. Acompanhe a história: 

Os ovos de enguia eclodem em uma região do Atlântico próxima ao litoral americano chamada “mar de Sargaços”. Nessa velha infância, elas são discretas: larvas de poucos centímetros, transparentes e achatadas, que atendem pelo nome de leptocéfalos. Os leptocéfalos são tão diferentes de sua versão adulta que, por muito tempo, ninguém percebeu que eles e as enguias na verdade eram duas fases da mesma coisa. Eles eram simplesmente classificados como outro animal, de nome científico Leptocephalus brevirostris. 

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Só depois que o quebra-cabeça reprodutivo foi montado que ficou claro o que acontecia. As pequenas larvas, nadadoras talentosas, cruzam o oceano sempre próximas à superfície, se alimentando de pequenas partículas orgânicas até alcançar a Europa. A viagem, impulsionada por correntes marítimas, leva 300 dias.

No litoral, ainda mergulhadas em água salgada, elas crescem até atingir o próximo estágio evolutivo, chamado “enguia-de-vidro”, ou meixão. Nessa altura, penetram na foz dos rios, e nadando contra a corrente, passam a viver em água doce. O meixão é cobiçado por restaurantes, e sua pesca excessiva em países como Portugal compete pau a pau com a cocaína na longa lista de ameaças às enguias. 

As enguias ainda passarão por um estágio – chamado “enguia-amarela” – até estarem prontas para se reproduzir. Neste ponto, se tornam enguias prateadas, adultas e com quase um metro de comprimento, e começam a acumular reservas de gordura para aguentar a longa viagem de volta para o Atlântico, onde deixarão os ovos. É aí que os músculos se tornam tão importantes: elas precisam voltar para o mar de Sargaços em um pique só, sem parar sequer para comer. Chegando lá, morrem logo após a reprodução, fechando o ciclo.

Os pesquisadores afirmam que ainda são necessários mais estudos para descobrir o quanto a cocaína realmente afeta as enguias em rios reais, fora do ambiente experimental – e por que a droga é tão nociva para o organismo desses animais em particular. As perspectivas, porém, não são animadoras. Afinal, além de substâncias ilícitas, a água também tende a estar contaminada com pequenas concentrações de metais pesados, pesticidas e antibióticos. Um coquetel de porcarias sutis que não dá espaço para otimismo.

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