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Cachorro,eu sou um canalha

Por trás dos grandes olhos meigos e da cara fofa de um cachorro pode estar escondido um parasita sem escrúpulos

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h33 - Publicado em 31 jan 2001, 22h00

Mariana Mello e Denis Russo Burgierman

O chupim é um passarinho que põe seus ovos no ninho do tico-tico. O filhote, quando nasce, às vezes mata seus irmãos adotivos para que sobre mais comida para ele. Outras vezes, fura os olhos dos pequenos tico-ticos para diminuir a competição. Os pais, iludidos, alimentam e cuidam do canalhinha como se fosse seu próprio. Moral da história: o tico-tico é um bicho idiota, certo? Nós, humanos, com toda nossa inteligência, jamais nos deixaríamos iludir por um truque tão barato.

Não é bem assim. Há um animal que mata centenas de humanos a dentadas todos os anos. Só em São Paulo, esse bicho fere 23 000 pessoas a cada 12 meses. Além disso, enche nossas ruas de cocô – nos Estados Unidos são 2 milhões de toneladas anuais, o que equivale à produção brasileira de trigo. Sem falar no 1 bilhão de litros de xixi que eles deixam todo ano nos quintais americanos, nas ruas, nos tapetes e nas camisas brancas que acabamos de lavar. Tanta urina daria para encher todas as garrafas de vinho produzidas no ano passado na Itália, na França, na Espanha e nos Estados Unidos juntos. Essa sujeira consome incontáveis recursos dos serviços humanos de saneamento urbano. E, por falar em dinheiro, gastam-se, ainda nos Estados Unidos, 7 bilhões de dólares por ano para tratar da saúde desses monstrinhos. É dinheiro para cachorro. Fala a verdade: depois de ouvir isso, o chupim nem parece tão aproveitador assim, não é?

Esse bicho crudelíssimo é o cão. Isso, ele mesmo, o seu melhor amigo. Esse mesmo meliante que aparece na foto aí à esquerda olhando para você com cara de bonzinho. Aquele que é louvado incessantemente como “o mais fiel dos animais”, “o bicho mais sensível e inteligente”. Segundo o químico e jornalista científico americano Stephen Budiansky, autor de The Truth About Dogs (A verdade sobre os cães, ainda inédito no Brasil), os nossos bons amigos na verdade não passam de parasitas sociais. Iguaizinhos aos chupins…

Calma, caro leitor amante de cães. Não é hora de arremessar a revista pela janela (ou de entregá-la ao seu pitbull esfomeado). A Super não está endossando uma sórdida campanha contra os cachorros do mundo. Os jornalistas que vos falam, aliás, são ambos felizes proprietários de fofos cachorrinhos. E Budiansky, autor do livro, tem três lindos cães pastores, que ele adora (e que não pararam de latir enquanto tentávamos entrevistá-lo por telefone). “O problema, na verdade, não é com os cães, mas com os donos”, diz ele. “Os humanos têm que aprender a tratá-los como o que são e não como ‘pequenas pessoas peludas’. Por isso é tão importante a ciência desvendar os mecanismos que eles usam para se aproveitarem de nós.”

O mais eficiente desses mecanismos é a fofura. Assim como o instinto maternal da mamãe tico-tico não consegue resistir a um pássaro pelado e faminto gritando esganiçadamente, nem o mais insensível dos humanos fica impassível diante de um bicho com olhos carentes e arregalados, cabeça grande em relação ao corpo e pele macia. Fácil entender por quê: nossos bebês são assim. Ao longo dos milênios, a evolução favoreceu os humanos que se enterneciam com a fofura alheia porque esses cuidavam melhor de seus rebentos, que, por isso, sobreviviam mais às intempéries, propagando os “genes da bondade”. Esses genes permitiram que nossa espécie sobrevivesse, mas nos tornaram mais bobos. Viramos presa fácil de espécies fofas que se aproveitam de nossa hospitalidade.

Quando nossos ancestrais começaram a se fixar em pequenas comunidades, havia lobos em volta das aldeias, sempre à espera de algum resto de comida. Os homens daquele tempo não gostavam desses animais, achavam-nos sujos, transmissores de doenças, traiçoeiros. O tempo passou e os lobos mais bravos mantiveram-se à distância e continuaram caçando para comer. Enquanto isso, os menos agressivos e com aparência mais fofa começaram a se aproximar e se deram bem: encontraram montes de lixo à sua disposição e aprenderam a viver de nossas sobras. Ao longo dos milênios, os lobinhos mais meigos, mais infantilizados, ganharam nossa simpatia e foram conseguindo chegar ainda mais perto até que entraram nas nossas casas. Ou seja, não fomos nós que os escolhemos para cuidar de nossos rebanhos ou para vigiar nossas propriedades. Eles é que nos escolheram. E a meiguice foi uma adaptação da espécie para que nós, humanos, os deixássemos se aproximar.

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Esses bichos meigos ficaram incapazes de caçar porque não tinham agressividade suficiente. Mas mantiveram alguns dos instintos de seus ancestrais lobos, que vigiam suas presas, atacam, matam e comem. Os cães pastores, por exemplo, ainda preservam a primeira etapa. Eles são ótimos em vigiar. Passam horas encarando as ovelhas e demonstram um prazer enorme em fazer isso, mas jamais conseguem passar dessa fase: nunca atacam e muito menos matam as presas. Um bicho assim, no meio dos lobos, morreria de fome. Entre os homens, eles são bem-tratados, ganham comida e carinho. Outras raças, como o labrador e o golden retriever, mantiveram apenas a fase de atacar. São ótimos em buscar a presa, mas não sabem matá-la e jamais a comem. Por isso tornaram-se excelentes companheiros para caçadores, buscando os patos e as raposas recém-abatidos. Os cães passaram, portanto, a depender de nós para alimentá-los. Como bons parasitas.

Acontece que todos os caninos são, por definição, “alpinistas sociais”. Entre os lobos selvagens, por exemplo, há sempre um indivíduo que domina os outros, que manda no grupo. O resto passa a vida esperando uma oportunidade para ganhar poder. “Eles estão sempre testando”, afirma Budiansky. “Ficam o tempo todo tentando ultrapassar os limites para ver se conquistam mais espaço. Por isso, numa relação entre homens e cães, tem que ficar muito claro que somos nós que mandamos neles. Se não ficar, eles tentarão mandar em nós…”

Ao contrário do que reza o ditado, não existe no mundo canino a idéia de “amizade”, de “igualdade”: uns sempre estão acima dos outros. Quando você entra em casa e seu enorme pastor alemão pula no seu peito, você pode imaginar que está ganhando um abraço fraterno. “Ele gosta de mim”, você pensa. “Não é nada disso”, diz Budiansky. “Cães selvagens pulam uns nos outros para demonstrar dominação. Os indivíduos dominantes pulam em cima dos dominados. Se um dominado tentar inverter essa ordem, pode ter certeza de que haverá um sério arranca-rabo”, diz. Ou seja, o recado que o pastor alemão quer dar enquanto bate as patas no seu peito é: “Sou seu chefe. Tudo bem para você?” Se você sorri ou o afaga nessa hora, é o mesmo que responder: “Beleza. Pode mandar que eu obedeço”. Daí, uns dias depois, você tenta contrariar o bicho, pondo-o para fora de casa na hora de dormir, negando-lhe um sanduíche de presunto ou brigando com ele porque ele destruiu sua Super novinha (que ele sabia que você gostava de ler). Resultado: mordida.

Essa confusão se deve a outra fraqueza humana: somos autocentrados demais. Achamos que tudo o que os outros fazem é para nós. “Quando um cão destrói algo, concluimos que ele faz isso só para se vingar de algo ”, diz Irvênia Prada, especialista em neuroanatomia animal da Universidade de São Paulo. “Mas isso é antropomorfizá-los. Cães até são capazes de algumas emoções, mas não conseguem arquitetar atitudes complicadas, como uma vingança.” O mais provável é que o xixi no tapete seja só um pedido de atenção, ou um teste para checar quem mesmo é que manda em casa.

O ser humano tem fixação em ficar quebrando a cabeça para descobrir o que os outros pensam dele. Afinal, essa capacidade de lidar com relações complexas é a base da nossa sociedade. Nos preocupamos com o que o cachorro acha de nós, se ele está com raiva, se gosta da gente, se planeja nos atacar. Os cães são bem mais materialistas – eles querem saber o que nós fazemos por eles – pouco lhes interessa o que pensamos. A sociedade deles é bem mais simples: uns mandam, outros obedecem. Estão interessados é em ganhar cafuné ou um biscoito extra. E, se deixarmos claro quem é que manda, eles vão fazer de tudo para nos agradar e ganhar seus prêmios. Agora, se houver dúvidas a respeito de quem está no comando, os bichos tentarão tirar de nós o que querem à força.

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Por isso, educar um cachorro é bem diferente de educar uma criança. “Algumas providências simples evitam grandes problemas”, afirma Budiansky. “Temos que ensiná-lo desde filhote a obedecer a comandos. Por exemplo, só dar comida depois que ele estiver sentado. Só fazer carinho depois que ele parar de pular.” Uma criança humana precisa de amor incondicional – ela odiaria ser tratada desse jeito. Mas, para um cão, isso mostra qual a hierarquia dele dentro da sua casa. Se uma criança chora, há algo errado que precisa ser resolvido. Se um cachorro chora, late sem parar ou se finge de doente, e ganha um osso a cada vez que faz isso, fica condicionado a agir dessa forma sempre que precisar de alguma coisa. “Os cães esperam, e precisam, de limites”, diz a veterinária e psicóloga Hannelore Fuchs, uma das maiores especialistas em comportamento animal do Brasil e dona da simpática vira-lata Violeta, que lambeu o pé da reportagem da Super durante boa parte da entrevista.

Ou seja, se você não se impuser, vai confundir o bicho. Ele jamais saberá quem é o chefe. E certamente será mais infeliz assim. “Experiências com matilhas de lobos confirmam essa idéia”, afirma Budiansky. “Os biólogos observaram que um cão selvagem aceita sua posição na hierarquia do grupo. Ele não desenvolve problemas psicológicos ou fica revoltado por ser dominado…” As dificuldades surgem apenas quando um animal que se julga dominante é obrigado a obedecer.

Se fizermos tudo certinho, o tal parasitismo social acaba. Os xixis e os cocôs serão feitos nos lugares certos, não haverá mais mordidas e humanos não serão mais mortos por animais descontrolados. A relação entre homem e cachorro se parecerá mais com uma simbiose do que com parasitismo. A diferença é que, no parasitismo, só um leva vantagem. A simbiose traz benefícios para os dois. E está claro que os caninos têm muito a oferecer para a humanidade. “O cão dentro de casa é algo vivo, para amar e tocar, uma presença palpável e querida dentro de um mundo virtual”, diz Hannelore, que criou o projeto Pet Smile – toda semana leva cães “voluntários”, como gosta de dizer, a hospitais, e os coloca no colo de pacientes que aguardam uma cirurgia. “O sorriso e a felicidade do paciente ativam o sistema imunológico”, diz o veterinário Mauro Lantzman, cuja clínica em São Paulo, especializada em cachorros-problema, é uma espécie de consultório psicanalítico animal. Nesse caso, somos nós tirando proveito dos cães.

Em resumo: cachorros não são canalhas natos. São cachorros. E precisamos aprender a tratá-los como tal.

Para saber mais

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Na livraria:

The Truth About Dogs

Stephen Budiansky, Viking, Estados Unidos, 2000

The Dog’s Mind

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Bruce Fogle, Howell Book House, Estados Unidos, 1990

Adestramento Inteligente: Com Amor, Humor e Bom Senso

Alexandre Rossi, CMS, São Paulo, 1999

Na internet:

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https://www.pet.vet.br

https://www.dogs.com

https://www.vidadecao.com.br

mamello@abril.com.br e drusso@abril.com.br

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