A verdade sobre a captura de carbono
Se é tão difícil reduzir as emissões de CO2, que tal enterrá-lo no subsolo, onde ele ficará aprisionado para sempre? Essa tecnologia tem recebido uma chuva de investimentos – e promete uma solução poderosa contra o aquecimento global. Mas, na prática, não é bem o que parece ser.
Texto Bruno Garattoni e Maurício Brum
Ilustração Vinicius Capiotti
Design Natalia Sayuri Lara
AA temperatura global já está 1,15 oC mais alta do que na era pré-industrial, e o planeta segue esquentando. O Acordo de Paris, assinado por 196 países em 2016, estipula um limite de 1,5 grau para o aquecimento global (porque, acima disso, os efeitos climáticos esperados pioram muito).
Em 2020, a ONU publicou um estudo (1) mostrando como alcançar essa meta: diminuir as emissões de CO2 em 7,6% anuais até 2030. Com isso, elas cairiam para 25 gigatons (bilhões de toneladas) de CO2, o mesmo nível do ano 2000.
Até que parece exequível, não? Acontece que no ano 2000 o planeta tinha muito menos gente: 6,1 bilhões de pessoas, contra 8 bilhões hoje. Isso significa que, na prática, seria necessário reduzir as emissões de CO2 per capita para o mesmo nível de 1970, uma época em que o mundo era outro – o PIB de todos os países somados era 1/4 do atual (já descontando a inflação do período).
Um ajuste monstruoso, e que teria de ser feito em apenas dez anos. “O tamanho dos cortes pode parecer chocante”, admite o documento. Mesmo com o forte crescimento da geração solar e eólica nos últimos anos, 80% da energia consumida pela humanidade ainda vem de combustíveis fósseis (2), cuja queima libera CO2.
Por essas coisas, muitos cientistas acreditam que a meta de 1,5 grau já era: o mundo provavelmente irá ultrapassá-la, e sofrer as consequências. Mas e se, além de reduzir a quantidade de CO2 que jogamos na atmosfera, também houvesse um jeito de tirá-lo de lá?
Essa tecnologia se chama “captura e sequestro de carbono” (CCS), e consiste em enterrar o CO2 em poços de petróleo vazios ou cavernas escavadas sob o solo (veja infográfico abaixo).
A hora dela parece estar chegando: em 2022, a capacidade global de CCS aumentou 44%, e já existem 30 usinas de captura (a maioria na América do Norte e na Austrália), com outros 196 projetos em desenvolvimento para os próximos anos.
O megapacote de iniciativas climáticas aprovado em 2022 pelo Congresso dos EUA inclui US$ 12 bilhões em subsídios para a captura de carbono – e o país pretende construir a maior usina de CCS do mundo, que ficará no estado do Wyoming e será capaz de sugar 5 milhões de toneladas de CO2 por ano, o equivalente às emissões geradas por 15 milhões de carros (rodando 20 km por dia cada um).
O Google, a Meta e outras empresas do Vale do Silício se uniram numa iniciativa chamada Frontier, que vai investir US$ 925 milhões em projetos do tipo até 2030 – com o objetivo de acelerar o desenvolvimento da tecnologia e baratear seu custo.
A captura de carbono está na moda. E com razão: remover CO2 do ar pode ser uma estratégia poderosa contra o aquecimento global. Ao mesmo tempo, ela não é o que parece ser.
Também tem um outro lado, cheio de poréns e detalhes surpreendentes. A começar pelo fato de que já é usada há décadas, com objetivos e resultados opostos – que, na prática, podem até aumentar a quantidade de CO2 jogado na atmosfera.
A injeção e a conta
Quando você fura um poço para extrair gás natural, metano, outra coisa vem junto: CO2, que também estava lá dentro. Ele é uma impureza, que precisa ser retirada do gás antes de vender o metano. Por isso, a indústria petrolífera desenvolveu as primeiras técnicas de captura já na década de 1920.
Elas consistem em misturar o gás com aminas: substâncias derivadas da amônia, que absorvem o CO2 e deixam passar o metano. Esse método também é conhecido como “adoçamento” do gás natural, porque além do CO2 ele também remove outras substâncias ricas em enxofre, que deixam o gás ácido e com cheiro ruim.
O CO2 que saía dali era aproveitado em alguns processos industriais, mas a maior parte era simplesmente liberada na atmosfera. Nos anos 1970, as petrolíferas tiveram uma ideia: injetar o CO2 ao lado de poços de petróleo. O gás comprime o solo, fazendo com que saia mais óleo do poço.
Essa técnica é conhecida pela sigla EOR (“recuperação aumentada de óleo”, em inglês), e em tese pode produzir até um petróleo “negativo” em carbono: pois você consegue enterrar mais CO2 do que será liberado, mais tarde, na queima dos derivados desse petróleo (veja no infográfico abaixo).
Lindo, não? Só que, na prática, não é bem assim. Você já deve ter desconfiado: se fosse tão fácil, o mundo não estaria mergulhado em uma crise climática.
Segundo dados publicados em 2019 pela International Energy Agency, aproximadamente 2% de toda a produção mundial de petróleo utiliza o método EOR. Mas, na maioria dos casos, as petrolíferas injetaram outros gases, como metano ou nitrogênio.
Bem menos poços empregaram o CO2, que foi usado em apenas 0,5% da produção de petróleo. É que capturar, comprimir e injetar esse gás custa caro (mais sobre isso daqui a pouco).
E, mais importante, o processo não é infalível. “Se você injeta a molécula de CO2 de um lado, e ela ‘empurra’ [o óleo], eventualmente ela também acaba saindo”, diz o engenheiro Gustavo Assi, do Centro de Pesquisa e Inovação em Gases de Efeito Estufa (RCGI) da USP.
Existe, sim, o risco de que o CO2 injetado em poços de petróleo possa vazar para a atmosfera no futuro. Antes que a captura de carbono possa ser usada em grande escala, é preciso achar soluções para isso. “O que se busca hoje são rochas reservatórias em que você possa injetar o CO2 de maneira definitiva, sem que ele saia para a atmosfera de novo”, afirma Assi.
O objetivo é encontrar rochas suficientemente porosas, em que o gás consiga se manter inerte, sem voltar para o ar, contaminar aquíferos ou viajar pelo subsolo, o que poderia causar alterações geológicas.
Em tese, se for injetado em rochas adequadas, o CO2 poderia permanecer nelas para sempre: existem reservatórios naturais, no subsolo ao redor do mundo, em que o gás está parado há milhões de anos.
Outra possibilidade é transformar o próprio CO2 em pedra. A empresa islandesa Carbfix desenvolveu um processo em que esse gás é misturado com água e injetado em solo basáltico – em dois anos, 95% dele se transforma em rocha.
O método parece muito promissor, porque as formações basálticas são abundantes no mundo, cobrindo boa parte do subsolo dos oceanos e cerca de 10% dos continentes.
Mas há um problema: o processo requer 25 toneladas de água doce para cada tonelada de gás enterrado. Em 2022, a humanidade emitiu 36,8 bilhões de toneladas de CO2. Faça as contas e você verá que a tecnologia da Carbfix não é viável em grande escala. Longe disso.
Tanto que ela está em desenvolvimento desde 2012, e ainda não é usada comercialmente (até hoje a Carbfix petrificou, de forma experimental, 90 mil toneladas de CO2). Para contornar isso, a empresa tenta dar um jeito de usar água salobra.
No Brasil, a aposta dos cientistas e da indústria é o pré-sal. A Petrobras tem o maior projeto de captura e reinjeção de CO2 em operação no mundo. Já enterrou 40 milhões de toneladas de CO2 no pré-sal, por meio de doze plataformas que operam nele. Só em 2022, foram 10,6 milhões de toneladas do gás – segundo a empresa, isso corresponde a 25% de todo o CO2 enterrado no planeta durante o ano passado. O pré-sal é considerado bom para isso justamente por causa da camada de sal, que funciona como uma barreira contra o escape do CO2.
Também existem pesquisas para aumentar a capacidade de enterrar CO2, criando reservatórios subterrâneos.
“A ideia é você escavar uma ‘caverna’, dissolvendo o sal, e dentro dela, colocar o CO2 em grandes quantidades”, explica Assi. “Na temperatura e pressão desse reservatório, o CO2 está num estado supercrítico: ele se comporta como um gás, mas tem a densidade de um líquido.”
Isso permitiria guardar ainda mais carbono. Um reservatório com 450 m de altura por 150 de diâmetro comportaria aproximadamente 10 milhões de toneladas – todo o CO2 emitido, durante um ano, por 30 milhões de carros. É uma proposta interessante. Mas essa tecnologia, idealizada por cientistas da USP, ainda não foi testada na prática.
A Petrobras, assim como as outras empresas de petróleo, reinjeta CO2 proveniente dos seus poços e refinarias. Mas, para resolver o aquecimento global, seria preciso capturar esse gás também em outros lugares, como nas fábricas onde ele é emitido, ou sugá-lo da atmosfera – um processo chamado Direct Air Capture (DAC). E aí o bicho pega.
Capturar uma tonelada de CO2 numa fábrica, antes que ele escape, pode custar de US$ 20 a US$ 200, segundo um estudo da Universidade Harvard (3). E puxá-lo da atmosfera sai ainda mais caro: US$ 250 a US$ 600 por tonelada.
Lembra daquele número, de que a humanidade emite 36,8 bilhões de toneladas de CO2 por ano? Então: estaríamos falando num custo anual que poderia ir de US$ 736 bilhões, na melhor das hipóteses, a surreais US$ 22,8 trilhões – o que dá 21% de todo o PIB global. Completamente inviável.
Sabe aquela megausina de captura que os EUA pretendem construir, e citamos no começo deste texto? Seria preciso fazer 7.300 iguais a ela, nos quatro cantos do mundo, para pegar todo o CO2 emitido pela humanidade. E essa tecnologia, além de cara, ainda é problemática.
Um relatório do Institute for Energy Economics and Financial Analysis (IEEFA), que analisou 13 usinas e sistemas de captura espalhados pelo mundo (4), constatou que eles acabam pegando muito menos CO2: na prática, capturam 36% a 50% menos gás do que o previsto. “Está todo mundo estudando como melhorar isso, mas ainda é um sistema de baixa eficiência, como procurar agulha no palheiro”, compara Assi.
Em março, quatro pesquisadores da China e dos EUA publicaram um artigo científico (5) propondo um novo destino para o dióxido de carbono: transformá-lo em bicarbonato de sódio e despejá-lo nos oceanos. Eles inventaram um método para fazer isso, que de quebra aumenta a eficiência da captura do gás, tornando o processo mais barato.
A ideia ganhou manchetes pelo mundo, mas está muito longe de ser viável. Isso porque ela poderia alterar o pH da água do mar, tornando-a mais alcalina – gerando consequências ecológicas nos pontos onde o bicarbonato fosse despejado.
“Não existe qualquer tecnologia, hoje, que possa capturar carbono na escala em que isso precisa ser feito”, afirma o físico Paulo Artaxo, da USP. “Estamos a pelo menos 10 ou 15 anos de ela se tornar comercialmente viável. A única maneira de realmente minorar a questão das mudanças climáticas globais é reduzir as emissões”, diz Artaxo, que também é membro do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), o grupo internacional de cientistas que produz os relatórios da ONU sobre aquecimento global.
Tirando os projetos-piloto e algumas experiências da indústria petrolífera, a conta da captura de carbono não fecha. Ela não é uma “bala de prata” contra o aquecimento global.
Mas isso não quer dizer que não tenha valor. Pode ser extremamente útil para certos setores que, por sua natureza, são muito difíceis de descarbonizar. “Vamos precisar da captura de carbono porque alguns processos, como a produção de concreto, vão continuar a emitir CO2”, diz o engenheiro Volker Sick, professor da Universidade de Michigan e diretor da Global CO2 Initiative, grupo que pesquisa soluções envolvendo as tecnologias CCS.
A fabricação de concreto emite muito CO2 porque queimar combustíveis fósseis é a única maneira de alcançar a temperatura exigida no processo (1.400 °C). A produção de cada tonelada de concreto libera até 600 kg de CO2. O setor é responsável por 8% de todas as emissões globais.
Também será muito difícil fazer com que a aviação, que hoje responde por 2,5% das emissões, deixe de soltar esse gás. “Para esse tipo de transporte, você depende de um combustível líquido de alta densidade energética, como é o querosene de aviação”, diz Assi.
Cada quilo desse combustível contém 20 vezes mais energia do que 1 kg de baterias de lítio – ou seja, não seria viável construir aeronaves elétricas de grande porte, para substituir as atuais (elas exigiriam muitas baterias, e ficariam pesadas demais para voar).
Isso sem falar nos navios cargueiros, que chegam a consumir 400 toneladas de combustível fóssil por dia cada um – e emitem, somados, 3% de todo o CO2 global.
A captura de carbono pode ser uma saída para esses setores. Pode sugar o CO2 que eles emitem, e enterrá-lo no solo. Ou usar o gás para produzir combustíveis sintéticos (synfuels), num processo que transforma o CO2 em querosene, gasolina ou diesel.
“Esse combustível vai ser queimado, mas, nesse caso, não aumentaria o carbono na atmosfera”, explica Assi. Isso porque, para fabricar os synfuels, você retira da atmosfera a mesma quantidade de CO2 que eles vão liberar, depois, quando forem utilizados.
Mas essa tecnologia ainda é cara e incipiente: a usina Haru Oni, no Chile, que foi inaugurada em dezembro de 2022 e é a primeira do mundo a fazer synfuels, tem capacidade para gerar 130 mil litros por ano. Uma gotinha no meio dos 16 bilhões de litros de combustíveis fósseis que o mundo consome por dia (6).
Em suma: não existe solução mágica. A missão que a humanidade tem pela frente é tão grande que será preciso apelar para todas as estratégias.
A captura de carbono, em todas as suas formas, caminhando lado a lado com o plantio de árvores, a diminuição do desmatamento e, principalmente, a substituição dos combustíveis fósseis sempre que possível. “Qualquer esforço na redução de emissões é sempre positivo”, diz Artaxo, da USP. Verdade. Porque a resposta é essa: esforço. Frear o aquecimento global vai exigir quantidades colossais dele. Mas vale a pena – até porque não há alternativa.
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Fontes (1) Emissions Gap Report 2019. UN Environment Programme (UNEP). (2) World Energy Outlook 2022. International Energy Agency. (3) Carbon Capture, Utilization, and Storage: Technologies and Costs in the U.S. Context. J Moch e outros, 2022. (4) The carbon capture crux: Lessons learned. B Robertson e M Mousavian, 2022. (5) Direct air capture (DAC) and sequestration of CO2: Dramatic effect of coordinated Cu(II) onto a chelating weak base ion exchanger. H Chen e outros, 2023. (6) Short-Term Energy Outlook. US Energy Information Administration (EIA), 2023.