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A molécula que faz cópias de si mesma – e criou a vida na Terra

Entenda a hipótese do "mundo RNA", a favorita dos biólogos para explicar o surgimento dos primeiros seres vivos.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
14 jul 2024, 16h00

Uma bactéria resume a vida. Ela consiste em três moléculas essenciais: DNA, RNA e proteínas, acumuladas no interior de um pacotinho chamado célula. Lá, elas comandam a hereditariedade e o metabolismo. Você e seu cachorro também são versões extremamente complicadas dessa mesma fórmula básica; o resto é enfeite.

O trio DNA, RNA e proteínas foi chamado por Francis Crick, um dos quatro responsáveis por elucidar a estrutura do DNA em 1953, de “dogma central da biologia molecular” (ainda que a palavra dogma não seja a melhor escolha para um cientista). 

Isso dá aos investigadores da origem da vida uma pista: se são essas as três moléculas essenciais para todos os seres vivos, de um cogumelo à Scarlett Johansson, então o primeiro ser vivo deve ter sido uma delas (ou pelo menos algo mais simples que se tornaria, no futuro, uma delas). Pelo mesmo motivo que violões e guitarras têm ambos seis cordas: eles são instrumentos diferentes hoje, mas derivam de um mesmo ancestral.

É preciso, então, analisar as capacidades, funções e defeitos do DNA, do RNA e das proteínas num ser vivo contemporâneo para entender qual dos três é o suspeito mais provável de ser o replicador original. Um “crime” longínquo, que ocorreu há uns 4 bilhões de anos. 

Que comece o trabalho de Agatha Christie. As primeiras avaliadas serão as proteínas, os burros de carga da vida. Seus músculos são feitos de proteínas (actina e miosina). Suas unhas (queratina), também. São proteínas que digerem os carboidratos que você come (amilase) no momento em que eles tocam a saliva.

Na verdade, a função do DNA é armazenar instruções para a fabricação das nossas 92 mil proteínas. Só isso. Uma vez fabricadas, elas cuidam do resto. A favor das proteínas, portanto, temos que elas fazem tudo

E contra? Bem, proteínas são longas cadeias de componentes químicos menores chamados aminoácidos. Os aminoácidos têm nomes que soam como uma reunião de idosas psicodélicas: lisina, alanina, leucina… São 20, ao todo.

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A ordem em que eles são enfileirados é essencial. Ela precisa ser perfeita. Um único aminoácido fora do lugar e você terá uma proteína inútil em mãos (ou – e isso é pior – um proteína que faz outra coisa). Isso é porque proteínas se dobram, como novelos de lã embaraçados, e é a dobra que define a função.

Um único colágeno – até 35% das suas proteínas são colágeno, um adulto tem 2,2 kg do dito cujo no corpo – contém 1055 aminoácidos, dobrados com uma perfeição de origami.

A origem da vida requer que uma molécula razoavelmente funcional surja de condições simples. E esperar uma proteína funcional brotar do nada é como tentar escrever Dom Casmurro dando com a testa no teclado. Esquece. Esse é o tipo de milagre que não acontece.

Se você tivesse jogado na loteria todo ano da formação do planeta Terra até hoje, já teria dado para ganhar 77 vezes. Não importa o quanto você seja azarado: é uma obrigação estatística. Não teria dado tempo, porém, de formar algo como o colágeno.

A chance de um molécula de colágeno se formar espontaneamente em uma piscina de aminoácidos é de uma em vinte seguido de 1055 zeros. Isso é mais do que o número de segundos que se passaram desde a origem do Universo.

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“Legal”, você dirá, “é óbvio que nenhuma obra começa com os tijolos se empilhando sozinhos. Ela começa com o arquiteto. Com o cara que dá as instruções. A primeira molécula, então, foi o DNA.” Para avaliar se esse palpite está certo, é essencial entender como, exatamente, uma molécula de DNA é capaz de dar instruções.

Imagine o DNA como um colar de miçangas químico. Há uma miçanga chamada adenina (A). Outra chamada guanina (G). Ao todo, são quatro miçangas: A, T, C e G. Elas são chamadas genericamente de nucleotídeos, e ficam penduradas numa espécie de cordão, assim: ATGGCTGAAAGGC.

A parte mágica é que cada aminoácido tem um encaixe químico perfeito com um grupo de três nucleotídeos do DNA. A lisina, por exemplo, só adere às sequências AAA e AAG. Já a leucina gosta de CTA ou CTG. E é assim, de três em três letras, que o DNA mantém anotada a receita das proteínas.

O problema é que o DNA só serve para manter as receitas anotadas, mesmo. Ele é incapaz de executá-las. Há, aqui um problema de ovo e galinha: o DNA contém as instruções para produzir proteínas, mas não consegue, de fato, produzi-las. As proteínas, por sua vez, são complexas demais para terem simplesmente surgido, e não conseguem armazenar instruções. 

Hora de ir para o terceiro suspeito, o menos famoso dos três. O RNA. A função dele é ir até o DNA, anotar as receitas de proteínas (a transcrição) e levá-las para estruturas chamadas ribossomos. Dentro dos ribossomos, outros tipos de RNA montam as proteínas, aminoácido por aminoácido (a tradução). Exatamente como numa linha de produção fordista.

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Para “ler” o código do DNA, o RNA precisa ser estruturado como ele: uma sequência de miçangas químicas (há só uma letrinha diferente: A, U, C e G). Por outro lado, o RNA consegue se dobrar sobre si próprio em formas complexas e catalisar reações químicas, exatamente como as proteínas. De fato, se ele não fosse capaz de fazer isso, os ribossomos não conseguiriam, em primeiro lugar, montar as proteínas.

Bingo: o RNA, ao que tudo indica, é o meio termo que a vida precisa para surgir. Informação e ação em um lugar só. Vamos, então, tentar reconstituir o marco zero da biologia. A época hipotética em que só havia RNA.

Na década de 1960, conforme o quebra-cabeças da biologia molecular era elucidado, os pioneiros da área seguiram o raciocínio descrito alguns parágrafos atrás e se deram conta de que o RNA era um bom candidato a ser o primeiro replicador, o marco zero. Carl Woese, que é o herói do capítulo 2, pensou nisso. Francis Crick também pensou nisso. O primeiro a colocar a ideia no papel foi Alexander Rich, em 1962. 

É o que faz sentido dentro das regras que a vida impôs a si mesma. É uma hipótese que emerge quase como uma consequência natural da organização dos organismos na escala microscópica. Toda a vida na Terra funciona com base na ordem DNA, RNA e proteínas.

Se você inserir um de seus genes em uma E. coli, ela não só será capaz de ler as instruções contidas nele como passará prontamente a produzir uma proteína humana. A vida adotou uma única língua, com um alfabeto de quatro letras (A, T, C e G). Ela não tem sotaques, dialetos ou variações.

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“A evolução não é criativa”, me disse Carlos Menck, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, em uma entrevista realizada em 2018. “Ela bolou uma solução possível e se manteve fiel a ela. Não mudou. Daria para imaginar, por exemplo, o surgimento de dois gargalos, mas não há evidência disso.” Como, então, esse gargalo único começou? Como o RNA, sozinho, abriu a festa?

Em 2003, em um instituto de bioquímica chamado Scripps, na Califórnia, Gerald Joyce e Tracey Lincoln criaram uma molécula de RNA chamada R3C. R3C é o seguinte: imagine uma sopa primordial que contém, entre outras coisas, duas moléculas de RNA. Elas vão se chamar A e B.

A tem o formato de um grampo de cabelo; B, por sua vez, é um simples traço, sem mais firulas. Volta e meia, A e B se juntam acidentalmente e formam T: uma molécula de RNA maior, que tem o formato de um grampo de cabelo com um traço. Óbvio – ela é a soma das duas.

Acontece que T tem uma habilidade particular: ela é um cupido. Consegue flutuar pela mistura unindo outros A e B, de maneira a transformá-los em mais T. A população de T aumenta rapidamente. Você poderia dizer, de maneira bem sem graça, que T catalisou uma reação química.

Proteínas fazem algo parecido o tempo todo: juntam moléculas pequenas e separam moléculas grandes para gerar novas moléculas. Acontece que T catalisou uma reação química capaz de dar origem a ele mesmo. Em outras palavras, ele se reproduziu. 

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O experimento de Joyce e Lincoln com reprodução é só entre vários que simularam algum aspecto do mundo RNA em laboratório. Outros cientistas fizeram RNAs com outras habilidades. A ideia é que esses RNAs, no passado, tenham interagido, criado alianças e fornecido matéria-prima para as atividades uns dos outros.

Os RNAs que fizessem parte de cadeias colaborativas mais bem-sucedidas tomariam conta do meio ambiente e se aperfeiçoariam, em uma espécie de evolução darwiniana, só que aplicada a reações químicas.

A Terra, aqui, não é nem viva, nem inanimada: é um tubo de ensaio criativo, no meio do caminho entre as duas coisas. Nas palavras de Menck: “Se você der tempo ao tempo, moléculas vão começar a se juntar ao acaso; depois, elas começam a se juntar porque outras moléculas ajudaram. Assim, elas ganham mais habilidades. Elas estavam submetidas à seleção natural”. O nome dessa hipótese é “mundo RNA”. 

Um dos experimentos mais fascinantes a demonstrar a aplicabilidade da seleção natural a um sistema composto exclusivamente de RNA foi realizado por Sol Spiegelman, da Universidade Columbia.

Spiegelman começou com um vírus chamado Qβ. Qβ é essencialmente um pedaço de RNA. Ele penetra em bactérias E. Coli que habitam o nosso trato digestório e se disfarça de RNA mensageiro – aquele que fornece aos ribossomos o código para a fabricação de uma proteína.

Desta forma, os ribossomos são parasitados: param de produzir as proteínas necessárias para o funcionamento da bactéria e passam a produzir as proteínas que o vírus precisa para se reproduzir. Quando Qβ esgota os recursos da bactéria, ele implode a dita cuja como se fosse um galpão de fábrica desativado, e seus filhos-cópia se espalham aos milhares em busca de novas vítimas microscópicas.

Com algumas adaptações, Spiegelman conseguiu transformar Qβ em uma unidade de RNA autorreplicante independente. Ele não precisava mais parasitar uma bactéria para se reproduzir – passou a dar conta do recado sozinho, mergulhado na água do interior de um tubo de ensaio. Bastava fornecer as bases nitrogenadas A, U, C e G, que são os ingredientes básicos.

Qβ, naturalmente, se tornou mais simples. Por exemplo: parou de se preocupar em produzir proteínas que lhes eram úteis antes, como a que lhe permitia romper a membrana celular da bactéria ao final do ciclo infeccioso. 

Spiegelman então, simulou a seleção natural. Pegou uma amostra de RNA do primeiro tubo de ensaio e a colocou em um segundo tubo. Pegou uma amostra do segundo tubo e a inseriu em um terceiro tubo. E assim por diante.

Os RNAs, conforme se reproduziam, sofriam mutações. Alguns deles teriam mutações deletérias, outros, mutações que os tornariam a reprodução mais eficiente. Com o tempo, as variações mais produtivas de Qβ tomaram o lugar das menos produtivas.

Cada vez que Spiegelman inseria uma amostra no próximo tubo, ela fundava uma população de RNAs com características ligeiramente diferentes das da população anterior. 

Viver em um tubo de ensaio sem predadores e repleto de pecinhas que permitem construir mais de você mesmo não lá muito desafiador. A única pressão seletiva sobre os RNAs era se reproduzir mais rápido e melhor.

Por isso, eles evoluíram em uma direção peculiar: a da simplicidade. Após 74 gerações de tubo de ensaio, os RNAs de 3600 bases nitrogenadas de comprimento se reduziram a apenas 550. Como monges, abandonaram todos os excessos.

O experimento de Spiegelman não prova apenas que um sistema químico que não está propriamente vivo é capaz de evoluir por seleção natural.

Prova também que evolução darwiniana é uma caminhada rumo à melhor solução de sobrevivência um determinado contexto – e não uma caminhada rumo à maior complexidade. Não é o mais forte ou mais inteligente que se dá bem. É o que melhor se adapta à mudança.

 

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